Gerhard Wehr (CHJB) – Boehme, escrita de "A Aurora"

CHJB:49-51

Aquele que iria trocar a sovela do sapateiro pela pena era animado por motivações precisas e poderosas. No importante capítulo dezenove de “A Aurora”, assim como nas “Epístolas Teosóficas” (carta a Caspar Lindner, já citada), ele evoca a “forte impulsão” que o levou a “descrever a realidade de Deus”. “E experimentava na minha alma um fortíssimo desejo de anotar tudo isso para um Memorial, embora tivesse dificuldade em captá-lo em meu homem exterior e colocá-lo sob a minha pena. Devia imediatamente começar a trabalhar sobre este grande segredo, como uma criança que vai à escola. Em meu foro interior, via-o como em uma grande profundidade. Pois via através como em um caos que contém tudo no interior, mas era-me impossível desembaraçá-lo. De tempos em tempos, porém, abria-se em mim como em uma planta, embora eu o tivesse carregado em mim por doze anos, que eu estivesse cheio e saturado (schwanger) dele e que sentisse em mim uma viva impulsão, antes que eu pudesse transpô-lo para o exterior, até que um dia ele caiu sobre mim como uma tempestade que cai, e que atinge o que atinge. Foi o que me aconteceu. O que pude captar, transpor para o exterior, eu o anotei.” Esta espera de doze anos, ele a comparou um dia à história de uma jovem árvore que acaba de ser plantada e que deve produzir frutos em um dado momento. De tempos em tempos, é certo, vê-se eclodir uma flor; mas por muito tempo, nenhum fruto aparece, pois “muito vento frio, a geada e a neve” impedem a maturação. “Foi o que aconteceu também a este espírito. O primeiro fogo era apenas um germe, mas não uma luz persistente. Desde esse tempo, muito vento frio passou por ele, mas a vontade nunca se apagou. Esta árvore tentou também muitas vezes produzir frutos, e fez brotar flores; mas até hoje, estas flores sempre acabaram por ser cortadas.” Um dia, porém, a tempestade espiritual ocorre e “atinge o que atinge”. A partir do início de janeiro de 1612, Böhme escreve página após página de sua primeira obra. Ocasionalmente, ele deixa entender, em sua correspondência, que aquele que copiar seus escritos deverá ser “um homem instruído e inteligente”, pois seus manuscritos são mais rascunhos. Em alguns lugares, faltam sílabas ou caracteres, sem falar das deturpações feitas à ortografia usual das palavras. Às vezes, ele “colocou uma letra comum no lugar de uma maiúscula”, não por ignorância ou negligência, mas simplesmente porque ele “não teve tempo de refletir sobre o significado correto da letra, pois tudo estava ajustado ao movimento do espírito que ia às vezes tão rápido que o autor, por falta de hábito, tinha as mãos que tremiam.” Ele afirma que poderia fazer o esforço de escrever de forma mais bonita e mais legível, mas que o “fogo ardente” que se apossou de sua inspiração não tolera nenhuma perda de tempo. Isso explica também que “se fosse possível captar tudo e escrever tudo, seria três vezes mais longo e mais profundo, mas infelizmente isso não se pode. E é por isso que haverá mais de um livro, mais de uma obra filosófica, e será cada vez mais profundo, de sorte que o que não pôde ser captado em um livro possa ser encontrado no seguinte.” Pode-se aqui fazer a pergunta de saber qual era o estado de espírito de Böhme no momento em que ele redigia suas obras. De acordo com o que já foi dito acima sobre a condição psíquica em que ele se encontrava durante sua visão espiritual, convém sublinhar que é absolutamente fora de questão que Böhme tenha sido o que os parapsicólogos chamam de “médium”, manuseando a pena em um estado de consciência enfraquecida. O espírito que o faz agir e ao qual ele deve em definitivo a sua obra não elimina o seu eu consciente e desperto, mas ao contrário o coloca ao seu serviço, o reforça e o penetra. Pode-se, neste contexto, fazer um paralelo com o apóstolo Paulo afirmando (Gálatas 2,20): “Vivo, mas no fundo não vivo, pois é o Cristo que vive em mim, dentro do meu Eu”. O “eu” do homem torna-se assim o receptáculo do verbo de Cristo. A inspiração de Jakob Böhme é, ela também, muito estreitamente ligada a este fenômeno de incorporação do verbo (logos). Além disso, este mesmo fenômeno é igualmente descrito por ele como constituindo a união com a “Sophia celestial”. Se se quer servir da linguagem moderna da psicologia das profundezas, notadamente daquela que utiliza C.G. Jung, dir-se-á que este tipo de fenômeno, que se pode qualificar de “guiamento espiritual” no plano religioso, pode ser interpretado como uma ativação do inconsciente, suscetível de acarretar experiências interiores insuspeitadas. Como diz Jung, “enquanto a religião permanece simplesmente crença e forma exterior, e que a função religiosa não corresponde a uma experiência da alma pessoal, nada de fundamental ainda aconteceu. Resta ainda compreender que o Mysterium Magnum não existe apenas em si, mas que é principalmente fundado no interior da alma humana. Quem não sabe isso por experiência, por mais que seja doutor em teologia, não tem ideia do que é a religião…”. Böhme, por sua vez, conheceu esta experiência da alma pessoal de que fala Jung, e pronuncia-se, aliás, expressamente no mesmo sentido que este. É por isso que Jung, em muitos lugares de sua obra, refere-se à visão de Jakob Böhme. Em sua “Justificação do autor de A Aurora”, texto bastante longo adicionado posteriormente, Böhme explica-se ainda uma vez sobre a origem dos seus dons e a natureza particular da sua criação literária: “É Deus quem me deu o saber. Não sou eu, que sou Eu, que sei estas coisas; é Deus quem as sabe em mim. A sabedoria (Sophia) é Sua noiva; e os filhos do Cristo são, no Cristo, na sabedoria, igualmente a noiva de Deus. Mas uma vez que o espírito do Cristo habita os filhos do Cristo, e que estes são ramos da videira do Cristo e formam um só corpo com ele, corpo que compreende também o espírito do Cristo, a quem, então, pertence o saber? Pertence a mim ou a Deus? Não deveria eu, então, saber, no espírito do Cristo, a partir de que este mundo foi criado, uma vez que habita em mim aquele que o criou? Não deveria ele sabê-lo? Assim, sofro agora, e não quero saber nada, eu que sou Eu, enquanto parte do mundo exterior, para que ele saiba em mim o que ele quer. Não sou a engendradora do saber, mas é o meu espírito que é a sua mulher na qual ele engendra o saber na medida em que ele o quer!.”