Boosco Deleitoso I-VI

BOOSCO DELEITOSO — PARTE I — CAPÍTULO VI

48. Depois que me isto disse o meu guiador, começou aquela dona mui fermosa a dizer em voz mui doce e mui alta, dizendo:

— Vinde a mim, todos aqueles que sois em trabalhos e tristeza, e eu vos consolarei. Que o espírito do Senhor Deus e a sua claridade é sobre mim e Ele me enviou para amezinhar os contritos de coração e para consolar os tristes e os chorosos, para lhes dar óleo de misericórdia pelo luto que houverem, e para lhes dar manto de alegria pelo espírito do choro.

49. Tanto que esta voz foi ouvida, vieram ali grande multidão de homens, e ajuntaram-se ao redor daquela casa; e eles vinham todos mui tristes.

Então a mui piedosa donzela, de que já falei, que era a Misericórdia, chamou-me, e os outros todos, que fôssemos após ela. E nós assim o fizemos, e meteu-nos naquela casa da luz, e a casa era tão grande que bem cabíamos nela sem embargo que fizessem uns aos outros; e era mui clara de dentro e de fora toda, assim como vos contei; que mui mais claramente podia homem ver pelas paredes da casa o que dentro era, que sem elas.

50. Então nos apresentou a Misericórdia ante aquela dona mui fermosa, que era a santa Ciência da Escritura; e ela nos olhou com o semblante mui gracioso, e disse-nos:

— Meus filhos, cobrai vosso espírito e esforçai vossos corações, que por mim havereis consolação de vossas tristezas, se quiserdes crer os meus dizeres, que escreveram e disseram em mim e em minha ajuda os doutores e sabedores, católicos e gentis. Ora, meus filhos, dizei as razões de vossas tristezas cada um por si.

51. Quando eu, mesquinho pecador, isto ouvi, comecei a dizer:

— Ai de mim, mal-aventurado e mesquinho pecador, que até agora não achei nem um que houvesse de mim compaixão, nem achei quem me confortasse! Mas agora, Senhora, acorro-me ao regaço da vossa piedade e encomendo-me a vós com toda devoção, que me consoleis em minha tristeza e me deis remédio qual me cumpre, que não posso achar consolação.

52. Então começou a mui fermosa dona a pensar que diria, com os olhos baixos em terra; e bem parecia em sua face e em seu semblante, que era mui sabedora e mui entendida, e bem parecia avondosa para ensinar e aconselhar e dar consolação a todos homens do mundo, tanto era graciosa e aposta em sua razão.

53. Então levantou os graciosos olhos, e começou ela a falar com mui doces palavras, dizendo:

— Ah! meu filho, pois tu és assim triste e desejas consolação, porque não desejas a maior e melhor consolação que pode ser achada?

E eu lhe disse:

— Senhora, qual é essa consolação ou de quem a posso haver?

54. E ela me respondeu:

— Certamente esta consolação é daquele que é o melhor consolador que ser pode, o qual é Deus de toda consolação, que conforta os homens em toda tribulação, se da parte deles não for posto embargo, demandando com desejo consolação humanal e terreal. E porém, meu filho, se tu demandares a consolação do Senhor Deus e não puseres embargo a ela, logo haverás consolação comprida nesta vida presente e mui mais comprida na outra vida; que todo aquele que por Deus deixar qualquer consolação temporal receberá cêntuplo nesta vida, e na outra receberá vida e consolação perdurável; e assim o prometeu Ele. Mas confusão será àqueles que não creem as palavras do Senhor, que não serão defesos nem consolados por Ele; e confusão será àqueles que perderam a sofrença e deixaram as carreiras direitas e desviaram-se às más carreiras.

55. Que farão estes, quando o Senhor Deus começar de olhar por isto? Mas aqueles que temem o Senhor não são descrentes à palavra d'Ele; e aqueles que o amam guardarão a sua carreira; porém tu, meu filho, crê e guarda bem aquilo que disse o Salvador andando no mundo, que não há aí algum que deixar casas e irmãos ou pai ou mãe ou herdades, que não receba cem-tanto agora neste tempo, e depois haverá vida perdurável.

56. E assim como é dito destas coisas, bem assim se entende de qualquer outra coisa temporal, que o homem deixar por Deus, que receberá porém cem-tanto de consolação celestial. E porém tu, filho, não temas de despender tuas riquezas em serviço do Senhor, pois que tão grande ganho hás de receber. Trabalha de dar a esmola, e não retornes os teus olhos, quando vires o pobre; não desprezes a alma faminta e não sejas áspero ao pobre em sua pobreza; não aflijas nem atormentes o coração do pobre, e não perlongues o que hás de dar ao apressado; e não enjeites o rogo do tribulado.

57. E, filho, quando tu fores tal que te não deleite nem uma coisa terreal, então receberás abundância da consolação celestial e divinal; e segundo a multidão das dores que forem no teu coração, as consolações do Senhor alegrarão a tua alma; e bem-aventurado é aquele que não houve tristeza em seu coração e não caiu da sua esperança; e bem-aventurado é o varão que não escorregou em sua palavra e que não é aguilhoado de tristeza de pecado.

