====== Merejkovsky – Jesus Desconhecido (II.4) ====== //Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935// ==== **PARTE DOIS** ==== ==== **VIDA DE JESUS DESCONHECIDO** ==== ==== **IV. MINHA HORA CHEGOU** ==== **I** No ano em que nasceu Jesus, na própria véspera da coroação de Arquelau, filho de Herodes, em toda a Judeia, a Idumeia e os países além do Jordão, explodiu uma insurreição contra Roma — uma dessas numerosas vagas que vêm de Antíoco Epifânio, o profanador do Templo, a Tito Vespasiano, seu destruidor . Foi Judas o Galileu, meio messias, meio bandido, quem a desencadeou . Seu refúgio principal ficava em Séforis, capital da Baixa Galileia, vizinha de Nazaré, onde ele se retirara, após haver pilhado o tesouro do rei e se ter apoderado dos arsenais. Dali empreendia expedições em que saqueava, queimava e matava os de sua raça e os estrangeiros, cantando hosanas ao Senhor e pregando o próximo reinado do Messias. O procônsul romano Públio Quintílio Varo, à frente das legiões da Síria, aniquilou a rebelião logo ao começo com a fria e calculada crueldade dos romanos. Destruiu, queimou e arrasou Séforis, o ninho de vespas dos insurretos, vendeu como escravos os habitantes e, perseguindo por toda a Terra Santa os bandos dispersos dos rebeldes, crucificou dois mil . **II** “Como exemplo salutar, res saluberrimi exempli”, as cruzes eram geralmente erguidas nos lugares elevados — os Gólgota — que se avistavam de longe. Talvez do cume da colina de Nazaré se vissem as cruzes perfiladas e negras nos reflexos purpurinos de Séforis incendiada. “Chamaram já tantos carpinteiros para fazer cruzes que queira Deus não chamem José!” podia dizer a mãe, sentada na pequena casa de Nazaré, diante do berço do Menino que dormia à luz vermelha do incêndio e à sombra negra das cruzes. **III** Dez anos mais tarde, no ano 6 de nossa era, no ano 9 ou 10 do verdadeiro nascimento de Jesus, quando a Judeia reunida, após a deposição do rei Arquelau, à província romana da Síria, o procônsul Públio Sulpício Quirínio fez publicar um edito, ordenando um recenseamento geral em vista da aplicação do imposto — o que era, aos olhos dos judeus uma “abominação diante do Senhor” — segunda revolta veio à tona. Teve ainda como chefe Judas o Galileu ou algum impostor que tomara seu nome, não sabemos bem. Em todo caso, esse chefe, meio bandido, meio messias, também pilhava, queimava, matava e pregava o Reino de Deus, repetindo: “Deus é o único Senhor!”, retomando a santa proclamação dos Macabeus e reproduzindo a santa prece de Israel: “Reina só sobre nós, Senhor!” “Se formos vencedores, dizia, o reino de Deus virá conosco; se perecermos, o Senhor, depois de nos haver ressuscitado de entre os mortos, como seus primogênitos bem amados, para os dias do Messias, nos dará uma imperecível coroa de glória”. Essa segunda rebeldia foi por sua vez reprimida pelas legiões romanas do procônsul Copônio. Viu-se de novo Séforis em chamas e os rebeldes crucificados. E, se se avistaram do cume da colina de Nazaré as cruzes recortadas em negro no fundo vermelho do incêndio, o menino Jesus, que, então, devia ter uns onze anos, pôde vê-las com seus próprios olhos . **IV** “Maldito de Deus o que pende do madeiro” (Deuter., 21, 23.)· Jesus não tinha talvez compreendido a significação disso, quando, com outros meninos, lia esse versículo no rolo da Lei, na escola de Nazaré. Foi, então, somente que, vendo as cruzes, compreendeu: “Aquele que está pendurado da cruz, que foi crucificado é maldito”. E seu coração incerto estremeceu fracamente com um frêmito fatídico. “Os longos cravos da cruz”, Masmera min hazelub, essas três palavras que deviam ser muitas vezes repetidas naquele tempo, sobretudo pelos carpinteiros galileus, Jesus as poderia ter ouvido. O bater do martelo na carpintaria, quando José enterrava os longos cravos negros nas tábuas novas brancas como um corpo humano, lembravam-lhe talvez o som traspassante dessas três