BOOSCO DELEITOSO — PARTE I — CAPÍTULO V
34. Indo nós por aquele deserto, achamos uma casa de três cantos, mui formosa e mui bem lavrada de pedra mármore mui branca; e o telhado dela era todo cor de azul, com estrelas de ouro; e era estradada de jaspes de muitas cores; e em cada um canto estava uma cadeira, assim que eram três cadeiras de marfim lavradas mui formosamente com ouro mui luzente; e em cada uma das cadeiras estava uma donzela mui formosa; e todas três eram vestidas de semelhantes vestiduras, de muitas e desvairadas cores, e todas tinham mantos de ouro e nas cabeças coroas de ouro com pedras preciosas.
35. Uma delas tinha uma pedra esmeralda mui verde; e a outra tinha uma mui grande pedra safira cor de céu, e a outra uma pedra rubi, nas coroas. E então entramos na casa, eu e meu guiador, e eu fiz mui humildosamente reverência a cada uma das donzelas, e elas não curaram de mim nem somente não me olharam, mas com o meu companheiro faziam elas grande prazer.
36. E eu lhe perguntei quem eram aquelas três donzelas; e ele disse que aquela que tinha a pedra esmeralda na coroa era a virtude da Fé, porque como a esmeralda é a pedra mais verde, bem assim a fé nunca é seca nos eleitos. E a outra, que tem a pedra safira, é a Esperança, porque a pedra safira é cor do céu, e a esperança é das coisas celestiais, E a outra donzela, que trazia a pedra rubi, que é cor de fogo, esta é a Caridade, que arde em amor de Deus como o fogo.
37. Então me lancei em terra ante cada uma das donzelas e pedi-lhe mui humildosamente que me acudisse às minhas coitas, pensando que acharia nelas mais piedade. Mas elas me lançaram diante de si mais cruelmente que as primeiras donas. E disse-me a Fé:
— Não te acudirei nem te posso consolar, porque tu me mataste em ti por más obras.
E disse a Esperança:
— Não te darei conforto, pois tu puseste a tua esperança nas vaidades do mundo.
E disse a Caridade:
— Não te darei remédio, pois o teu amor foi em amar o mundo e as coisas terreais.
38. Quando eu isto ouvi, fui tão coitado, que não sabia que fazer nem que dizer, e quisera-me tornar para a cidade donde saíra e fazer em minhas mesquinharias alagado como jazia. E o meu confortador companheiro não me quis deixar, mas confortava-me quanto podia com boa esperança de misericórdia do Senhor Deus, e tomou-me pela mão e ajudava-me a suster, pois eu era mui fraco; e andamos mui grande caminho mui fragoso, e passamos muitas pontes e muitos rios mui fundos e de mui grande temor.
39. E chegamos a um vergéu comprido de árvores mui formosas e que tinham muitos frutos de muitas guisas; e havia aí muitas fontes de água mui clara. E, acerca de uma mui formosa fonte, estava uma videira carregada de uvas brancas; e, sob aquela videira, andava uma donzela mui graciosa e de mui bom donaire; e ela andava vestida de panos verdes, e cruzes de ouro neles, quantas cabiam nas vestiduras. E em sua cabeça trazia uma grinalda de ouro com umas pedras preciosas, que chamam jacintos; e em uma sua mão trazia um ramo de oliveira mui verde com olivas maduras; e na outra mão, uma buceta de ouro; e o manto que a cobria era tão grande, que podia bem cobrir muitas pessoas, e era tal como dito hei. E quando nós chegamos a ela, mostrou-nos mui bom semblante e já quanto doloroso; e recebeu-nos mui graciosamente.
40. E eu perguntei ao meu guiador quem era aquela dona; e ele me disse:
— Esta é a Misericórdia, que trouxe o Filho de Deus do céu e o vestiu de carne; e ela o vendeu para remir os pobres. Esta o humilhou até abaixar-se para lavar os pés dos homens. Esta é a cruz de ouro, que trouxe Jesus Cristo dentro em si; e porém traz ela o seu manto com cruzes de ouro e de cor verde, porque ela é mais deleitosa aos apressados e consola os tristes; e porém traz em sua coroa pedras de jacinto, que há virtude de confortar e tirar a tristeza e as vãs suspeitas. Esta traz o unguento e a medicina para os coitados; e porém traz o ramo e as olivas na mão. A misericórdia é mui poderosa ante Deus, pois ela lhe faz revogar as suas sentenças; ela luta com o Senhor Deus; ela vence o Senhor Deus.
