Gerhard Wehr (CHJB) – Estrutura tripla do ser humano

CHJB

Há muito tempo, discute-se o problema das fontes dessas especulações antropológicas de Böhme. Este problema se coloca efetivamente, mesmo que se leve em conta o fato de que sua antroposofia — como o resto de sua obra — é essencialmente o fruto de sua visão espiritual. No entanto, não foi possível, até o momento, identificar as fontes literárias diretas das quais ele pode ter se inspirado neste contexto. Rudolf Rocholl, teólogo luterano do século XIX, que foi admirador de Böhme e, posteriormente, aluno de Christoph Friedrich Oetinger, observou que certos trabalhos de Pico della Mirandola, de Johannes Reuchlin e de Agrippa von Nettesheim, eles mesmos inspirados na Cabala, poderiam figurar entre essas fontes. É certo, porém, que Böhme não se contentou em retomar as ideias correspondentes, mas as transformou à sua maneira, da mesma forma que imprimiu a todas as concepções tradicionais a marca de seu pensamento pessoal. Um exemplo, a este respeito, é fornecido pela maneira como ele interpreta o número sagrado dez das Sefirot cabalísticas; para ele, este número se decompõe em três (a Santíssima Trindade) mais sete (os sete espíritos-fontes). Essa mesma independência de espírito, o sapateiro de Görlitz a manifesta em relação aos dogmas oficiais da Igreja luterana à qual pertence. Vimos isso a propósito da “Sophia celestial” que Böhme associa à trindade divina; e constatamos ainda a propósito de sua concepção andrógina do homem. Segundo Böhme, o homem não é apenas o resultado de um processo de criação; como forma do mundo visível e invisível, como “extrato dos três princípios da essência divina”, ele mesmo passa por diversos estágios de evolução. Como imago dei, ele é primeiro “fonte de trevas”, depois “fonte de luz” e, finalmente, “fonte deste mundo”. É com esta estrutura tripla que ele se encontra no plano dos quatro elementos. Em seu estado original, ele está revestido da “clareza na força de Deus”. Sua natureza corpóreo-espiritual permite-lhe então participar da eternidade. “Adão era um homem e uma imagem de Deus, uma imagem perfeita de Deus, embora Deus não seja uma imagem… E assim como a Magia eterna o havia gerado a partir de si mesma, no olho dos milagres e da sabedoria de Deus, assim ele devia e podia gerar outro homem a partir de si mesmo, de maneira mágica, sem rompimento de seu corpo; pois ele havia sido recebido na alegria de Deus, e o desejo de Deus o havia gerado e feito aparecer”. No Mysterium magnum, seu comentário do Gênesis, Böhme explica detalhadamente como ele vê os diversos estágios da criação do homem: “_Adão era homem e mulher ao mesmo tempo… Ele tinha em si as duas tinturas (Tinkturen), a do fogo e a da luz, e nesta conjunção seu próprio amor estava presente como centro virginal.” “Dois seres (Wesen) fixos e estáveis se encontravam em Adão: o corpo espiritual da essência-amor (Liebe-Wesenheit) do céu interior que era o templo de Deus; e o corpo exterior, o Limus da terra, que era o habitáculo e a morada do corpo espiritual interior; este corpo exterior não estava de forma alguma aberto à vaidade da terra, pois era um Limus, um extrato da boa parte da terra, que será separado na terra, no momento do Julgamento final, da vaidade da maldição e da corrupção do diabo. Estes dois seres (Wesen), o celestial interior e o celestial exterior, estavam unidos um ao outro e englobados em um único Corpus… e não eram dois corpos, mas um só; mas, todavia, eram duas essências”. Na passagem do Gênesis (cap. 2) onde se fala do sono que invade Adão, Böhme percebe — embora isso aconteça antes do pecado propriamente dito — a causa ou o “instante” da perda da totalidade andrógina do homem original. O homem é então subjugado pelas forças do destino que o arrastam para sua encarnação, e por aí para sua tomada de consciência. “Ele desmaiou imediatamente na impotência, no sono, como em uma incapacidade que significa a morte. Pois a imagem de Deus, que é inamovível, não dorme. O tempo não existe no que é eterno. No entanto, com o sono, o tempo se tornou manifesto ao homem; pois ele adormeceu em relação ao mundo angélico, e acordou para o mundo exterior”. Mas quem é, então, Eva, fabricada pelo Deus criador a partir da terra (Adama), ou ainda modelada por ele na terra? “No que diz respeito à criação de Eva”, responde Böhme, “é o maior mistério, pois, se quisermos ver o fundo, é preciso compreender e apreender de forma muito íntima o nascimento da natureza e o estado original do homem; pois Eva é a metade de Adão; ela não foi tirada completamente da carne de Adão, mas de sua essência, de sua parte feminina. Ela é a matriz de Adão”. No entanto, Böhme não volta seu olhar apenas para trás, para a condição original paradisíaca do homem andrógino e para o pecado — profundamente lamentado por ele — após o qual Adão viu ser-lhe pendurado um “saco de larvas animal” (tierischer Madensack) e órgãos de reprodução bestiais. Ele se refere a Cristo, de quem ele espera não apenas a Redenção, mas também que ele traga de volta a eternidade perdida. A Redenção significa também para Böhme, em última