====== Gerhard Wehr (CHJB) – Boehme, Theosophia (1) ====== CHJB:61-64 Como //devemos// e //podemos// //refletir// sobre Deus e //falar// Dele? É a questão que Jakob Böhme //se põe// de imediato. Por toda a sua vida, ele //a colocará//; certamente, as respostas que //dará// //variarão//. Isto //se explica// notadamente pela natureza particular da sua atividade criadora. Além disso, o sapateiro de Görlitz //era// bastante flexível para //se corrigir//, de tempos em tempos, em silêncio, e para //complementar// progressivamente o seu pensamento //adotando//, em sua observação espiritual, pontos de vista incessantemente novos. “Certamente, o ser divino não //pode// ser //captado// pela carne e pelo sangue, mas somente pelo espírito quando este é //iluminado// e //inflamado// por Deus; no entanto, se //se quer falar// de Deus, //dizer// o que é Deus, é preciso //considerar// com cuidado as forças da natureza, assim como toda a criação, o céu e a terra, e também os astros e os elementos e as criaturas que eles //engendraram//, assim como os santos anjos, o diabo e os homens, e o céu e o inferno”1. É com esta frase que //começa// o primeiro capítulo de “A Aurora”. No original, este capítulo //leva// o título: “Da exploração da essência divina na natureza”. //Percebe-se//, sem dificuldade, que esta frase de introdução //aborda// de imediato alguns grandes problemas, e sobretudo o da //conhecimento de Deus//. As fronteiras desta //conhecimento//, //deixa entender// Böhme, não //são fixadas// de forma inamovível pela natureza do homem, ser “de carne e sangue”. É pelo espírito, não pela razão //racionalizante// (//Vernunft//), que é possível “//captar// o ser divino”, com a condição de que o espírito //tenha sido// ele mesmo “//iluminado// e //inflamado//” por Deus. //Sabemos// bem que estas palavras //ocultam// uma experiência concreta. Como se tivesse a cada vez diante dele um leitor diferente, Böhme //repete// incansavelmente, nos lugares mais diversos dos seus livros, a necessidade da iluminação do espírito ou pelo espírito. Mas por que esta justaposição do céu e da terra, de Deus e do homem, dos anjos e do diabo? Para Böhme, esta associação aparentemente arbitrária das noções mais opostas //manifesta// o //Mysterium Magnum//: “Pois é no //Mysterium Magnum// — //explica// ele em um dos seus últimos escritos — que a natureza eterna //encontra// sua fonte; e este //Mysterium Magnum// //compreende// sempre duas realidades e duas vontades... O //Mysterium Magnum// é o caos a partir do qual a luz e as trevas, como fundamentos do céu e da terra, //fluíram// e //se manifestaram// desde toda a eternidade”-. Assim, Böhme //distancia-se// de uma “teologia da razão” //insípida//, //defendida// por outros que //acreditam// poder //falar// de Deus em termos diretos e //qualificá-Lo// — Ele que não tem nome — com um epíteto como “bom”, “amoroso”, “onisciente”, “todo-poderoso”, “supremo”... e //poder-se-iam citar// ainda muitos outros qualificativos utilizados ao longo da história da teologia para //tentar// — aliás em vão — //perfurar// o muro misterioso do não-objetivável. Antes de Hegel de um lado, antes de Kierkegaard e Karl Barth do outro, o sapateiro de Görlitz, que //vem// do luteranismo, //descobre// que, na medida em que é possível //falar// de Deus, só //se pode// //evocá-Lo// sob a forma de duas proposições contrárias, //constituindo// dois polos opostos, à maneira da dialética precisamente. Böhme não //quer ocupar-se// do “Deus dos filósofos”, a quem Pascal //acertou// as contas, e aliás nem sequer do Deus dos teólogos. Ele não //pretende// tampouco //confundir// algumas proposições dogmáticas, que //podem// //ser-lhe fornecidas// pelos doutores e pastores do seu tempo, com as respostas que //solicitam// a sua interrogação e a sua busca perpétuas. O Deus que Böhme //concebe//, e de quem ele //fez// a experiência