Duas Criações [OASI]

ANTONIO ORBE — Antropologia de São Irineu

Entre gnósticos, o anthropos adquire uma dimensão divina, prévia ao aparecimento do mundo sensível.

Aparte a série de anthropos (primus, secundus, tertius) que forma os três grandes anéis da estrita teologia (Irineu de Lião I, 30), os gnósticos sentiam-se livres para multiplicar “homens” entre os arcontes dos céus planetários, outorgando ao termo anthropos um alcance vasto e equívoco. A configuração do homem sensível respondia, segundo eles, a formas prévias, que passavam por anjos (arcontes, potestades, etc.) assim como por homens etéreos, celestes. A dualidade platônica entre o homem terreno e celeste, entre o material e o intelectual, era facilmente absorvida no esquema cósmico das seitas heterodoxas. Havia lugar para tantas espécies humanas quanto fossem os estratos físicos do universo (faz lembrar René Guénon: ESTADOS MÚLTIPLOS DO SER).

Algumas famílias gnósticas reduziam a três as regiões do mundo:

Para Marcion, o homem único foi modelado pelo Demiurgo, e alentado com algo de Sua própria substância. A dualidade entre Demiurgo e Pai (= Deus bom) deixa intacta a unidade da linhagem humana, e só compromete — a mercê das tendências superiores — a história da Salvação.

Entre gnósticos partidários da pluralidade do homem e marcionitas, defensores da unidade, se situa primeiramente Fílon e mais tarde Orígenes.

Fílon se volta inúmeras vezes em seus escritos sobre as duas notícias da criação, distinguindo duas criações:

Ressonâncias entre hermetistas e entre gnósticos cristãos: projeta-se na região divina do Pleroma a ação mais nobre, redutível à genesis (poiein) e a imperfeita do Kenoma à infradivina (arcôntica), redutível à plasis. Deus faz (poiein) e o Demiurgo plasma (plassei).

Orígenes “batiza” a dupla criação filoniana. Esta passou assim em boa parte para Orígenes, onde se revestiu de elementos singularmente paulinos. Binômio de homens ideal e corpóreo converteu-se no homem interior e exterior. Contrastou:

qualidades platônicas do intelecto (nous)

categorias comuns ao homem sensível (aisthetos) e material do platonismo

Consequências deste “batismo” que submeteu Orígenes à doutrina de Fílon da dupla criação:

Se, com efeito, o anthropos de Gen 1,26s coincide com o homem interior de 2Cor 4,16 (invisível, incorpóreo, incorruptível, imortal e divino), abre-se a perspectiva para um mundo de noes (= anthropoi) com economia própria de Saúde preliminar à criação sensível, e independente de toda dispensação carnal. Juntamente, se o indivíduo plasmado de Gen 1,27 corresponde ao homem exterior de São Paulo (corpóreo, visível, corruptível e mortal), as circunstâncias de sua aparição, por conta de uma falta anterior no reino mental, impõem uma antropologia sobrenatural aditícia, com uma série de mistérios, tais como a encarnação (paixão, morte e ressurreição de Cristo) e a ressurreição da carne, distantes da perspectiva inicial.

Na dispensação relativa aos anjos e aos homens, ausente da exegese origeana de Gen 1,26s, não há diferença entre anjos e homens, nos desígnios primeiros de Deus. O anthropos factus (poietheis) situa-se a um nível anterior a tais diferenças específicas. A irmandade primigênia de anjos e homens, longe de ter fundamento algum na ordem natural, denunciaria uma complexidade alheia ao Criador.

Orígenes introduziu o pecado entre uma e outra criação. Comprometeu a origem do mundo sensível. Deixou no ar todos os mistérios vinculados ao plasma humano.