Boehme (JBJC I,IX, 11-25) – Maria, filha de Eva

Jacob Boehme — Da Encarnação de Jesus Cristo (JBJC I,IX 11-25)

Como o Verbo eterno se tornou homem, e da Virgem Maria

Capítulo IX: A Virgindade de Maria

11. O nascimento e a encarnação de Cristo foram uma obra poderosa para nós, pois o insondável coração de Deus se moveu em sua totalidade e, por isso, a substancialidade divina que estava aprisionada na morte, tornou-se novamente viva, de modo que agora podemos dizer com razão: Deus resistiu a si mesmo em sua ira, pois se manifestou novamente pelo centro de seu coração que preencheu a eternidade sem fundo nem limite, que tirou da morte seu poder e quebrou o ferrão da ira e da fúria, visto que o amor e a doçura se manifestaram na ira e extinguiram o poder do fogo.

12. E o que é um bem ainda maior e motivo de alegria para nós, homens, é que Deus se manifestou em nossa virgindade eclipsada e morta, e ao mesmo tempo em tudo. Alegramo-nos porque o Verbo ou o poder da vida divina se deu novamente à humanidade, ou seja, à virgindade morta e como abandonada, e abriu novamente a vida virginal; alegramo-nos com isso e penetramos por nossa imaginação no centro onde Deus se manifestou na humanidade, ou seja, na encarnação de seu Filho, e assim nos tornamos, em nossa imaginação, que introduzimos em sua encarnação, grávidas de sua palavra e do poder da substancialidade celestial e divina manifestas; de nada estranho, todavia, mas estranho à terrenalidade, contudo. O Verbo se manifestou em toda parte, na luz da vida de cada homem também; falta apenas uma coisa, que o espírito da alma se abandone a ele; ele então reveste novamente a eterna virgindade, não como uma vestimenta, mas de sua própria essência: Deus nasce nele. Pois Maria nasceu terrestre, como todas as filhas de Eva, mas a aliança do amor divino fez sentir em sua essência que Deus queria ali abrir novamente a vida nela.

13. E quanto à virgindade de Maria, segundo a vida terrestre, antes da bênção, antes que o coração de Deus se movesse, não podemos absolutamente dizer que ela tenha sido uma virgem inteiramente pura, como a primeira, antes da queda: ela era apenas uma filha de Eva como as outras. Mas o que dizemos com fundamento é que em Maria, assim como em todos os filhos de Adão, a virgindade eterna estava aprisionada na aliança da promessa, como na morte, e contudo não morta em Deus. Pois o nome de Jesus, emanando do centro ou do coração de Deus, imprimiu-se como um espelho, desde a eternidade, na virgem da sabedoria divina, e resistiu ao centro do Pai, ou seja, ao centro do fogo e da fúria, não na fúria no fogo, na essência do fogo, mas no amor luminoso, na essência da luz; e o homem, no nome de Jesus, foi também estabelecido nessa mesma essência, antes da fundação do mundo, quando Adão era ainda essência celestial, sem ser natural ou criatural; pois a queda foi conhecida na sabedoria antes que o homem se tornasse criatura, e isso segundo a propriedade do fogo, não na propriedade da luz, mas segundo o primeiro princípio.

14. Assim, dizemos agora de Maria, de acordo com nosso profundo conhecimento, que antes do tempo da manifestação e da mensagem do anjo, ela foi uma virgem como Eva, quando saiu do paraíso, antes que Adão a tivesse conhecido; ela era então uma virgem, mas a verdadeira virgindade estava nela oculta (alterada) e infectada pela paixão terrestre, e a propriedade animal era manifesta nela; pois a imaginação terrestre rompeu a propriedade celestial, de modo que ela era uma mulher e não uma casta virgem sem mancha; ela era apenas uma fração da virgindade celestial, Adão era a outra. Assim, de Eva não nasceu nenhuma virgem pura, verdadeira, perfeita; a turba destruiu em todas a virgindade, até a entrada do herói em combate: aquele foi uma virgem viril, perfeita na sabedoria divina, segundo o Ser celestial; o terrestre estava suspenso a ele, mas o celestial reinava sobre o terrestre; pois assim deveria ter sido Adão que não resistiu.