íntima muitas vezes, é um Deus de quem //emana// um “//fogo-combustão//” (//Feuer-Brennen//) devorador e que //se manifesta// sob a forma de um “//amor-combustão//” (//Liebe-Brennen//) e de um “//cólera-fogo//” (//Zorn-Feuer//). De que //fala// ele exatamente? “Este //fogo-combustão// é uma manifestação da vida e do amor divino, pelo qual o amor divino, como unidade, //se inflama// e //se aguça// em vista de uma ação ígnea da força de Deus. É por isso que este fundo (//Grund//) é //chamado Mysterium Magnum//, ou ainda é //designado// como um caos que é a fonte do bem e do mal, assim como da luz e das trevas, da vida e da morte, da alegria e da dor, da salvação e da condenação; pois este fundo é o das almas e dos anjos e de todas as criaturas eternas, das más como das boas; é um fundo do céu e do inferno e do mundo visível com tudo o que //se encontra// lá; tudo isso //repousa// em um único e mesmo fundo.” Böhme //avança// aqui sobre um terreno onde ele dificilmente //pode contar// com a aprovação, nem mesmo com a indulgência, dos ortodoxos do seu tempo. Que heresia, de fato, //associar// à divindade tanto o bem quanto o mal, a luz e as trevas! Pelo menos é isso que os //temerosos//, as pessoas por demais prudentes, devem //pensar//. No entanto, Böhme //continua// em sua jornada, e //permite-nos perceber// que seu pensamento //se move// no terreno das ideias, dos protótipos ou arquétipos, certamente muito longe dos temas dos sermões //proferidos// do púlpito da igreja de Pedro e Paulo de Görlitz, como de muitos outros púlpitos. Tudo, segundo Böhme, //repousa// em um só e mesmo fundo, “assim como a imagem na árvore antes que o artista a //esculture// e a //forme//, pois não //se pode dizer// do mundo espiritual que ele //começou// um dia, e é desde toda a eternidade que ele //se manifestou// a partir do caos; de fato, a luz //brilhou// desde toda a eternidade nas trevas, e as trevas não a //captaram//, da mesma forma que o dia e a noite //estão// um no outro e, no entanto, //são// dois em um.” //Chegado// a este ponto, o teósofo //desculpa-se// junto ao seu leitor por “//recortar// as coisas desta maneira... como se o momento //tivesse chegado// de //começar// a //refletir// sobre o fundo da revelação divina, e sobre a distinção necessária entre Deus e a natureza... à origem do bem e do mal, e à natureza da essência de todas as essências (//Wesen aller Wesen//)”. //Percebe-se// bem para onde //tende// o esforço de Böhme: ele //quer// //afastar// as “imagens de papel” da divindade, e ao mesmo tempo tudo o que um certo clericalismo, ou ainda um racionalismo mais ou menos piamente //sofisticado//, //puderam produzir// de imagens ou de representações a respeito. O mandamento bíblico “não //farás// para ti imagens dEle!” está //gravado// no coração de Böhme, em letras de fogo. No entanto, à medida que ele //continua// a //procurar// e a //questionar//, ele //se choca// com o paradoxo do bem e do mal, da luz e das trevas, paradoxo que não //pode// ser nem //minimizado// nem //resolvido//, e cuja dialética é preciso //suportar//. É bem isso que Böhme //compreende//; e é aqui que ele //toma// consciência da dimensão da //profundidade// (//Tiefe//) que o //assustou// outrora a tal ponto que ele //caiu// neste estado de profunda melancolia da qual ele só //se evadiu// quando //se descobriu// a ele o “//engendramento// mais íntimo da divindade”. É //interessante notar//, e isso é totalmente característico da estrutura de pensamento e de percepção de Böhme, que este //introduz// a metáfora da //profundidade// (//Tiefe//) onde //se espera// antes, normalmente, que //apareça// a noção de //altura// e de //sublimidade//. O teósofo, cuja obra //apresenta// — //vimos// — um interesse considerável do ponto de vista da psicologia das profundezas, e que //poder-se-ia considerar// como o iniciador de uma “//teologia das