JOAQUIM CARREIRA DAS NEVES — ESCRITOS DE SÃO JOÃO (CNEJ)
VIDE: Diálogo com a samaritana; Bom Samaritano
O autor do quarto evangelho, na sua prossecução de apresentar Jesus como a alternativa “divina” ao judaísmo, e, por ele, ao mundo, entrega-nos a belíssima narrativa do quarto capítulo sobre o novo sinal relacionado com a religião dos samaritanos.
Começa por afirmar que Jesus deixou a zona geográfica da Judeia para se refugiar na Galileia porque “os fariseus tinham ouvido que Jesus fazia mais discípulos e baptizava mais do que João” (v. 1).É realmente estranha tal afirmação Jesus tem medo dos fariseus por “fazer mais discípulos e batizar mais do que João Batista”. A estranheza da afirmação tem, no entanto, um certo ar de verdade histórica porque logo a seguir, como que em parêntesis, corrige:“embora não fosse Jesus a baptizar, pois os discípulos é que baptizavam” (v. 2). Não se trata dos “discípulos” de João Batista, mas dos de Jesus, o que significa que Jesus abrira uma brecha na unidade dos discípulos do Batista. Os Sinópticos nada dizem sobre o assunto, mas, partindo do princípio que Jesus passou algum tempo no círculo da comunidade do Batista e trouxe ao de cima a questão teológica sobre a natureza do batismo (3, 25-26), é natural que alguns discípulos do Batista aderissem às teses de Jesus. Neste particular, como já vimos, o quarto evangelho estaria mais de acordo com a história fatual do que os Sinópticos.
Mas a história fatual termina aqui porque o que se segue é um grande sinal do quarto evangelho em estilo de narrativa teológica-cristológica. De fato, a narrativa, depois de apresentar as ordens de Jesus aos discípulos para comprarem, em Sicar, o necessário para comerem, e depois de apresentar um grande diálogo de Jesus com uma mulher samaritana, que, como consequência, leva os samaritanos a convidarem Jesus a ficar com eles “dois dias”, acabam por acreditar em Jesus como “o verdadeiro Salvador do mundo”: “Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que ele é verdadeiramente o Salvador do mundo” (v. 42).
Já dissemos que tal “conversão” não se pode tomar como verdade de história fatual porque contradiz os dados de Ac 1,8 (onde o Ressuscitado determina o “mandato” apostólico: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, toda a Judeia, Samaria e até aos confins da terra”), de Ac 8,14-25 (foi o diácono Filipe o primeiro a converter alguns samaritanos), de Lc 9,51-56 e paralelos (os samaritanos recebem mal Jesus) e de Mt 10,5 (Jesus proíbe os doze de evangelizar os pagãos e os samaritanos). A cena do quarto evangelho é uma grande parábola em ação do seu autor, uma espécie de “midrache”, para apresentar Jesus como o verdadeiro Salvador, não apenas dos judeus, mas de todo o mundo. Se os samaritanos assim acreditam, também os fariseus e demais judeus e pagãos devem acreditar.
Mas o autor da narrativa não parte do nada, porque tem como cenário a história da Samaria e a história de cristãos joanicos samaritanos. Este aspecto fica claro com a frase do v. 4: “Precisava de passar pela Samaria”, conjuntamente com a frase do v. 39: “Porque eu enviei-vos a ceifar o que não trabalhastes; outros se cansaram a trabalhar, e vós ficastes com o proveito da sua fadiga.”
