Tradução Antonio Carneiro de Ruysbroeck, JRNE
Excertos selecionados originalmente por Jacqueline Chambron (HVM)
CAPÍTULO XXII - DO TERCEIRO MODO DA VINDA ESPIRITUAL DE CRISTO.
Quando o sol atinge no céu seu ponto mais alto, ele entra no signo de Câncer, ou seja, do caranguejo; pois não podendo elevar-se mais alto, ele começa a retroceder. É então que o calor é o mais forte de todo o ano; e o sol, aspirando a umidade da terra, esta se torna muito seca e os frutos ganham em maturidade.
Do mesmo modo, quando Cristo, o sol divino, sobe ao mais alto de nosso coração, isto é, acima de todos os dons, consolação ou doçura que podemos receber d’Ele; quando não buscamos mais repouso em nenhum gosto produzido por Deus em nossa alma, por mais forte que seja, e que, senhores de nós mesmos, voltamos incessantemente, como foi dito, com humildes louvores e sinceras ações de graças, ao próprio fundo de onde todos os dons fluem para as criaturas segundo suas necessidades e sua dignidade; então Cristo se mantém elevado no mais alto de nosso coração e quer atrair a Si todas as coisas, isto é, todas as nossas potências. Quando, portanto, o coração amante já não pode ser vencido nem impedido por gosto ou consolação alguma, mas quer ultrapassar toda doçura e todo dom para encontrar aquele que ama; então nasce o terceiro modo de vida interior, onde o homem é elevado e adornado segundo a parte sensível e inferior de si mesmo.
Ora, neste modo, a primeira obra de Cristo é fazer subir ao céu o coração, o desejo e todas as potências da alma, e chamar à união com Ele. Assim, Ele diz espiritualmente no coração: “Saem de si para vir para mim, seguindo a atração e o convite que são oferecidos.” Essa atração e esse convite, mal posso explicá-los às pessoas vulgares e sem delicadeza: mas é um chamado e um convite dirigidos ao íntimo do coração para a alta unidade de Deus. Esse chamado íntimo é mais doce ao coração amante do que tudo o que pôde provar antes, e faz nascer um modo novo e um exercício mais elevado.
Então o coração se expande de alegria e de desejo, todas as veias se dilatam, cada uma das potências da alma se sente pronta e quer responder ao que é exigido por Deus e pela união com Ele. Este convite é como uma irradiação do sol eterno, que é Cristo; ele dá ao coração tão grandes deleites e alegria, e o faz tão amplamente expandir-se que dificilmente se pode fechar. O homem é ferido no coração e sente uma chaga de amor. Ora, ser ferido de amor é o sentimento mais doce e também a dor mais pungente que se pode suportar. Mas ser ferido de amor é um sinal certo de que se curará. A ferida espiritual dá alegria e dor ao mesmo tempo. E neste coração com a ferida aberta, Cristo, sol da verdade, derrama novamente e espalha sua luz, e sempre exige que se una a Ele. Por isso a ferida e as chagas se renovam.
CAPÍTULO XXIII - DA LANGUIDEZ E DA IMPACIÊNCIA DO AMOR .
Quando Cristo fez ouvir seu chamado íntimo e seu convite, e a criatura, levantando-se, mostra-se pronta a dar tudo o que pode, sem, no entanto, poder alcançar nem obter a unidade com Deus, isso lhe causa uma languidez espiritual. O mais íntimo do coração e a própria fonte da vida são feridos de amor, e, por outro lado, sente-se incapaz de obter o que mais se deseja, e é preciso permanecer sempre onde não se gostaria: tal é a dupla causa dessa languidez. Cristo então se elevou ao cume do coração, e de lá projeta seus raios divinos sobre esse coração faminto de desejos. Sob esse ardor ardente, toda umidade, isto é, toda potência e energia natural, seca e se consome.
O coração que está sempre aberto e cheio de desejos, e por outro lado o sol divino que lança sobre ele seus raios, são causa de uma languidez que não cessa.
Quando não se pode alcançar a Deus e, no entanto, não se pode nem se quer passar sem Ele, isso faz nascer em alguns um ardor espiritual, e uma impaciência interior e exterior. Enquanto o homem sente esse ardor, nenhuma criatura no céu ou na terra é capaz de lhe dar repouso ou satisfação alguma. Às vezes, nesse estado, percebe-se no interior palavras muito elevadas e úteis que transpassam, um ensinamento maravilhoso e uma sabedoria singular. O ardor íntimo torna apto a tudo sofrer, a fim de obter o que se ama; e esse ardor de amor é uma impaciência interior que dificilmente ouve a razão, enquanto não alcança o objeto amado. O ardor íntimo rói o coração do homem e bebe seu sangue; pois aqui o calor sensível do amor é o maior que uma vida de homem pode experimentar. A natureza corporal é secretamente ferida, e se desgasta sem trabalho exterior. Mas também o fruto das virtudes amadurece e se apressa mais do que em todos os outros modos descritos até agora.