profundezas//” que infelizmente ainda não é suficientemente //levada a sério//, //faz// um paralelo, em um de seus textos, entre a profundidade da natureza e aquela que //existe// no homem: “Toda a profundidade entre a terra e as estrelas é como o espírito (//Gemüt//) de um homem... E o sol é o rei e o coração da profundidade, ele //brilha// e //age// na profundidade e //cria// assim a vida na profundidade; o sol //está// na profundidade como o coração //está// dentro do corpo humano; e os seis planetas //criam// os sentidos e o entendimento na profundidade, de sorte que tudo isso junto é como um espírito (//Geist//) vivo.” De fato, o autor //evade-se// aqui do domínio da teosofia no sentido estrito do termo. A //profundidade// (//Tiefe//) é de fato em Böhme, assim como muitos outros vocábulos que ele //usa// correntemente, não uma noção //definida// de forma precisa, mas sim a expressão de uma experiência espiritual e psíquica, expressão que //contém// ao mesmo tempo o limite desta experiência; pois “a profundidade (de Deus) não //pode// ser //concebida// por nenhuma criatura”, e todas as nossas noções filosóficas — nem mais do que as fórmulas teológicas ou dogmáticas — não //servem// para nada. Sobre esta “//profundidade do ser//” (//Tiefe des Seins//), de que //fala// hoje Paul Tillich, Böhme //interrogou// em vão os sábios do seu tempo. É “o fundo profundo de Deus” (//der tiefe Grund Gottes//) que //repousa// nas trevas. E no entanto, Böhme é otimista: “Isso //aparecerá// na profundidade e em uma grande simplicidade. Por que não na altura e em um grande artifício? Para que ninguém //possa gabar-se// dizendo “fui eu quem //fez// isso”, e para que o orgulho do diabo seja assim //desmascarado// e //aniquilado//.” Quando ele mesmo é //interrogado// //perguntando-lhe// como //se pode explorar// esta profundidade, Böhme //responde// //referindo-se// a São Paulo: O espírito //explora// todas as coisas, incluindo as profundezas da divindade (I Cor. 2,10). //Colocando-se// mais do ponto de vista do homem, sem dúvida //poder-se-ia dizer// que, no espírito de Böhme, o conhecimento da profundidade da divindade //corresponde// àquele da profundidade do “//si//” próprio. //Convém//, contudo, //precisar// que este “//si//” não //designa// o pequeno “eu” terrestre do homem, //encarnado// na carne e no sangue; //trata-se// antes do “eu” que foi “//aceso// pelo espírito” (segundo a linguagem de Böhme) ou //amadurecido// pela //individuação// (no sentido de Jung). É preciso //cuidar//, no entanto, de //olhar// o conteúdo da teosofia de Böhme somente sob o ângulo da projeção de fenômenos psíquicos interiores, e de //negligenciar// a relação que //apresenta// este conteúdo, “em si”, com a realidade. //Seria// fácil //encontrar//, nos textos do sapateiro de Görlitz, toda uma série de passagens que //se poderiam reagrupar// sob o lema de Santo Agostinho “Deus e a alma”. É assim que Böhme //fala// da “santa alma” que //possui// a mesma essência e substância que os anjos. No último capítulo de “A Aurora”, ele //chega// a //evocar// a alma humana como “filho ou pequeno Deus dentro do grande Deus imensurável”. Não obstante, Böhme não //se perde//, embora //confesse// um dia que //subiu// muito alto e que //tem// vertigem quando //olha// para trás. Ele //permanece//, apesar de tudo, concreto. //Recorda-se// que, quando //ocorre// a sua primeira grande visão, o sapateiro //dirige-se// imediatamente “à verdura” para //certificar-se// da realidade do que ele acaba de //perceber//. Da mesma forma, ele //previne// aqueles que //buscam// Deus que não O //encontrarão// nas igrejas de pedra (//Mauerkirchen//), nem nos gabinetes dos sábios: “//Vês//, homem cego, eu //te mostrarei// tudo isso; //vai// então a um prado.” E para //vencer// a dúvida, ele //aconselha//: “//Abre// os olhos, e //vai// a uma árvore; //olha-a// e //reflete//!”