Boosco Deleitoso I-XIV

BOOSCO DELEITOSO — PARTE I — CAPÍTULO XIV

112. Então disse a fermosa dona a um daqueles homens:

— Dom Jerônimo, pela caridade de Deus, ensinai a este pecador alguma coisa do que sabeis da vida solitária.

Então se levantou um glorioso varão, vestido em hábito de ermitão, e em sua cabeça tinha uma coroa de ouro, redonda, mais clara que o sol, e trazia em suas mãos dois livros mui ricamente guarnecidos.

113. E este glorioso varão se levantou em pé e começou sua razão mui graciosamente nesta guisa contra mim:

— Porque tu, homem pecador e apressado, trespassaste muitos espaços da tua vida nas ondas do mar deste século e a nau da tua consciência e da tua alma e do teu corpo muitas vezes foi quebrantada com o revolvimento das tormentas das mui fortes tentações, e muitas vezes foi furada com os topas dos penedos da dureza e crueza dos graves pecados, e pois que tantas vezes perigaste no mar deste mundo, eu te conselho e amoesto, que te partas e te saias dele, e entres no ermo e nos lugares apartados, assim como em porto seguro.

114. E ali haverás pão para comeres; e ali haverás verças que regarás por tuas mãos; e ali haverás leite, que é viço e deleitação dos moradores dos montes e dos ermos. E estes manjares, como quer que sejam vis e de pequeno preço, porém são viandas e mantimentos de inocência e sem pecado.

115. E vivendo tu assim no ermo, com tais comes, o sono não poderá estorvar-te da oração, nem a fartura te tirará de leres por santos e devotos livros. E se fizer grande quentura, as ramas da árvore apartada te farão sombra. E se for tempo do outono, a temperança do ar e as folhas das árvores, que jazem estendidas na terra, darão a ti lugar de folgança.

116. E no verão verás os campos pintados mui fermosamente com flores de muitas maneiras. E, entre os cantares das aves, cantarás tu os salmos mui docemente. Se for o campo frio e coberto de neves frias, não comprarás lenha no ermo, mas quente vigiarás ou dormirás, e ao menos não regelarás com frio. Haja para si a cidade de Roma, e as outras cidades, seus arrojos e seus trasfegos e suas luxúrias e suas visitações de mulheres e de homens.

117. Hajam para si todos outros suas riquezas; bebam por vasos lavrados com pedras preciosas, resplandeçam com vestiduras de sirgo e deleitem-se com o louvor e com o prazenteio do povo, e hajam outras muitas e desvairadas deleitações. Mas as riquezas daqueles que por Deus moram no ermo são em pensar e meditar na lei do Senhor, de dia e de noite, e bater à porta que não parece, convém a saber, rogar humildosamente à misericórdia do Senhor Deus e receber os pães das graças e consolações da Trindade, que o Senhor dá àqueles que o afincadamente rogam. Estas são as riquezas daqueles que santamente fazem vida solitária.

118. E outrossim calçam e andam sobre as ondas do século sem perigo, indo o Senhor ante eles por seu guiador. Mas na cidade veem a nós outros para nos visitar e, se os vemos, perdemos nosso silêncio, falando com eles; e se os não queremos ver, caímos em soberba, e algumas vezes imos às portas dos soberbosos, para os visitar assim como eles fazem a nós; e entramos pelas portas pintadas, recebendo palavras de porfia que dizem de nós os servidores dos senhores.

119. Mas na casa do Senhor, que é no ermo, que é quinta de Jesus Cristo, sempre é silêncio, afora em cantar ou dizer salmos. Ali o lavrador anda com seu arado, cantando aleluia e louvores ao Senhor Deus. E o segador, que anda suando, com os salmos toma folgança; e aquele que anda podando a vide, canta alguma coisa dos salmos de David. Que direi do ermo e da vida solitária? Certamente eu digo que o lugar do ermo é forma da doutrina e o apartamento é pregação de virtudes. Espantosa coisa é ao monge a vila ou castelo, mas o ermo é tal como o paraíso.