15. Por isso dizemos com fundamento que Maria foi filha de Joaquim, nascida de Ana, e que, segundo a parte terrestre, ela foi de sua essência. Dizemos, ademais, que ela foi filha da aliança divina, que Deus estabeleceu nela o propósito do novo nascimento, que todo o Antigo Testamento se relaciona com esse propósito e que todos os profetas o predisseram (a saber, que Deus queria manifestar novamente a virgindade eterna); e esse propósito foi abençoado; pois, segundo sua misericórdia, Deus se incorporou nesse propósito pela aliança da promessa, e o Verbo da promessa estava na aliança, e resistia à ira na luz da vida. O primeiro mundo, antes e depois do dilúvio, foi salvo por essa aliança que Deus colocou diante de si como um espelho virginal; pois a virgindade eterna apareceu na aliança como no espelho divino, e nesse espelho a divindade se deleitava: se Israel mantivesse a aliança e cumprisse suas obras, Deus os aceitaria como se a humanidade tivesse estado no espelho da sabedoria divina; e embora Israel fosse terrestre e mau, no entanto Deus habitava em Israel em sua aliança, na sabedoria, segundo seu amor e sua misericórdia.

16. Assim, as obras da lei estiveram diante de Deus, no espelho, até que a vida nasceu de novo da aliança, até o cumprimento; então cessaram as obras no espelho e se elevaram (começaram) novamente as do cumprimento em carne e sangue na substancialidade celestial; pois em Maria foi o começo. Quando o anjo lhe trouxe a mensagem e ela respondeu: que me seja feito como tu disseste (Lucas 1:38), o centro da vida no Verbo divino, ou o coração de Deus, moveu-se imediatamente na semente celeste morta de Maria, vivificou-a de novo, e a gravidez começou. Pois todos os três princípios da divindade se moveram, e a essência divina tomou na substancialidade celeste morta: não que Deus estivesse ali sem substância, mas o homem estava morto para o mundo celestial, e aqui o coração de Deus, revestido da substancialidade divina, viva, entrou na morte e despertou a substancialidade morta. Ela não retirou, desta vez, a fonte terrestre, mas a penetrou (como um dominador e vencedor da fonte); pois a verdadeira vida devia passar pela morte e pela ira de Deus, o que se efetuou na cruz, onde a morte foi quebrada e a fúria feita cativa, extinta e vencida pelo amor.

17. Compreendemos assim, agora, o que Maria se tornou pela concepção; a saber, uma verdadeira virgem pura segundo a parte celestial, pois quando o coração de Deus se moveu e a aurora despontou nela, a luz da claridade e da pureza divinas brilhou nela; sua virgindade morta ou a sabedoria divina tornou-se manifesta e viva, pois foi preenchida pela virgindade divina, a saber, pela sabedoria divina. E nessa sabedoria e substancialidade divina, bem como na substancialidade morta e agora viva, o Verbo se fez carne no sulphur pelo centro da natureza, das essências do Pai e das essências de Maria; uma vida saindo da morte, um fruto perfeito, com as duas essências, visto que as duas essências formavam apenas uma. E porque Adão se tornou um homem, Cristo foi também um homem segundo o mundo externo; pois não é a imagem de Eva na essência feminina que deve permanecer, mas sim a imagem de Adão, quando ele era ao mesmo tempo homem e mulher. Mas como, no entanto, um dos sinais deve aparecer, segundo o poder do fiat exterior, e que também o herói em combate foi novamente estabelecido em todos os três princípios, esse herói recebeu o sinal masculino; pois o homem tem a essência do fogo, segundo a propriedade do Pai. Como o Pai é a força e o poder de todas as coisas e o Filho seu amor, assim se fez homem o Verbo na essência feminina, e foi, no entanto, um homem, para que seu amor pudesse extinguir a ira e a fúria no Pai; pois a essência de Vênus tem a fonte da água, e a mulher tem a essência de Vênus: então o fogo devia ser extinto pela água da vida eterna e as essências ardentes do Pai no fogo novamente extintas.

