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Falamos do fogo que se transforma em luz. Há uma dinâmica na manifestação setenária que opera no sentido desta transmutação. Embora este ciclo seja representado por uma roda à imagem das revoluções planetárias, ele apresenta — por mais paradoxal que possa parecer — o aspecto de uma progressão linear. Böhme não consegue imaginar o círculo, ou mesmo a esfera, sem que haja um antes e um depois. O movimento deve prosseguir para frente — esta é a própria natureza do cumprimento. O retrocesso significa a regressão ao fundo tenebroso, simbolizada pelo gesto fatal da mulher de Lot ao voltar-se para contemplar a cidade incendiada que acabara de abandonar.
No quarto nível da manifestação, o ciclo da natureza eterna, em vez de se desenvolver, pode se fechar sobre sua parte obscura. Esta região tenebrosa se enclausura, em vez de se abrir para deixar jorrar a luz. Assim se constitui o inferno virtual — o abismo primordial fechado sobre si mesmo. O símbolo desta geena arquetípica é um fogo que jamais poderá se transformar em luz, pois se fixou em trevas, e as trevas não podem se converter em claridade. Este fogo é frio, pois representa a Morte. Mas também se caracteriza, como já dissemos, por um excesso de calor, por uma chama devoradora que simboliza o ardor de um desejo eternamente insatisfeito. O fogo frio de Böhme nos remete à febre que consome o corpo sem poder nutrir-se de sua substância, como faz a alma vital quando o organismo está saudável.
O ciclo septenário não representa apenas o fogo que se torna luz. Ele também revela a dualidade entre fogo e luz. É no quarto grau, antes do advento vitorioso da luz simbolizado pela quinta forma, que temos a visão desta dualidade. Então nos é dada a revelação dos dois princípios: o fogo e a luz. O primeiro refere-se ao Pai, o segundo ao Filho. O terceiro princípio será nosso mundo, que procede da natureza eterna.
Considerado em sua totalidade, o ciclo septenário nos mostra a luz jorrando das trevas. No entanto, as trevas não são por isso abolidas. Estão ocultas na luz, como a noite contida no dia. Na primeira fase do ciclo, é o dia que está oculto no coração da noite. Depois, no quarto grau, vemos o dia e a noite. Finalmente, na consumação do ciclo, é a noite que fica aprisionada no dia, tornando-se imperceptível.
A região tenebrosa sempre existe ao final da manifestação setenária, mesmo quando esta se desenrola em sua plenitude. Ela simplesmente está sepultada na luz. Não obscurece a luz, pois está murada em si mesma. Não se manifesta de forma alguma neste desfecho glorioso da natureza eterna.
Foi segundo a plenitude desta consumação que os anjos — e especialmente Lúcifer — foram criados. Mas o que fez Lúcifer? O anjo prevaricador, desejoso de aperfeiçoar seu nascimento (já tão belo segundo o princípio luminoso do Filho), mergulhou novamente na fonte do ciclo septenário. Sua prevaricação nos aparece — a nós, humanos que viemos depois dele — como a contrafação do que os místicos chamam de nosso segundo nascimento: o anjo glorioso quis renascer para ser ainda mais do que representava o Filho no princípio luminoso. É como se uma alma, uma vez regenerada à imagem de Deus nela impressa, não se satisfizesse com esta semelhança. Lúcifer assim regressou ao abismo de onde emergira — e nele se afogou, num ventre tenebroso onde não deveria ter retornado. Enclausurou-se neste abismo e em seu próprio corpo (que era o do universo primordial onde o ciclo septenário se repetia harmonicamente), exacerbando as forças antagônicas. Lúcifer provocou o incêndio universal, e o fogo devorador que desencadeou arruinou a obra dos sete espíritos — o corpo de um mundo primordial onde a luz divina irradiava por toda parte sem necessidade de luminares, como na Jerusalém do tempo final. O anjo glorioso tinha a dimensão deste cosmos que era seu próprio corpo. Ele era, segundo a forma humana de toda criatura celeste, o primeiro macroantropo. E ao destruir a si mesmo, destruiu também este cosmos original que representava.
Deus criou nosso mundo restaurando parcialmente este corpo aniquilado. Nele colocou o sol como substituto de Sua luz, e criou o homem para substituir Lúcifer, segundo a forma humana que pré-existia no corpo dos anjos. Por fim, Deus confinou o prevaricador num lugar do qual não pode sair — a zona tenebrosa deste mundo.