41. Quando eu, mesquinho, isto ouvi, lancei-me em terra ante ela, e roguei-lhe mui humildosamente que me acudisse. E ela respondeu com semblante mui gracioso e doloroso e disse:
— Filho, eu te ajudarei e irei contigo ante o Senhor das misericórdias e Deus de toda consolação. E como quer que tu não sejas merecedor do que demandas, mas eu o rogarei e forçarei que se amerceie de ti e dê remédio e consolação às tuas mesquinharias, se tu fores para receber a santa graça; pois já o eu forcei de maior força que esta; e assim farei agora, pois ele faz mui de grado tudo aquilo que lhe eu rogo.
42. E tanto que ela isto disse, tomou-me pela mão; e o anjo, meu guiador, me tomou por outra mão, e levaram-me por um vergéu deleitoso, em que havia árvores com frutos e ervas com flores; e o vergéu era mui grande. E, em meio do vergéu, estava uma casa mui alta e mui formosa e mui grande; e as paredes da casa eram todas de cristal tão claro, que os que dentro estavam viam por elas tudo o de-fora mais claramente que se não tivesse paredes. A casa era coberta de uma abóbada mui formosa, de cantos talhados, e bem cerrada e mui ricamente lavrada. E em redor da casa estavam canos de prata, e saíam das paredes da casa mui ricamente lavrados, e haviam as bocas em figuras de desvairadas animálias mui formosas. E pelas bocas destes canos saíam águas mui claras abundantemente, de um odor tão precioso, que passava todos os bons odores das coisas do mundo, que bom odor dão.
43. Estas águas caíam naquele vergéu pelas ervas e pelas flores, que eram de muitas maneiras e de muitas cores, e pelos pés das árvores abastadamente. E desde aí caíam por todos os campos em redor a perto e a longe e regavam os prados e os pães e as vinhas e os campos e as árvores, que estavam nos bosques. E a mui graciosa donzela e o meu guiador me levaram dentro à casa; e ela era estradada de pedras lavradas de muitas cores: vermelhas e brancas e de outras muitas cores mui formosas.
44. E esta casa era tão nobre e tão formosa, que eu não poderia dizer nem pensar os labores e a nobreza dela; pois não a podia claramente ver, porque a minha vista era embargada e tenebrosa de trevas de muitas guisas. E em meio da casa estavam uns emparamentos tão formosos e tão ricamente lavrados, que era mui grande maravilha. Mas uma cadeira de prata, que estava aí entre os emparamentos, era tão sutil e ricamente lavrada, que bem parecia que não era feita por homem.
45. E nela estava uma dona mui formosa e bem guarnecida, vestida de panos de muitas e mui formosas cores, tecidos com ouro em figuras mui sutis, e mui bem lavrados; e eram forrados com uma pena cor de ouro, em guisa que os cabelos da pena eram mais esplendecentes que ouro. E a face dela era mui alva e corada e os seus cabelos compridos; e uma coroa mui esplendecente tinha em sua cabeça, com muitas pedras preciosas de muitas cores, que eu não sei bem divisar nem entender claramente as cores delas; e a dona era assim coberta com um grande manto e mui formoso, de cor honesta; e ela tinha um arco de besta em sua mão, e na outra mão uma bolsa cheia, não sei de que coisas.
46. E eu perguntei ao meu guiador quem era aquela dona, e ele me disse:
— Aquela é a santa Ciência da Escritura de Deus, que é senhora de todas as ciências; e porém as suas vestiduras são de muitas cores, e a sua coroa tem pedras preciosas de muitas guisas. E ela contém em si o testamento novo, que inclina e amolenta a dureza da lei velha; e porém a corda do arco, que o amolenta e inclina, demonstra o testamento novo; e contém em si as outras santas doutrinas, e dá riquezas espirituais e consolações. E porém tem aquela bolsa em sua mão, que é cheia de todas as consolações e remédios e confortos que cumprem ao homem; e o Filho de Deus, que é sabedoria perdurável e de sempre, alumia a santa escritura com o seu esplendor e a santa ciência dos santos doutores e sabedores.
47. Assim estava aquela dona mui rica e mui formosa, e arredor dela estavam mui ricos estrados de panos de sirgo mui formosos e mui bem lavrados; e neles estavam assentados muitos homens honestos e honrados, de desvairadas idades e de desvairadas vestiduras e em desvairadas guisas. E uns deles estavam à destra parte, outros à sestra, e eu perguntei ao meu guiador que companhias eram estas, que estavam assim. E ele me disse que eram os santos doutores e os sabedores, assim cristãos como gentios e católicos, que alguma coisa escreveram na escritura de Deus, e eram ali ajuntados àquela hora para, com ela, consolarem e confortarem todos os tristes e os coitados e lhes mostrarem remédios para suas coitas e tribulações, se eles quiserem tomar o seu conselho e doutrina e obedecerem aos seus dizeres.