palavras: Masmera min hazelub. Quantas vezes, em seguida, no decurso de sua vida pública, fala de sua cruz: “É preciso que o Filho do Homem seja levado à morte” Para ele, o Messias, o Rei de Israel “levado à morte”, quer dizer, de acordo com as leis romanas, “crucificado”. Quantas vezes também fala da cruz dos outros: “Aquele que não carrega sua cruz não é digno de mim”. Teria podido falar assim, se, outrora, em Nazaré, não houvesse visto com os próprios olhos a Cruz e não tivesse conservado essa lembrança no fundo do coração? **V** Duas vezes Israel revolta-se por sua alma, pelo reino de Deus: no ano 4 antes de Jesus Cristo, depois no ano 6 após Jesus Cristo. Toda a infância de Jesus decorre entre essas duas rebeliões. Abatida, mas não morta pela força exterior de Roma, a alma de Israel, preparando-se para a derradeira explosão, no ano 70, concentra-se em si mesma. É com essa concentração que coincidem os vinte anos em que a vida de Jesus também é concentrada, escondida, e que vão da primeira adolescência à virilidade. Jesus tomou a Cruz. Judas o Galileu tomou a espada. Que há de comum entre eles? “Todos os que empunharem a espada perecerão pela espada (Mt., 26, 52.)”. Seja qual tenha sido a morte de que pereceu Judas pela espada ou na cruz, ele vira a floresta das cruzes, os dois mil “pendurados no madeiro”, crucificados pelo reino de Deus, e marchava ele próprio para a cruz, lembrando-se ou tendo esquecido que “aquele que pende do madeiro é maldito de Deus”. Dois Galileus, dois Crucificados, dois Messias-Cristo: que achado para os blasfemos inocentes ou perversos como Celso, Juliano, Renan e muitos outros! A cruz ou a espada? Talvez o próprio Jesus não tivesse escolhido tão facilmente como nos parece. Talvez das três tentações: pelo pão, pelo milagre e pelo poder — a espada, esta fosse para ele a mais terrível. “Que aquele que não tem uma espada venda seu manto e compre uma”, disse o Senhor durante a Ceia, logo que Satan entrou em Judas e logo depois de haver dirigido a Pedro estas palavras misteriosas: “Simão, Simão, eis que ‘Satan pediu para vos passar pela peneira como o trigo”. “Senhor, eis duas espadas”. Ele lhes respondeu: “É bastante”. — “Senhor, feriremos com a espada?” perguntaram os discípulos no Getsêmani, e antes que tivesse tempo de replicar, um deles feriu. Então, Jesus disse: “Para, é bastante! (Lc., 22, 30-51.)”. Repetindo as mesmas palavras ditas antes a propósito das espadas. Ou no Evangelho tudo é fortuito ou vemos passar aqui o fio rubro que liga a Espada e a Cruz. O reflexo vermelho do incêndio nos olhos do Menino Jesus, o fogo vivo da tentação nas pupilas de Satan, o rebrilho das tochas sobre a lâmina de Pedro no Getsêmani — eis o laço que somente foi rompido por Jesus sobre a cruz — por ele e por mais ninguém. A Cruz e não a Espada vencerá no fim dos tempos, mas até lá o fio vermelho se alonga sempre. Eis talvez o tormento mais desconhecido do Desconhecido, porém, se seu coração humano não estava marcado pela queimadura que também queima nosso coração: a Cruz ou a Espada? — talvez mais o amássemos a Ele, nosso Irmão. **VI** “Ele será grande e será chamado o Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu pai (Lc., I, 32.)”. Não ouviu o Menino Jesus essas palavras da Anunciação, quando sua mãe o embalava, não as sugou com o leite materno? Duas revoluções messiânicas — duas tempestades — passaram. O terceiro temporal se prepara. Sempre mais baixa, cada vez mais negra, a nuvem paira sobre Israel. Na Galileia, pátria de Judas-Messias, toda a gente espera o raio, mais do que em qualquer outra parte de Israel. Em Nazaré, na casinhola do carpinteiro José, mais do que em qualquer outra parte na Galileia. O mistério da Anunciação — Ao Filho do Altíssimo o trono de David” — é o ferro imantado que atrai o raio. Quantos mancebos de Israel, naqueles dias, não se perguntou: “Serei eu o Messias?” Mais um só pôde responder: “Eu o sou”. **VII** Jesus