18. Reconhecemos agora Maria, a mãe de Cristo, segundo a carne, a alma e o espírito, na bênção, como uma pura, casta virgem; pois sua bênção consiste em que Deus se manifestou nela; ela carregou em seu corpo o Verbo da vida; foi isso que se moveu nela. Maria não moveu o Verbo, mas o Verbo moveu (tocou) Maria; tanto o fruto que ela gerou quanto sua alma, ou seja, a parte da substancialidade morta; sua alma foi então envolvida por substancialidade divina viva; não a parte terrestre ou o terceiro princípio, mas a parte celestial oriunda do outro princípio; de tal sorte que o terrestre apenas lhe estava apensado. Pois sua alma devia também, com o Verbo da vida, feito homem nela, passar pela morte e pela ira do Pai e entrar com ele na fonte celestial e divina. Seu ser exterior teve que morrer para a fonte terrestre, para que pudesse viver para Deus. E porque ela foi abençoada e carregou o propósito na aliança, seu corpo não pereceu, pois o celestial engoliu o terrestre e o mantém eternamente cativo, para a honra e glorificação do Senhor. É preciso que se lembre eternamente que Deus se fez homem nela.

19. Quanto àqueles que dizem que ela permaneceu inteiramente na morte, totalmente passada, deveriam observar bem sua razão, pois o que é altamente abençoado é incorruptível; sua parte celestial da substancialidade divina, que a abençoou, é incorruptível; caso contrário, seguir-se-ia que a substancialidade divina na bênção teria caído e morrido novamente, como aconteceu em Adão; morte que foi causa, no entanto, de Deus se fazer homem, a fim de que Ele trouxesse a vida. Segundo a vida exterior, a fonte terrestre, ela (Maria) de fato morreu; mas segundo a bênção, ela vive na substancialidade divina e também em sua própria substancialidade; não em quatro elementos, mas na raiz dos quatro elementos, em um único que encerra os quatro; no paraíso, o elemento puro, na substancialidade divina, na vida divina.

20. Por isso dizemos que Maria é maior do que qualquer filha de Adão, visto que Deus colocou o propósito de sua aliança nela e que, só entre todas as filhas de Eva, ela obteve a bênção, a saber, a pura castidade virginal, que foi destruída em todas as filhas de Eva. Mas quanto a ela, a virgindade repousou na aliança, até que o Verbo da vida a abençoou grandemente, então ela se tornou uma verdadeira, pura e casta virgem, na qual Deus nasceu. Pois Cristo também disse aos judeus: eu sou do alto, mas vocês são de baixo; eu não sou deste mundo, mas vocês são deste mundo (João 8:23). Se ele tivesse se feito homem em um vaso terrestre e não em uma pura, celestial e casta virgem, ele teria sido deste mundo; mas ele se fez homem na virgem celestial e a fonte terrestre apenas lhe estava apensa. Pois a essência das almas foi em nós, pobres filhos dos homens, infectada pela fonte terrestre, e ele devia introduzir nossa alma, em essência celestial, nele, através do fogo divino, no santo Ternário; tratava-se da alma, e porque ela era oriunda do Eterno, Deus não queria abandoná-la.