Em João (como também em Lucas), o verbo dei, ser preciso, relaciona a pessoa de Jesus com o plano divino da salvação. No imperfeito, significa que Jesus precisava daquele encontro com a mulher samaritana para que a sua obra de revelação não deixasse nada em atraso. O verbo aparece mais duas vezes neste capítulo com o mesmo sentido (v. 20: “Dizeis que Jerusalém é o lugar onde é preciso adorar”; v. 24: “Deus é espírito; por isso, os que o adoram é preciso que o adorem em espírito e verdade”), e o mesmo se diga de 3, 7 (“E preciso nascer de novo”), 3, 14 (“E preciso que o Filho do Homem seja levantado…”), 9,4 (“É preciso que eu faça as obras daquele que me enviou”), 10,16 (“Tenho ainda outras ovelhas…, é preciso que venham a mim…”; cf. ainda 12,34 e 20,9). Estamos, portanto, diante duma narrativa teológica. O v. 39, já anotado, no contexto maior dos vv. 35-38, tem em vista o tempo dos samaritanos cristãos na altura em que o autor escreve. A “ceifa” cristã joanica deve ter sido bastante significativa. Entre as várias comunidades joanicas devemos pressupor uma na região da Samaria. Não é por acaso que existe uma estreita ligação entre a “necessidade divina de revelação” do evangelho de Lucas e de João com o verbo dei, que pressupõe o “mandato” missionário de Ac 1, 8: “Sereis minhas testemunhas… em Samaria”. Toda a narrativa se encaminha para a realização dos tempos escatológicos da vinda do Messias que, segundo a mentalidade dos samaritanos, a partir de Dt 18, 18, se chamaria Taheb, aquele que tudo sabia (v. 25: Disse-lhe a mulher: “Eu sei que o Messias, que é chamado Cristo, está para vir. Quando vier, há-de fazer-nos saber todas as coisas. ”1).
A questão religiosa de Samaria começa depois da morte de Salomão. Este usava e abusava dos trabalhadores das tribos do Norte. O seu sucessor Jeroboão (931-91O a. C.) agravou ainda mais a situação, desencadeando-se, assim, o cisma entre o Norte e o Sul. Em 722 os assírios conquistaram o reinado do Norte, deportaram grande parte dos judeus para a Assíria e colocaram na região de Samaria colonos assírios. Assim nasceu o sincretismo religioso entre a religião dos assírios e a de Israel, a inimizade política e religiosa entre os dois povos, o aparecimento, mais tarde, durante o império helênico, do templo de Garizim que rivalizava com o de Jerusalém. Os cinco maridos de que fala o v. 18 (“tiveste cinco maridos e o que tens agora não é teu marido”) refere, com toda a probabilidade, os colonos pagãos assírios de cinco regiões e respectivas religiões (cf. 2R 17,24-34; cf. v. 24: “O rei da Assíria mandou vir gente da Babilônia, de Cuta, de Ava, de Hamat, de Sefarvaim, em lugar dos filhos de Israel…”). As várias tentativas políticas e religiosas de reis, sacerdotes e profetas (cf. Ez 37, 16-19) em reunir as dez tribos do Norte com as duas do Sul fracassaram. A última tentativa partiu das tribos do Norte por altura do regresso dos judeus do exílio da Babilônia. As tribos do Norte ofereceram as suas ajudas aos judeus do Sul para a reconstrução do Templo de Jerusalém, mas os responsáveis recusaram tais ofertas e agudizaram ainda mais as rivalidades com a proibição dos casamentos mistos no reinado do Sul (cf. Es 4,1-5; 9-10). A reconquista do reinado do Norte só aconteceu com o rei João Hircano em 107 a. C.,mas o sincretismo religioso permaneceu bem como o ódio entre os dois povos. O autor do Eclesiástico em 50,25-26 fulmina os samaritanos desta maneira: “Dois povos abomina a minha alma / e o terceiro nem sequer é um povo: / os que vivem no monte Seir e os filisteus, / e o povo insensato que habita em Siquem.”
É neste contexto histórico e religioso do passado de Israel, juntamente com o contexto dos samaritanos joanicos, ao tempo do autor do quarto evangelho, que devemos compreender a nossa narrativa do sinal da Samaritana, que podemos estruturar em três grandes blocos:
JESUS REVELA-SE A UMA MULHER SAMARITANA (4,1-26)
JESUS REVELA-SE AOS DISCÍPULOS (4, 27-38)
JESUS REVELA-SE AOS SAMARITANOS (4, 39-42)((Alguns autores estruturam a narrativa do cap. 4 da seguinte maneira: 1) Jesus e a mulher samaritana I (4, 1-15; 2) Jesus e a mulher samaritana II (4, 16-30); 3) Comentário de Jesus (4, 31-38); 4) Jesus e os samaritanos (4, 39-42). É natural que a narrativa tenha sofrido alterações no período da tradição oral. Como veremos, a lógica interna a nível textual e semântico é complexa.