tinha dezenove anos, quando José morreu, relata um apócrifo, em que talvez se tenha conservado um ponto histórico da tradição. Com efeito, é difícil conceber quem tivesse interesse em inventar uma idade tão precisa. Além disso, José não tinha ainda morrido, quando, aos doze anos, Jesus discutia no Templo com os Doutores, isto é, antes dos anos 8 a 9 da nossa era; mas, a julgar pelos poucos vestígios que sua lembrança deixou na tradição evangélica, morreu muito tempo antes do ministério do Senhor, o qual começou pelo ano 30, de modo que essas duas datas confirmam a autenticidade da morte de José no decimonono ano da vida de Jesus . José passa por esta vida como uma sombra silenciosa. O “Anjo do Bom Silêncio” morre sem ter dito uma palavra no Evangelho. Entretanto, a esta palavra, tão pouco terrena, tão glacial, do Filho à sua mãe: “Não sabíeis que preciso estar na casa de meu Pai”, poderia ter replicado com esta outra, terrena e ardente: “Venera teu pai e tua mãe”. Ora, calou-se como sempre, não talvez porque ame Jesus menos do que sua mãe, mas porque se lembra mais do que ela esqueceu naquele terrível minuto — o mistério da Anunciação. José viveu em silêncio e morreu em silêncio, mas cumpriu tudo o que devia cumprir: conservou ao mundo um tesouro que o mundo não merece. O Taciturno conservou o Verbo. Silencioso, ele próprio, elevou em torno do Filho uma indestrutível muralha de silêncio. Protegeu com seu silêncio o mistério da conceição virginal, cobrindo a mais delicada das sementes com um invólucro de diamante. Talvez somente depois da morte de José, seu protetor, Jesus compreendeu que “os próximos do homem são seus inimigos” e, se chorou seu amigo Lázaro, com maior razão deve ter chorado seu pai de criação e seu amigo José. **VIII** Eis um dos dois acontecimentos que conhecemos na vida oculta de Jesus. O outro, quase contemporâneo e de data mais precisa mesmo que a do nascimento do Senhor, é a morte de Augusto, no ano 14 de nossa era, décimo oitavo ou décimo nono da vida de Jesus. **IX** “Naquele tempo, publicou-se um edito de César Augusto”, diz Lucas, ligando, assim, o nascimento de Jesus ao século de Augusto. Quarenta anos antes de Jesus, Virgílio, numa profecia messiânica, sem o saber, tinha feito o mesmo: Jam redit virgo, redeunt saturnia regna, Jam nova progenies coelo demittitur alto . “Glória a Deus nas alturas, Paz na terra...” cantam os anjos nos céus, no século de ouro da paz — o século de Augusto. “A imensa grandeza da paz romana, immensa romanae pacis majestas” : são já os odres novos para o novo vinho do Senhor ou são ainda odres velhos? Qualquer que seja nossa resposta a esta pergunta, o fato de Jesus ter nascido à sombra da “paz romana” é mais do que um mero acaso. “Ninguém acende uma candeia para escondê-la sob a lareira, mas para pô-la no candelabro, a fim de que os que entrem vejam a luz (Lc., II, 33.)”. Não havia então, na humanidade senão um único candelabro digno da luz do Senhor — Roma. Pedro só podia fundar a Igreja Universal em Roma, porque Roma era “o mundo”, “o universo”. Somente da “paz romana, pax romana”, podia ser pregada a “paz divina, pax Dei”. É assim segundo o nosso entendimento terrestre, mas talvez não seja, segundo o entendimento eterno: “Deixo-vos a paz; dou-vos a paz; Eu não vo-la dou como o mundo vo-la dá (Jo., 14, 27.)”. É o mesmo que dizer que o Senhor dá a paz de modo diverso do que a dá Roma: é preciso escolher entre ambas. **X** “Eu venci o mundo” (Jo., 10, 3.)