Filo – Querubins (Zolla)

ZollaMO1

49. “Não me chamaste como tua casa, teu pai e esposo da tua virgindade?” (Jer. 3:4). Assim se diz com ênfase que Deus é uma casa — a morada incorpórea das ideias incorpóreas, pai de todas as coisas conjuntamente, como seu progenitor, esposo da Sabedoria, que lançou a semente da felicidade para o gênero mortal em terra boa e virgem ]. Convém que Deus converse com a natureza verdadeiramente virginal, intacta, não corrompida por contatos impuros; o oposto ocorre conosco. Pois a união dos seres humanos voltada à procriação transforma virgens em mulheres. Mas quando Deus começa a se aproximar da alma, torna virgem novamente o que antes era mulher, ao remover as paixões degeneradas e efeminadas que a castraram e plantar em seu lugar as virtudes autônomas e imaculadas.

15. Mas mesmo uma alma virginal pode ser violentada por paixões incontinentes, por isso o oráculo cuida em falar de Deus como esposo não de uma virgem, mas da “virgindade” (Jer. 3:4) — ideia sempre igual a si mesma… Pois então, alma do homem, que deverias viver a vida virginal na casa de Deus, apegada à sabedoria, em vez disso te afastas delas e abraças os sentidos que te roubam a virilidade e te maculam? Por isso produzirás aquela ruína e confusão: Caim, o fratricida, o maldito, a posse que não dá posse. Pois Caim significa “posse”.

17. concebendo e ficando grávida, dá à luz o pior mal da alma: os pensamentos vãos. A mente acreditou que fosse sua posse tudo o que via, ouvia, cheirava ou tocava, que fosse toda sua invenção e produção.

20. …embora a Mente não possa nem possuir a si mesma, nem mesmo conhecer-se em sua essência. E ainda assim, se presta fé aos sentidos e à sua capacidade de se apoderar dos objetos, nos dirá que crê poder evitar o erro na visão, na audição e nos outros sentidos.

21. Os pensamentos são os filhos particulares da alma, e quando os afirmas como teus, não estás louco? Tuas melancolias e paranoias e as esquizofrenias (phrenon ekstaseis), as conjeturas infundadas, as imaginações enganosas das coisas, as opiniões irreais, oníricas, que geram sozinhos espasmos e palpitações, e a doença companheira da alma — o esquecimento — e outras coisas mais numerosas que arruínam teu domínio mostram que estes não são bens teus, mas de outro… Moisés diz que se o servo responder: “Amei meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero sair livre” (Êxodo 21:5-6), será levado ao tribunal (critério) de Deus, e tendo Deus por juiz, sua petição será homologada, mas antes lhe furarão a orelha com uma sovela, para que não receba a mensagem divina da liberdade da alma.

23. …quem cultiva familiaridade (com os sentidos e os filhos da mente: reflexão, raciocínio, juízo, deliberação, conjetura) não pode ter sonhado com a liberdade. Só com a fuga e alienação (allotriosis) deles se pode tornar destemido… Esqueces, ó insensato, que aquele que no mundo (èn genesi) crê perseguir está sendo perseguido?

24. …Pois foi o inimigo que disse: “Perseguirei e alcançarei”. Qual inimigo mais funesto para a alma do que aquele que, em sua vanglória, atribui a si mesmo o que é próprio de Deus? E é próprio de Deus agir (poiein) — não é justo atribuí-lo a uma criatura, a quem cabe o padecer (praschein). Quem o aceita como coisa doméstica e necessária suportará o que lhe ocorre, ainda que com paciência, mas quem o julga uma alienação será punido como Sísifo, esmagado por um peso vasto e sem esperança, incapaz de erguer a cabeça, oprimido por todos os temores que o assaltam e prostram, agravando cada desgraça com a abjeta paixão da alma degenerada e efeminada ].

26. …Este é o dogma: só Deus celebra verdadeiramente… por isso Moisés frequentemente em suas leis chama o sábado, que significa repouso, de “sábado de Deus” (Êxodo 20:10, etc.), não do homem… porque só há uma coisa no universo que pode repousar: Deus. Mas Moisés não dá o nome de repouso à mera inatividade (apraxia), pois a causa de todas as coisas é ativíssima por natureza — nunca cessa de produzir as coisas mais belas. O repouso de Deus é uma energia produtiva sem paixões vis, com a mais despreocupada facilidade; até o sol, a lua, o céu inteiro e o cosmos não têm autonomia e, movendo-se, girando continuamente, podemos dizer com justiça que padecem… Mas Deus está isento de fraqueza, ainda que produza todas as coisas, e não cessará por toda a eternidade de repousar. Assim, o repouso pertence plenamente a Deus, e só a Deus.

27. Por isso demonstramos que a celebração Lhe pertence, e toda festa — semanal ou por outra causa — é Sua, não do homem. Em toda festa e celebração entre nós, o que há para admirar e buscar com tanto afã? A impunidade, o relaxamento, a trégua e folga, as canções desavergonhadas da embriaguez, as procissões bacantes em bando, os adornos, as carícias (thrypsis), o ficar fora de casa, as vigílias noturnas, os prazeres inconvenientes, os acasalamentos diários, as bravatas ultrajantes, os ascetismos da dissolução (askeseis akrasias), os exercícios de imbecilidade, a diligência das vergonhas, a depravação completa do belo, o ficar acordado à noite por volúpias insaciáveis, o sono durante o dia — quando o que é útil e moderado é considerado exagero, e é tido como natural a inversão (enallage) dos atos; quando a virtude é escarnecida como nociva, a maldade abraçada como proveitosa; quando as ações a fazer são desonradas e honradas as que não se deve fazer; quando a música, a filosofia e toda educação (paideusis) — esses sinais divinos da alma divina — estão mudos, enquanto só as artes medianas ou prostituídas fazem discursos retóricos aos prazeres do ventre e abaixo do ventre.

28. Tais são as festas dos que se chamam alegres.