21. Se perguntarem, então, qual foi a matéria em que o Verbo e coração de Deus se introduziu e se fez um corpo, se foi uma matéria estranha, vinda do céu, ou a essência e a semente de Maria? — Nossa resposta é que jamais o coração de Deus esteve sem substância, pois sua morada é, desde a eternidade, a luz, e o poder na luz é o coração ou o Verbo que Deus pronunciou desde a eternidade; o falar foi o Espírito Santo de Deus que, com o falar, sai do poder da luz, da palavra enunciada, e vai no pronunciado; e o pronunciado é a maravilha, a sabedoria divina, que encerram (constituem) o espelho divino da sabedoria, em que vê o espírito de Deus, e em que ele manifesta as maravilhas.

22. Compreenda, pois, que o Verbo, emanado do coração de Deus Pai (cercado da celestial e casta virgem da sabedoria, habitando na substancialidade celestial), ao mesmo tempo se manifestou na essência e na substancialidade de Maria, ou em sua própria semente, entenda-se na semente humana; que ele tomou em si a semente morta e cega em Deus de Maria e a despertou para a vida: a substancialidade vivente veio na semi-morta (essência de Maria), e dela fez um corpo, não um corpo corruptível que devia perecer, mas um corpo eterno que devia subsistir para sempre; pois aqui foi novamente gerada a vida eterna.

23. Assim, a substancialidade (o ser) da eternidade em Deus, em toda a sua profundidade sem-fundo, e a substancialidade do Adão morto tornaram-se na humanidade uma substancialidade, inteiramente um só ser, de forma que a criatura de Cristo preencheu, ao mesmo tempo, por sua substancialidade, todo o Pai, que é sem limite e sem fundo. Mas a alma criatural permaneceu e é uma criatura; e segundo o terceiro princípio, enquanto criatura, este Cristo é uma criatura e um rei dos homens; do mesmo modo, segundo o outro princípio, como filho do Pai insondável. O que é o Pai em sua insondável profundidade, o Filho o é em sua criatura; pois o poder na criatura é um com o poder fora da criatura, uma substancialidade em que habitam os anjos e os homens; ela dá o paraíso e os deleites, mas na humanidade também a carne e o sangue; por isso ela é e permanece também uma criatura, mas incriada; nascida, porém, por uma parte, de Deus, desde a eternidade, e pela outra, da humanidade. Deus e o homem tornaram-se uma pessoa, um Cristo, um Deus, um Senhor, uma Santa Trindade, na humanidade, e ao mesmo tempo em toda parte; de maneira que quando vemos Cristo, vemos a Santa Trindade em uma imagem; sua criatura se assemelha a uma imagem, e em sua humanidade ele é nosso sumo sacerdote e rei, nosso irmão, nosso Emanuel; seu poder é nosso poder, se, contudo, formos de novo nascidos de Deus na fé nele. Ele não nos é estranho nem terrível, mas sim nossa essência de amor; ele é, por sua virtude, a restauração de nossas almas, nossa vida e os deleites de nossas almas; quando o encontramos, encontramos nossa ajuda, assim como Adão deveria encontrá-lo, ele que se deixou enganar e encontrou finalmente uma mulher, da qual disse: isto é carne de minha carne e osso de meus ossos; depois do que, a tomou por companheira (Gênesis 2:23).

24. Assim, quando nossa alma o encontra, ela diz: Eis minha virgem que eu havia perdido em Adão e que havia sido transformada em mulher terrestre; agora, reencontrei minha querida virgem, oriunda de meu corpo, e não a deixarei mais ir; ela é minha, minha carne e meu sangue, minha força e minha vida, que eu perdi em Adão; eu a guardarei. Ó, um amável apego! Doce inqualificabilidade, beleza, fruto, força e virtude!

25. A pobre alma encontra então a essência de sua luz perdida e sua querida virgem. A mulher encontra o nobre esposo que a matriz de Vênus sempre desejou ardentemente, mas só encontrou um sulphur masculino terrestre, e teve que se deixar engravidar de semente terrestre. Aqui ela recebe a essência do verdadeiro fogo, a verdadeira essência masculina; de modo que ela se torna também uma verdadeira virgem viril, tal como era Adão na inocência.