análise, o restabelecimento da imagem original andrógina. A ação de Cristo constitui, portanto, uma resposta válida à aspiração da natureza humana pela eternidade, pela realização e pela totalidade. Eros e Sexus expressam essa aspiração e buscam satisfazê-la, sem, contudo, poder conferir duração à realização. Eles estão condenados a permanecer no provisório; e, no entanto, sua linguagem e suas imagens servem para traduzir essa profunda aspiração religiosa da humanidade pela união — ou comunhão — do homem com Deus. “O mistério é grande; eu falo de Cristo e da comunhão”, diz a epístola deuteropaulina aos Efésios (5,32). Quanto a Böhme, ele afirma na “Vida Tríplice do Homem”: “Assim, a natureza aspira à eternidade, e gostaria de se desfazer da vaidade. E assim encontra sua fonte o violento desejo no sexo feminino e masculino de todas as criaturas, que faz com que cada um deles aspire a se misturar ao outro; pois o espírito não compreende isso, e o ar do espírito também não; somente as duas tinturas, a masculina e a feminina, o compreendem”. Embora alguns alunos de Böhme tenham desenvolvido a partir de seus escritos uma ética hostil a Eros e ao sexo, chegando a identificar o erotismo com a ação do diabo, e embora Böhme possa de fato ser responsabilizado por essa evolução em certa medida, pode-se, no entanto, afirmar o seguinte: Após Platão, mas também com base nas grandes imagens míticas contidas na Bíblia e concernentes à essência do homem, Jakob Böhme lançou os fundamentos de uma filosofia erótica. O que Böhme nos diz não deve ser interpretado como significando que ele subestima o corpo ou a polaridade masculino-feminina. O mistério do homem e da mulher, o segredo dos dois sexos, é revelado em uma unidade metafísica onde a natureza e a alma do homem, sua aspiração pela totalidade, será conciliada com a aspiração religiosa do cristão. Böhme explicita isso notadamente ao relacionar, em seu Mysterium magnum, cada passagem dos textos antropológicos do Antigo Testamento com um episódio correspondente da vida de Cristo. A encarnação, a Paixão, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo aparecem assim como prefiguradas no livro do Gênesis. A passagem seguinte é particularmente significativa: “Depois que Cristo, na cruz, libertou novamente nossa imagem virginal da condição “homem e mulher”, e a coloriu com seu sangue celestial no amor divino, uma vez que Ele cumpriu isso, disse: Está consumado… Cristo então transformará Adão em seu sono, fazendo-o passar novamente da vaidade e da condição “homem e mulher” para a imagem angélica. Grandes e maravilhosos são estes mistérios, que o mundo não pode compreender…” Desde então, uma nova luz é projetada sobre a figura de Maria, a Virgem que gerou o “Filho do Homem”. Para o sapateiro de Görlitz, o fato essencial é que esta Maria terrestre se tornou o receptáculo da Sophia celestial, isto é, da sabedoria divina. Como protestante, Böhme certamente não chegará a considerar a mãe de Jesus como uma espécie de co-redentora. No entanto, Maria simboliza para ele uma certa atitude espiritual, expressando a disponibilidade para receber, com o espírito de Cristo, a imagem do homem novo. Seria, sem dúvida, um erro compreender Böhme como querendo questionar o casamento e a vida conjugal. Seu louvor à Virgem não visa, na realidade, a pregar a ascese ou a renúncia à vida, mas, sim, expressa seu desejo ardente de trazer a eternidade para o tempo. Em termos de antropologia, isso se chama regeneração do homem. Böhme não hesita em usar todas as imagens correspondentes da Escritura Sagrada, desde aquelas que representam o estado original do homem no paraíso terrestre até as visões de futuro do Apocalipse de São João, para confrontar a “virgem masculina” em Adão com o “novo Adão” em Cristo. É a “imagem adâmica autêntica e pura” que Böhme gostaria de gravar no coração de seus discípulos quando diz: “_A imagem pura permaneceu escondida em Deus, no verbo que se tornou homem. Agora que a alma está perto do objetivo, ela a reencontra, junto com a bela virgem, a sabedoria de Deus. Pois a nobre imagem foi destruída em Adão quando a mulher foi feita a partir dele, de tal sorte que ele só manteve a tintura de fogo, enquanto a mulher conservou a tintura de espírito. Agora, tudo volta a cada um deles: pois a mulher vai receber, no fogo de Deus, a tintura do fogo, de tal sorte que ela será como Adão, nem mulher nem homem, mas uma virgem cheia de castidade, sem que sua forma ou seus membros sejam nem masculinos nem femininos. E nunca mais se dirá: “Tu és meu esposo” ou “Tu és minha esposa”, pois só haverá irmãos! Nos milagres mágicos de Deus, ainda se poderá vislumbrar algo disso; mas nenhum homem prestará atenção, pois todos não serão nada além dos filhos de Deus em uma vida de crianças e em um jogo de amor.” Assim, partindo da teosofia de Böhme, e passando por sua cosmosofia e sua antroposofia, chegamos a um ponto do caminho de seu pensamento onde convém, sem dúvida, dizer uma palavra sobre a via que leva ao homem novo. Esta via, o círculo de adeptos que se reuniu imediatamente em torno de Jakob Böhme a batizou de “cristosofia”.