· Augusto também poderia ter dito isto, mas em que sentido diferente! Aí ainda, é preciso escolher. Se, como é provável, o mestre de obras Jesus ia procurar trabalho com seu pai de criação José , pode ter trabalhado na edificação do templo de Augusto, que, então, o rei Herodes-Filipe construía num alto rochedo, ao pé do monte Hermon, acima de uma gruta subterrânea consagrada ao deus Pan. Ali brotavam as fontes límpidas do Jordão, no meio de espessos bosques daquela Cesaréia de Filipe , onde, uns vinte anos mais tarde, Pedro dirá ao Senhor: “Tu és O Messias, antach Meschiha” (Mc., 8, 29.), e onde ouvirá Jesus dizer pela primeira vez: “É preciso que o Filho do Homem seja levado à morte” — crucificado (Lc., 9, 22.). Nesses mesmos lugares, uns doze anos antes, Jesus, que provavelmente falava grego, poderia ler sobre uma lápide de mármore branco a inscrição dedicatória ao “divino Augusto”, Divus Augustus: “Deus nos enviou (Augusto) o Salvador... O mar e a terra se alegram com a paz... Jamais haverá alguém maior do que ele... Hoje o Evangelho — evangélion — anunciando o nascimento do Deus (Augusto) se realizou ”. Paz — Salvador — Evangelho. Quaisquer que, então, tenham sido os pensamentos de Jesus, essas três palavras, que aparecem arrancadas a seu próprio coração, deveriam, mais do que o cinzel na pedra, penetrar em sua alma. Talvez que pense nelas durante sua quarentena no monte da Tentação, quando Satan mostrar “num ápice, todos os reinos do mundo e sua glória”· “Eu te darei todas essas coisas, se te prosternares diante de mim e me adorares (Lc., 4, 5-7; Mt., 15, 3-5.)”. Durante vinte anos, da aurora ao meio dia de sua vida, Jesus unicamente se preparou a fazer “nesse ápice” a escolha definitiva: a Espada ou a Cruz? **XI** Lucas liga o nascimento de Cristo ao reinado de Augusto; Lucas e Mateus ligam-no a Herodes. Para apanhar toda a exatidão histórica dessas duas referências, basta lembrar que, toda a sua vida, Jesus foi súdito de Antipas, filho de Herodes, a “raposa”, como o chama (Lc., 13, 32.), e que morre, condenado pelas leis romanas, por se ter revoltado contra o César romano. Para Jesus, o século de Augusto é o século de Herodes, — não o século de ouro, mas o de ferro, com o qual são feitos os “longos cravos da Cruz, masmera min hazalub”. Rebento de humilde família da Idumeia, elevado pela casa de Asmoneu, da qual foi o assassino, tendo feito morrer seus três filhos e sua mulher sob o pretexto de que neles ressuscitava o espírito asmoneu, Herodes começou por incendiar e ensanguentar o reino de Judas, que lhe fora atribuído por um edito do senado romano e acabou restaurando quase inteiramente o reino de David, o que lhe valeu ser saudado pelos Herodianos como o Messias, filho de David. **XII** Judas o Galileu é um pequeno meio-messias, meio-bandido; Herodes é um grande. Compreendeu e acolheu de coração o “Evangelho” de Augusto. Com igual magnificência, construiu os dois templos: em Jerusalém, ao Deus, celeste Jeová; em Cesaréia marítima, ao deus terrestre, Augusto. Dois templos e dois messias: Herodes no Oriente e Augusto no Ocidente. “Herodes quer fazer morrer o Menino Jesus” pretendem os mistérios evangélicos. O celerado não cometeu esse crime; entretanto, não foi em vão que, no próprio momento do nascimento do Cristo, ele se tornou o contrário da imagem do Menino de Belém, — o Anticristo . “Guardai-vos cuidadosamente do fermento de Herodes (Mc. 8, 15.)”. Isto dirá o Senhor, depois da multiplicação dos pães, quando quererão fazer dele o rei-Messias, um outro Herodes; e dirá também de todos os Messias semelhantes: “Todos os que vieram antes de mim são ladrões e bandidos (Jo., 10, 8.)”. Não havia, então, outro título aceitável por todos para exprimir a esperança de Israel no reino de Deus, senão este: “Malka Meschiali, o rei Messias”. E, decerto, tomando-o, Jesus sabia o que fazia; o rosto do Senhor sob a máscara de Herodes, o cordeiro na pele do lobo, eis o que é o Cristo no Messias, rei de Israel. Contra isso ele lutou toda a sua vida. Sob esse peso é que sucumbiu, de Nazaré ao Gólgota, como sob o fardo da Cruz. **XIII** De todos os que o precederam na humanidade qual o mais próximo a ele? Poderemos responder a essa pergunta como se tivéssemos ouvido a resposta de sua própria boca: é o profeta Isaías. Cinco séculos antes de Jesus Cristo, esse profeta anônimo, o maior, talvez não só em Israel, mas na humanidade toda, que nós chamamos o Segundo Isaías, parece ter visto com os próprios olhos Jesus Crucificado: “O Espírito do Senhor paira sobre mim e por isso me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres (Lc., 4, 18.)”