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Pode-se recordar o extrato, citado acima, de “A Aurora” onde ele evoca o “triunfo no espírito” que resulta do ato “onde a vida é engendrada no meio da morte”. Aí, novamente, pode-se admitir que há uma referência concreta. De fato, em 29 de janeiro de 1600, portanto muito pouco tempo depois da “ruptura espiritual” relatada em “A Aurora”, nasce o seu primeiro filho, Jakob.
Quem não contesta a priori a dimensão do sobrenatural no domínio do espírito não identificará a experiência de iluminação de Böhme a simples projeções psíquicas de um jovem sensível. “Quando se sabe quão, precisamente na filosofia de Böhme, o espírito e a vida se entrelaçam estreitamente, não se pode duvidar da correlação que existe entre os dois eventos”, nota Hans Grunsky. Talvez se pudesse formular esta correlação dizendo que, “em, por e sob” os eventos exteriores reais, expressa-se para Böhme um vivido interior. Böhme é um homem que percebe com os seus olhos. Pela via da contemplação, ele atinge a visão e de lá à compreensão que penetra “até no engendramento mais íntimo da divindade”. Os eventos exteriores da sua vida — casamento, nascimento — puderam ajudar o jovem sapateiro a desencadear a sua experiência psíquica. No entanto, estes eventos só se tornaram transparentes para ele na medida em que, de repente, ele foi capaz de ver e ouvir com os olhos e os ouvidos do espírito. Na concepção goetheana da natureza, onde todos os fenômenos do mundo empiricamente cognoscível são reveladores de um mesmo fenômeno original e fundamental, e o representam incessantemente sob novas formas (“metamorfoses”), reflete-se sem dúvida alguma — sem que, contudo, o poeta e pesquisador de Weimar o diga expressamente — o espírito de Böhme. Assim, pois, o sapateiro de Görlitz transpõe um limiar da consciência. Na história do conhecimento humano, outros “iniciados” conheceram tais “transposições de limiar”. É assim, por exemplo, que Apuleio de Madaura (que viveu no segundo século depois de Jesus Cristo) relata a sua experiência de iniciação: “Fui até a fronteira entre a vida e a morte. Transpus o limiar de Prosérpina e, tendo atravessado todos os elementos, retornei. À hora da meia-noite, na noite mais profunda, vi brilhar o sol com o seu brilho mais luminoso.” Este “sol da meia-noite”, Böhme também teria o privilégio de o perceber: “Posso dizer-vos que luz e que confirmação isso traz quando se encontra o Centrum naturae. Mas não se chega lá pela mera razão própria.” Na passagem de “A Aurora”, citada acima, que contém o relato da sua experiência de iluminação, Böhme continua assim: “Nesta luz, o meu espírito pôde imediatamente ver através de tudo” — a noção de transparência, inerente a esta experiência, é assim claramente expressa — “e reconheci Deus em todas as criaturas, e também nas plantas e na erva dos campos; vi quem Ele era, e como Ele era, e qual era a Sua vontade. E imediatamente, nesta luz, o meu desejo se manifestou, com grande ardor, de descrever a realidade (Wesen) de Deus…” E eis explicada a razão primeira, ao mesmo tempo que o tema, da sua atividade de autor. Böhme percebe perfeitamente a natureza da sua visão, e ele se explica claramente, tanto em “A Aurora” quanto em seus livros ulteriores. “Não imagines que subi ao céu e que vi tudo com os meus olhos de carne. Oh, não! Ouve-me, anjo semivazio, sou como tu, e no meu ser (Wesen) exterior não possuo uma luz maior que tu. E como tu, sou um homem, pecador e mortal, e todos os dias e a toda hora devo me desentender e lutar ‘com o diabo’”. A vida do iniciado desenrola-se também no mundo de todos os dias, e esta realidade cotidiana é apreciada por Böhme exatamente pelo que vale. “Nossa vida é como uma guerra permanente contra o diabo … No entanto, uma vez que ele é vencido, a porta do céu se abre no meu espírito. Este vê então o ser (Wesen) divino e celestial; não é fora do corpo, é na fonte do coração que se desencadeia o raio para os sentidos do cérebro, onde o espírito especula.” Várias vezes, Böhme sublinha que não buscou voluntariamente este conhecimento. Ele se alinha com o profeta Jeremias quando declara: “Mas o Deus que fez o mundo é muito forte para mim. Sou a obra das Suas mãos. Ele me colocará onde Ele quiser.” Ou ainda, ao final da obra inacabada que é “A Aurora”: “Não foi pela razão, nem pela minha vontade prévia, que cheguei a esta opinião, ou a este trabalho e a este conhecimento. Não busquei esta ciência, nem sequer tinha ideia dela”. “E novamente, ele alude à sua luta contra a melancolia e contra o diabo: “Busquei, sozinho, o coração de Deus para me abrigar contra as intempéries do diabo. Reduzido às minhas próprias forças, sou um homem cego entre todos, e não posso fazer nada. É somente no espírito de Deus que o meu espírito inato vê através de tudo, embora nem sempre de forma perseverante; é somente quando o espírito do amor de Deus rompe através do meu espírito que o engendramento da alma e a divindade constituem uma só realidade, um entendimento e uma luz (ein Wesen, eine Begreiflichkeit und ein Licht).” O que ele relata em “A Aurora” sobre a sua experiência espiritual, Böhme o confirmará em seus testemunhos ulteriores. No entanto, é preciso distinguir entre a grande experiência de iluminação de 1600 e os eventos ulteriores da mesma natureza, que não se manifestam, contudo, “nem sempre de forma perseverante”. Em seu primeiro escrito apologético (“Contra Balthasar Tilken”), datado de 1621, Böhme relata que “o espírito passou como um relâmpago e viu até o fundo da eternidade; ou ainda, foi como uma chuva que passa, ela atinge o que ela atinge. Foi também o que ocorreu em mim.” Por outro lado, Böhme viu em sua vida, e em sua obra de autor, um exercício espiritual que lhe permitiu subir “degrau por degrau”, como na escada de Jacó. “Vi a escada de Jacó, e por ela subi ao céu.”