Na estação do ano de que falamos, o sol penetra em Leão, isto é, naquele signo que leva o nome do rei dos animais, por natureza violento. Da mesma forma, quando o homem chega a este estado, Cristo, sol de claridade, também se encontra no signo de Leão, pois o calor ardente de seus raios é tão grande que aquele que é atingido sente seu coração ferver. Enquanto dura esse tipo de ardor, ele domina e perturba todo outro modo de vida interior, pois quer ser sem modo nem maneira. Acontece às vezes que o homem que é tomado por ele cai em uma espécie de languidez e de desejo impaciente de ser libertado da prisão de seu corpo, a fim de poder unir-se àquele que ama. Levantando os olhos de sua alma, percebe os átrios celestiais, cheios de glória e de alegria, seu bem-amado coroado e derramando em seus santos suas larguezas infinitas, enquanto ele mesmo é privado delas. Então, muitas vezes jorram as lágrimas e se elevam os desejos inflamados. Trazendo depois seus olhares para cá, o pobre homem vê o exílio onde é prisioneiro sem poder escapar, e chora de languidez e de impaciência. Mas essas lágrimas que a natureza faz escorrer pacificam e refrescam a alma, ao mesmo tempo em que são úteis ao corpo para conservar força e energia e ajudá-lo a atravessar o tempo de ardor de que falamos. É bom também para aqueles que estão nesse estado multiplicar as considerações e dedicar-se a práticas definidas, para que possam conservar suas forças e levar uma vida virtuosa por muito tempo.
CAPÍTULO XXIV - DOS ARREBATAMENTOS E DAS REVELAÇÕES DE DEUS.
Sob a ação do ardor e da impaciência do amor, acontece às vezes que alguns são arrebatados em espírito acima dos sentidos. Ouvem então palavras, ou veem em imagens e representações certas verdades úteis a si mesmos ou a outros, ou ainda coisas futuras. Isso se chama revelações ou visões. Se são imagens sensíveis, são recebidas na imaginação; e pode ser obra de um anjo, agindo pela virtude de Deus. Se são verdades intelectuais ou representações espirituais, sob as quais Deus se revela de alguma forma, são percebidas pela inteligência e podem ser expressas em palavras, tanto quanto as palavras podem ser suficientes.
Mas às vezes também o homem pode ser levado acima de si mesmo e acima do espírito, embora não absolutamente fora de si, até um bem incompreensível, que é sempre incapaz de descrever ou explicar, tal como o viu e ouviu, pois ver e ouvir é tudo um nesta operação e nesta visão simples. Ora, isso, ninguém pode fazer nascer no homem senão Deus só, sem a intermediação ou cooperação de criatura alguma; e chama-se arrebatamento, o que significa que se é apreendido, elevado ou transportado.
Às vezes, Deus suscita no espírito uma fulguração rápida, algo como um relâmpago no céu. É um curto jorro de luz, de uma claridade deslumbrante, que jorra da nudez simples. Num piscar de olhos, o espírito é elevado acima de si mesmo, e logo a luz não está mais, e o homem volta a si. É uma obra de Deus mesmo e algo muito nobre, pois aqueles que são objeto dela muitas vezes se tornam homens iluminados.
Aqueles que são tomados pelo ardor do amor o sentem às vezes de outra maneira, pois neles brilha uma certa luz que Deus produz por intermédio; e sob essa influência, o coração e a potência afetiva vão ao encontro da luz, e quando ocorre esse encontro, a avidez e a fruição são tão grandes que o coração não as pode suportar, mas explode em acentos impetuosos; e isso se chama jubilar ou jubilação, ou seja, uma alegria que não se pode expressar por palavras. Não se é capaz de contê-la, e assim que se encontra a luz com um coração que se eleva para ela e se abre amplamente, a voz deve necessariamente seguir, enquanto durarem esse estado e esse tipo de luz. Certos homens interiores recebem às vezes de seu anjo da guarda ou de outros anjos, por meio de sonhos, muitos ensinamentos úteis.
Mas também se encontram pessoas que abundam em inspirações súbitas, em palavras interiores, em pensamentos elevados, enquanto permanecem acorrentadas nos sentidos exteriores, e sonham grandes maravilhas; mas não sabem nada do ardor amoroso, pois estão espalhadas em mil coisas e não sentiram a ferida do amor. Esses efeitos podem, aliás, vir tanto do demônio quanto do bom anjo. Assim, só se pode dar crédito a eles na medida em que concordam com a Sagrada Escritura e a verdade, mas não mais, pois de outra forma se cairia facilmente no erro.
CAPÍTULO XXV - DO QUE PODE PREJUDICAR AQUELES QUE SE APLICAM AO TERCEIRO MODO.
Quero agora expor o que pode ser prejudicial e danoso àqueles que vivem no ardor do amor.
