CONTROVERSA COM PELÁGIO Excertos da tradução em português de José Antoino Ceschin do livro de Joan O'Grady, “Heresy: Heretical Truth or Orthodox Error? a Study of Early Christian Heresies”
Agostinho afirmava que Pelágio colocara a Salvação fora de Cristo e de sua Igreja; que, para Pelágio, Cristo era só um exemplo, não um Salvador; de modo que o homem não dependia da graça de Cristo. Isto significava que os seres humanos, através de sua própria vontade e força, podiam seguir a Cristo — uma proposta que Agostinho negava com veemência. Insistia em que o homem nada podia fazer sem primeiro obter a graça, que chamava de “graça preveniente”. Era essa graça que permitia ao homem voltar-se para Deus e acreditar em Cristo; sem essa graça inicial, não poderia haver esperança alguma.
A discussão centralizava-se aqui na doutrina do pecado original. Quando as ideias de Pelágio se desenvolveram e se tornaram mais sistematizadas, parecia que, na explicação que Pelágio dava sobre a queda, o pecado não era tido como uma mácula generalizada, mas uma qualidade nas ações individuais. Adão não teria trazido o pecado ao mundo — mas teria sido o primeiro pecador. De fato, ele não teria passado adiante uma mancha do mal, mas um exemplo do mal.
Nesta teoria sobre o pecado original (na verdade, a negação dele) não havia lugar para uma doutrina sobre a redenção para toda a humanidade. Portanto, tampouco nenhuma doutrina sobre a expiação cósmica. Por ter sido tão viceralmente contra o pecado original é que Pelágio foi compelido a negá-lo tão enfaticamente. A teologia “ortodoxa”afirmava que só o batismo redimia por completo o homem do pecado original. Pretendendo dar primazia à ética, e não à metafísica do cristianismo, ele afirmava que não havia universalidade no pecado, portanto, não existiria universalidade de Salvação. A graça podia vir a qualquer momento, para qualquer indivíduo.
No ensinamento de Agostinho sobre a graça, o pecado original herdado de Adão significava a tendência ao pecado. Tendo herdado esta tendência, o homem era incapaz, por si mesmo, de voltar-se para Deus. Mas a perfeita obediência de Cristo teria anulado a desobediência de Adão — um representante da raça humana tinha conquistado a perfeição. A graça dada gratuitamente por Cristo permitia àqueles que a recebiam escapar da mancha herdada e esforçar-se para chegar a Deus. Por intermédio da Igreja, que dispensava a graça através dos sacramentos, o homem podia alcançar a Salvação. Cristo era o Salvador do mundo, no sentido de que viera para dar a graça salvadora àquelas pessoas que Deus havia escolhido. Estes eleitos eram escolhidos para, receber a dádiva da “graça preveniente”; recebiam a graça da perseverança, de modo que podiam continuar arrependidos para, por fim, alcançar a bem-aventurança. Aqueles que não fossem escolhidos para receber a graça, nada podiam fazer.
Este argumento parecia postular um Deus injusto, que decidia escolher arbitrariamente apenas alguns para recompensar, condenando o resto à punição. Os pelagianos reagiram com veemência contra a doutrina que tinha tais implicações.
No processo de debate, estas implicações contidas no ensinamento de Agostinho ganharam uma expressão lógica, e seus seguidores posteriores as exageraram ainda mais. Mas Agostinho também tinha insistido que o fundamental é o que somos, não o que fazemos. Nenhum indivíduo podia saber se ele próprio, ou qualquer outro, era um dos “eleitos”.
Os sermões de Agostinho e as exposições que ele fez dos Salmos permitem entender que o próprio fato de lutar para chegar a Deus implica o recebimento de sua graça; o simples fato da perseverança na luta demonstra que a graça esta sendo dada; portanto, na vida, ao contrário da teoria, a rígida doutrina da graça preveniente e planejada deveria ter pouca ou nenhuma importância prática.
Esta doutrina era importante para Agostinho porque descrevia um Universo centrado em Deus, não no homem, e enfatizava o Cristo Redentor da expiação, não um Cristo visto apenas como exemplo humano e um Mestre sábio. O ponto principal que Agostinho colocava era que, se a natureza humana conseguia alcançar a vida eterna sem ajuda, não era necessária a fé em Cristo.
A questão da mácula herdada — a barreira entre Deus e o homem — levou também a disputas sobre o Batismo das crianças. Todos os cristãos, no tempo de Pelágio, inclusive os próprios pelagianos, concordavam na necessidade do Batismo das crianças. Mas os pelagianos, afirmando que as crianças recém-nascidas vinham ao mundo livres do pecado original, encaravam o seu Batismo como uma forma de santificação mais elevada — uma entrada na glória, não um meio de alcançar a Salvação. Para se aproximar mais da “ortodoxia”, os pelagianos acrescentavam que as crianças tinham a “capacidade para o pecado” e, portanto, também precisavam do Batismo por causa disso.
Agostinho e os “ortodoxos” afirmavam que a graça dada no Batismo era essencial para lavar a mancha do pecado original e, portanto, era essencial para se alcançar a Salvação. Ainda que a dedução lógica deste ponto de vista parecesse indicar que as crianças que morressem sem o Batismo estavam condenadas, Agostinho escreveu numa carta a Jerônimo: “Quando se levanta a questão das crianças, fico muito perturbado. Posso vos garantir isso, e não sei como responder” (Dutch Roman Catholic Catechism). E, como os teólogos posteriores também pareciam não saber, a questão foi engavetada.
O ensinamento de Agostinho sobre a graça preveniente, dada por Deus segundo o Seu plano preestabelecido, foi desenvolvida por seus seguidores, depois de sua morte, como uma doutrina de predestinação. Isto provocou oposição, em particular nos mosteiros, porque parecia anular toda a luta pessoal pela abnegação e virtude. O anti-agostinianismo cresceu, e esta escola de pensamento passou a ser conhecida como o semipelagianismo.