Simbolizado pelo terceiro princípio, nosso mundo é habitado simultaneamente por Deus (numa presença oculta) e por Satanás. Ele compreende o céu e o inferno. Em nosso universo, a ira de Deus se confunde com o reino de Satanás. É o diabo que atualiza para nós a ira divina e que, na prática, representa o primeiro princípio. Cristo rege o segundo: Ele é o amor e a luz, os dois sendo uma só coisa.
O terceiro princípio — nosso mundo — nos aparece como uma mescla dos dois primeiros. Mas “mescla” é termo inadequado: as trevas não se misturam à luz. A luz permanece em si mesma, segundo a expressão de Böhme, ao mesmo tempo que se manifesta na noite. A luz está inatingível para as trevas — eis o significado da liberdade que lhe é associada. No entanto, os dois princípios compartilham o grande corpo deste mundo e o do homem (que é sua redução e imagem perfeita).
Percorremos o caminho que nos permitiu vislumbrar os três princípios. Os dois primeiros — o fogo e a luz — situam-se no ciclo da natureza eterna. Reencontramo-los nos anjos, verdadeiro produto desta natureza primordial, para o melhor e para o pior.
O terceiro princípio é próprio de nosso mundo, fruto de uma segunda criação posterior à dos anjos e especialmente à de Lúcifer. Este mundo é habitado pelo homem, que se assemelha aos anjos (pois estes, em sua integridade primeira, já têm forma humana), mas que é mais do que eles.
O homem, diz Böhme, é superior aos anjos, pois se define pelos três princípios, enquanto as criaturas angélicas correspondem apenas aos dois primeiros. Os bons anjos, embora reunam em si os dois princípios (as trevas estando implicadas na luz), conhecem apenas um — o segundo -, pois o primeiro está oculto em seu corpo radiante e não pode se manifestar. Ignorando as trevas, os anjos conhecem verdadeiramente a luz? O que Böhme diz sobre Adão em seu estado de inocência permite duvidar disso. Quanto aos anjos maus, jamais verão a luz. Representam apenas um princípio.
Só o terceiro princípio revela plenamente os dois primeiros. Sem ele, segundo Böhme, cada um desses princípios só se manifesta em si mesmo, e não em relação ao outro. Por isso, não é verdadeiramente conhecido.
A alma humana, diz o autor de “Aurora”, vê muito mais profundamente que os anjos (os bons), pois estes só contemplam a pompa celeste, ignorando as trevas, enquanto o homem — dividido entre céu e inferno — vê ambos.
Para Böhme, o verdadeiro conhecimento é o do bem e do mal. O pecado capital de Adão não foi comer o fruto proibido, mas ceder ao sono. A falha subsequente foi provar desse fruto quando sua pessoa já se bestializara pela imaginação corrompida. Mas o verdadeiro conhecimento não é a gnose dos anjos — é o privilégio do homem que sabe de onde vem o mal. Quando o teósofo critica os teólogos que querem impedir o homem de saber, é deste ponto de vista que fala.
Só o homem pode apreender uma totalidade que inclui o bem e o mal, porque esta totalidade está nele segundo os três princípios. A alma é primeiramente uma alma segundo o princípio ígneo. Esta alma se reveste de um espírito que recebe o Espírito de Deus. Além disso, o homem é um composto de alma e corpo segundo o terceiro princípio.
Só o homem pode aceder ao verdadeiro conhecimento devido a sua tripla vida. Mas também este verdadeiro conhecimento só se encontra no homem, que é a única verdadeira imagem de Deus, pois abrange toda a extensão da manifestação divina.
Quando Böhme diz que Deus só se manifesta na natureza eterna, isso significa primeiro que Ele não se revelaria sem ela. Mas se Ele nela se manifesta, a natureza eterna não engloba toda a manifestação divina. Esta se prolonga em nossa natureza, que é uma exteriorização da chamada natureza eterna. Ora, Böhme afirma que sem esta natureza exterior que é a nossa, Deus não se revelaria plenamente. A gnose dos anjos não O satisfaz verdadeiramente.
Assim, a queda — primeiramente e principalmente a de Lúcifer — não é um mero acidente exigindo reparação como expediente circunstancial. Nosso mundo não vem de forma supérflua como substituto provisório de um mundo melhor. Também não é produto puramente contingente de um ato único de criação ex nihilo. É neste mundo e por ele que Deus se revela segundo a totalidade de Sua manifestação. E o universo — o nosso — está compreendido no corpo do homem, escolhido desde toda a eternidade por Deus “antes da fundação do mundo”, como repete Böhme parafraseando o início da Epístola aos Efésios.