Há um tempo do ano, como dissemos, em que o sol avança no signo de Leão, e é o mais insalubre que existe, embora faça frutificar. Então, de fato, começam os dias da canícula, que trazem consigo muitos males. O calor é tão forte e tão anormal que em vários lugares as plantas e as árvores secam, os peixes na água definham e morrem, e às vezes os próprios homens adoecem e perecem. A causa não é apenas o sol, pois os mesmos efeitos deveriam ocorrer em toda parte e para todos. Mas isso também se deve a uma disposição mórbida dos corpos sobre os quais o sol exerce sua influência.
Da mesma forma, quando o homem chega a esse estado de impaciência que descrevemos, ele realmente entra na canícula. O esplendor dos raios divinos se derrama de cima com um ardor tão abrasador, e o coração ferido de amor fica tão inflamado no interior, quando crescem as afeições ardentes e os desejos impacientes, que o homem cai em uma agitação e um sofrimento comparáveis aos de uma mulher em trabalho de parto e que não pode sarar.
Se o homem quiser então voltar incessantemente o olhar para o próprio coração ferido e para o objeto amado, o mal só pode aumentar. Ele se prolonga a tal ponto que o homem acaba por secar em seu corpo, como a árvore dos países muito quentes, e morre em ardor de amor e vai para o paraíso sem purgatório. É morrer bem morrer de amor; no entanto, enquanto uma árvore pode dar bons frutos, não se deve cortá-la nem arrancá-la.
Às vezes, Deus se derrama em grande doçura no coração ardente de amor, que então nada em deleites como o peixe na água, enquanto em seu fundo mais íntimo queima de ardor e de caridade, por causa dessa deliciosa imersão nos dons divinos e do calor bem-aventurado e impaciente que lhe causa a queimadura de amor. E se nele se demora muito, as forças corporais perecem. Todos aqueles que estão nesse ardor só podem languidescer nele; mas nem todos morrem, contanto que possam bem se governar nele.
CAPÍTULO XXVI - DE UM OUTRO PERIGO.
Quero ainda advertir sobre outro perigo, de onde poderia advir grande dano. No tempo do grande calor, às vezes cai um certo orvalho de mel de falsa doçura, que mancha o fruto ou até o estraga completamente; e isso acontece sobretudo no meio do dia, quando o sol está em todo o seu esplendor; e são gotas grossas que mal se distinguem da chuva.
Da mesma forma, podem-se encontrar homens, que uma certa luz causada pelo demônio os deixa fora de si. Essa luz os envolve e os cerca; numerosas imagens enganosas ou verdadeiras lhes são mostradas, e ouvem muitas palavras, tudo lhes causando grande satisfação. Então, às vezes, escorrem como gotas de mel de uma falsa doçura, onde se deleitam. Consentimos em estimá-las, vêm em abundância, e se é facilmente manchado por elas. Pois se se quiser ter por verdadeiro o que é apenas mentira, porque se viu ou ouviu, cai-se no erro, e o fruto das virtudes se estraga. Mas aqueles que seguiram o caminho descrito acima, e que seriam tentados por esse espírito e essa falsa luz, os reconhecerão facilmente, e isso não poderá prejudicá-los.
CAPÍTULO XXVII - DA COMPARAÇÃO DAS FORMIGAS.
Proponho agora, àqueles que vivem no ardor do amor, um pequeno exemplo, para que se comportem nesse estado de maneira sábia e conveniente, e que alcancem depois virtudes mais elevadas.
Há um pequeno inseto chamado formiga, dotado de força e prudência, e que tem uma vida muito difícil. Habita de bom grado em sociedade com seus semelhantes, em terras quentes e secas. Ora, a formiga trabalha durante o verão, acumulando alimento e grãos para o inverno, e ela fende esses grãos em dois, para que não se percam nem se estraguem e para que possa utilizá-los quando não encontrar mais nada. Ela não segue rotas diversas, mas sempre pelo mesmo caminho, e quando espera o tempo certo, torna-se capaz de voar.
Assim devem agir os homens de que falamos: serão fortes na espera da vinda de Cristo e prudentes em relação aos miragens e às palavras do demônio. Não escolherão morrer, mas antes procurar sempre a glória de Deus e adquirir para si novas virtudes. Habitarão na unidade reunida de seu coração e de suas potências, obedecendo à exigência e ao chamado da união com Deus. Sua morada será a terra quente e seca do impetuoso ardor de amor e da grande impaciência. É durante o verão do tempo presente que deverão exercer seu trabalho e acumular os frutos das virtudes, dos quais farão duas partes: uma que consiste em desejar incessantemente a alta unidade de fruição; a outra que deve ajudá-los a dominar-se pela razão tanto quanto puderem, esperando o tempo que Deus lhes preparou para isso: assim o fruto das virtudes pode ser guardado para a eternidade. Não seguirão caminhos desviados e não terão maneiras singulares; mas, através de todas as tempestades, guardarão a via do amor, indo aonde esse amor os leva. Quando se sabe esperar o tempo certo e perseverar em todas as virtudes, pode-se chegar a contemplar, e se voa até os segredos divinos.