ATFO Não se pode duvidar de que Ptolomeu, filho de Lagos, apesar de algumas violências que assinalaram o início de seu reinado e às quais foi forçado pela conspiração de seus irmãos, fosse um grande príncipe. O Egito não teve época mais brilhante. Viram-se florescer ao mesmo tempo a paz, o comércio e as artes, e cultivar as ciências, sem as quais não há verdadeira grandeza em um Império. Foi pelos cuidados de Ptolomeu que se ergueu em Alexandria essa soberba biblioteca que Demétrio de Falero, a quem ele confiara sua guarda, enriqueceu com tudo o que a literatura dos povos oferecia então de mais precioso. Há muito tempo os judeus haviam se estabelecido no Egito. Não concebo por que espírito de contradição os sábios modernos querem absolutamente que, em um concurso de circunstâncias como o que acabo de apresentar, Ptolomeu não tenha tido o pensamento que lhe atribuem de fazer traduzir o Sépher para colocá-lo em sua biblioteca 1). Nada me parece mais simples. O historiador Josefo é certamente muito credível nesse ponto, assim como o autor do livro de Aristeu, apesar de alguns enfeites com que carrega esse fato histórico. Mas a execução desse desígnio podia oferecer dificuldades; pois sabe-se que os judeus comunicavam dificilmente seus livros e guardavam sobre seus mistérios um segredo inviolável. Era mesmo entre eles uma opinião recebida que Deus punia severamente os que ousavam fazer traduções em língua vulgar. O Talmude relata que Jonathan, após a emissão de sua paráfrase caldaica, foi vivamente repreendido por uma voz do céu por ter ousado revelar aos homens os segredos de Deus. Ptolomeu foi, portanto, obrigado a recorrer à intercessão do sumo sacerdote Eleazar, interessando sua piedade pelo resgate de alguns escravos judeus. Esse sumo sacerdote, seja porque estivesse tocado pela bondade do rei, seja porque não ousasse resistir a sua vontade, enviou-lhe um exemplar do Sépher de Moisés, permitindo-lhe que o fizesse traduzir em língua grega. Não restava senão escolher os tradutores. Como os essênios do monte Moriá gozavam de uma reputação merecida de ciência e santidade, tudo me leva a crer que Demétrio de Falero lançou os olhos sobre eles e lhes transmitiu as ordens do rei. Esses sectários viviam como anacoretas, retirados em celas separadas, ocupando-se, como já disse, do estudo da natureza. O Sépher era, segundo eles, composto de espírito e corpo: pelo corpo entendiam o sentido material da língua hebraica; pelo espírito, o sentido espiritual perdido para o vulgo 2). Pressionados entre a lei religiosa que lhes proibia a comunicação dos mistérios divinos e a autoridade do príncipe que lhes ordenava traduzir o Sépher, souberam sair de um passo tão arriscado: pois, dando o corpo desse livro, obedeceram à autoridade civil; e, retendo o espírito, à sua consciência. Fizeram uma versão verbal tão exata quanto puderam na acepção restrita e corpórea; e para se proteger ainda mais das acusações de profanação, serviram-se do texto e da versão samaritana em muitos lugares, e todas as vezes que o texto hebraico não lhes oferecia obscuridade suficiente. (…). Tal é a origem da Bíblia. É uma cópia em língua grega das escrituras hebraicas, onde as formas materiais do Sépher de Moisés estão suficientemente bem conservadas para que aqueles que nada veem além delas não possam suspeitar das formas espirituais.