. É por essa profecia de Isaías que o Senhor começa seu ministério e por esta outra que o acaba: “É preciso que se realize na minha pessoa tudo quanto foi escrito: “ele será posto no rol dos malfeitores” (Lc., 22, 37.)”. Toda a vida pública de Jesus está entre essas duas profecias, e sem dúvida, sua vida oculta foi animada pelo mesmo espírito. “O castigo de nosso mundo caiu sobre ele, e pelas suas chagas nós fomos curados... Ele foi maltratado e sofreu voluntariamente e intercedeu pelos pecadores (Is., 53.)”. Parece que Jesus disse isto mesmo, falando pela boca do profeta. Julga-se ouvir sua voz viva nessas palavras; ver seu rosto vivo através delas como através de um véu escuro e transparente. Poderia ele não se reconhecer a si próprio? **XIV** APÓCRIFO Uns dez anos antes de seu ministério, Jesus, sentado no meio de seus fiéis em um banco da sinagoga de Nazaré e olhando pela porta aberta atrás do estrado de pedra da tabuta o dourado mar das searas de Jezrael, onde serpenteava como uma fita cinzenta o caminho de Jerusalém, ouvia o leitor anunciar a profecia de Isaías: “Ebed Iahvé, o servo do Senhor... O castigo de nosso mundo caiu sobre ele... Como o cordeiro que se leva ao açougue, como a ovelha muda ante os que a tosam, não abre a boca... entregou-se ele próprio à morte e intercedeu pelos pecadores”. Lentamente, Jesus cerrou as pálpebras, tão pesadas que pensou nunca mais poder levantá-las. Viu uma linha negra no céu claro, o bordo superior do monte Cinor, dominando o precipício, e sobre uma pedra esta inscrição meio apagada: “O Pai sacrificou seu Filho”. Todavia, o leitor continuava: “O Senhor resolveu feri-lo e o entregou ao suplício... O Justo, meu servidor, justificará grande número de homens. e ele próprio carregará suas iniquidades”. Seu coração bate e o sangue lhe martela as têmporas: “Masmera min hazalub, os longos cravos da Cruz”. As pontas de duas pirâmides — uma, descendo do céu, a outra, elevando-se da terra — se encontraram no coração de Jesus. O apelo do Pai: “Tu és meu Filho bem amado”, tal é a ponta da pirâmide celeste; o apelo do mundo: “ele carregou os pecados de grande número de homens”, eis a ponta da pirâmide terrestre. Seu coração foi traspassado pelas duas pontas; ele ouviu os dois apelos e respondeu: “Eis-me aqui”. **XV** “O Filho do Homem veio... para dar sua vida pelo resgate de muitos (Mt., 20, 28.)”·, dirá o Senhor, indo a Jerusalém pela suprema Ladeira do Sangue. Alguns homens têm dado a vida pelo resgate de muitos, mas ninguém ainda a deu como ele. “Eis o cordeiro de Deus que resgata os pecados do mundo (Jo., I, 29)”. Todo o pecado — todo o peso do mal universal. “Cristo nos resgatou da maldição da lei, GKA-ÁRAS, tendo-se feito maldição por nós, pois está escrito: “maldito o que pende do madeiro” (Gal., 3, 13.)”. Antes de se manifestar ao mundo, sabia o que isso seria; sabia que sofreria “a morte por todos, fora de Deus, longe de Deus, KÓRIS THEON ”, no abandono, na “maldição”. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mc., 15, 34)”. Este supremo grito sobre a Cruz, ele o pressentira desde o começo de sua vida; ele sabia que devia sofrer e morrer como nunca ninguém havia sofrido nem morrido. “Vós que passais dizei se há dor que iguale a minha dor!” Na Idade Média, inscrevia-se essa lamentação ao pé dos cruzeiros, nas encruzilhadas, até a consumação dos séculos ela continuará inscrita em todos os caminhos da terra . À hora suprema da morte, a taça dos sofrimentos físicos rapidamente se enche e é a mesma para todos; mas a dos sofrimentos morais não é igual para todos e não se enche nunca. Somente para Jesus ela transbordará. Só ele, o Filho Único, amando infinitamente seu Pai, sofrerá infinamente, quando