58. Filho, não sejas triste por falta de consolação terreal; que aquele que tem prestes a consolação terreal, mui a duras penas e com grande graveza se abstém de usar dela; e disto se costuma seguir que perde logo a consolação celestial. O prazer e a consolação da espiritual doçura, dentro na alma a sentirás quando houveres prazer e alegria dos verdadeiros bens que são dentro na alma; e então haverás prazer e consolação verdadeira e não curarás do prazer terreal.

59. E sabe por certo que a consolação do Senhor Deus é tão delicada, que não é dada àqueles que recebem outra consolação alheia; e porém pensa bem não curar de outra; e para mentes que assim aconteceu aos filhos de Israel em figura, que depois que comeram dos frutos da terra, logo lhes faleceu a maná do céu, que havia em si todo deleitamento e toda doçura e brandeza de todo sabor, por que se mostra que toda consolação divinal falece àquele que usa ou se farta da consolação terreal.

60. E porém tu, meu filho, não queiras receber consolação humanal, que não é digna para o teu espírito, que é mui nobre segundo a criação com que o Deus criou; que a tua alma e o teu espírito é criado para Deus tão somente; e, depois que se d'Ele partiu por pecado, não pode achar nenhuma coisa que o avonde, até que se torne a Ele. E no teu coração é a imagem de Deus e tu a descooraste encriando-a ao pecado; mas tu, reforma esta imagem fazendo nova a tua mente e a tua alma.

61. Ora te fica que busques alguma coisa que seja melhor que o teu coração para te reformares e haveres consolação; mas não acharás outra coisa senão Deus. E porém Maria Madalena disse aos anjos que a queriam confortar, quando não achou o Senhor no monumento: “Todos estes me são confortadores pesados; agravam-me e não me consolam. Eu busco o consolador e o criador. E porém grave me é de ver toda criatura; não quero eu ver anjos, nem quero ficar com os anjos, que me podem acrescentar a dor e não ma tirar de todo. Se lhes eu quiser responder a todas coisas que me eles queiram contar, temo-me que embargarão o meu amor.”

62. E dizendo a mui fermosa dona isto de Maria Madalena, começou dizer em voz alta e mui graciosa:

— Ó Maria Madalena, de bem-aventurado merecimento, ó! se todas as pessoas esposadas com Jesus Cristo fossem assim dispostas, não amariam palrar todo o dia com os mensageiros de Satanás, por haver a consolação mesquinha humanal. E porém tu, meu filho, sei bem certo que, se tu, por tua vontade, deixares as consolações humanais, acorrendo-te a Deus, não somente serás consolado, mas ainda haverás mui grande prazer e alegria, que ganharás.

63. E depois que fores renovado e perfeito da tua natureza em que foste criado, serás igual aos anjos de Deus, Senhor, isto há por certo todo homem que te serve, que, se em sua vida for provado, será coroado; que tu, Senhor, não te deleitas nas perdições dos homens, mas depois da tempestade fazes mansidão e assossego e, depois do choro e das lágrimas, lanças mui grande prazer; e quanto o homem é mais aflito pelo teu amor, tanto lhe dás mais doçura e consolação.

64. E tu, Senhor, que és pura verdade, disseste pela boca do teu profeta: “Fugirá a dor e o gemido; eu mesmo vos consolarei; assim como a mãe afaga o filho, assim vos consolarei eu, e sereis consolados em Jerusalém”. Ora, filho, para bem mentes nestas palavras de tão grande prometimento, e ouve como se entendem; e certamente nestas palavras fez diferença o Senhor da consolação que o homem há de haver em Jerusalém, que se entende o paraíso, e da consolação que o homem há por Deus nesta presente vida, que consola os homens assim como a mãe faz ao filho pequeno, convém a saber, com falamento mui doce e com o beijo de sua boca, e com o doce mantimento de leite do seu corpo próprio; e bem assim o Senhor Deus consola o homem com falamento de sua mui doce espiração, que espira na sua alma.

65. Outrossim consola Deus o homem com o beijo de sua boca, por que se ajunta o espírito do homem com o espírito de Deus, assim como pede a esposa, que é a alma devota, dizendo nos cantares: “Beije-me o Senhor Deus com o beijo de sua boca”, por que se demonstra o ajuntamento do espírito do homem com o espírito de Deus.

66. Outrossim consola Deus o homem com o mui doce mantimento do seu próprio corpo consagrado. E assim por estas maneiras consola Deus por pessoa o homem, maiormente aquele que não quer receber consolação humanal e por esta guisa se entende o que o profeta David no seu salteiro disse: “A minha alma não se quis consolar com consolação terreal, mas com consolação divinal, que eu me lembrei do Senhor Deus e deleitei-me n'Ele; e tanto me usei com Ele, que desfaleceu o meu espírito, assim como já transformado, quanto ser pode nesta vida, por trespasse de toda sua afeição na vontade do Senhor Deus”.