seu Pai o abandonar. O ponto extremo do abandono — a rejeição de Deus — o nadir do sofrimento ignorado de todos, mais negro do que as trevas, mais glacial do que o gelo, só ele o atravessou para que se cumprisse para sempre o sacrifício de Um por todos (Heb., 10, 12.); para que, de então por diante, todo homem que sofra, que se veja rejeitado de Deus, saiba, passando pelo mesmo abandono, que não está sozinho, pois tem a seu lado Aquele que sofreu, que foi rejeitado, que foi maldito por todos e por ele: que, por todos e por ele, sofre e é eternamente maldito, a fim de que cada um dele possa dizer: “Ele me amou e se entregou a si mesmo por mim (Gal., 2, 20.)”. E ouvi-lo responder: “Eu pensava em ti na minha agonia e derramei minhas gotas de sangue por ti ”. **XVI** “Maldito o que pende do madeiro”. — “O Filho maldito pelo Pai?” assim nos tenta o diabo. Então, é que é preciso não esquecer que “ninguém conhece o Pai, senão o Filho”. Não ousamos falar disso, nem mesmo pensar nisso, e se acontece que pensamos, quase perdemos a razão e não sabemos mais se rezamos ou blasfemamos. Reza ou blasfema o rabino Hilkia, no Talmude? “São loucos e mentirosos os que dizem de Deus que teve um Filho e o deixou matar. Como Deus, que não pôde suportar a imolação de Isaque, poderia deixar matar seu próprio Filho, sem destruir o mundo inteiro, reduzindo-o ao caos? ” O Todo Poderoso não poderia criar um mundo tal que o Todo Bom lhe tivesse de sacrificar seu Filho? A este simples pensamento, toda alma humana fica consumida pela demência: uma única alma aí cresce e se endurece como o diamante no fogo primordial: “O pequeno menino (Jesus) crescia e se fortalecia; estava cheio de sabedoria (Lc., 2, 40.)”. Durante vinte anos se alimentou com esse alimento de fogo, como a criança com o leite materno. **XVII** “Ele foi maltratado e sofreu voluntariamente (Is., 53, 7.)”. Essa profecia de Isaías corresponde já à muda, à demente pergunta de nosso coração, e o próprio Jesus responde por sua vez: “Dou minha vida, a fim de retomá-la. Ninguém ma tira, mas eu a dou por mim próprio; tenho o poder de dá-la e o poder de retomá-la; recebi essa ordem de meu Pai (Jo., 10, 17-18.)”. Mas, se tivéssemos compreendido o que significa: “Agora minha alma está perturbada e que direi?... Pai, livra-me dessa hora? Mas, se foi para isso mesmo que vim até essa hora! (Jo., 12, 27.)”. Se tivéssemos visto, nessa confissão tão humana, o sangue correndo de súbito de uma ferida reaberta, talvez nos lembrássemos que Jesus não é somente verdadeiramente Deus, mas também verdadeiramente Homem, e não adormeceríamos dois mil anos na “tristeza”, no hábito, como os discípulos no Getsêmani, durante a agonia. “Abba, Pai! todas as coisas te são possíveis, afasta de mim esse cálice! (Mc., 14, 30.)”. O Pai pode afastar o cálice de seu filho e não o quer? É isso que revolta o Filho e o espanta, e não o sofrimento e a morte. Eis o “paradoxal”, o “espantoso”, o “pavoroso” de toda a sua vida e de toda a sua morte. Foi somente em Getsêmani que começou essa luta, agonia? Não, ela durou toda a sua vida, de Nazaré ao Getsêmani. Eis sobre o que geme o queixume que até a consumação dos séculos se não calará, a lamentação inscrita aos pés da Cruz: “Vós que passais dizei se há dor igual à minha dor!” **XVIII** “Se queres, Senhor, que o mundo exista, então a justiça (a Lei) não existirá; se queres que a justiça (a Lei) exista, então o mundo não existirá. Escolhe um ou a outra” disse Abraão, intercedendo por Sodoma — pelo mundo inteiro mergulhado no mal, por todos os homens e não só pelos eleitos . E Moisés ora assim: “Perdoa-lhes seu pecado, senão apaga-me de teu livro! (Ex., 32, 32.)”. E o Irmão do homem pede por seus irmãos: se lhes perdoas, perdoa-me ao mesmo tempo; se os castigas, castiga-me também. No seu coração, se chocaram, combatendo-se, as duas maiores forças que jamais se embateram num coração humano: o amor de Deus e o amor do Mundo. “Escolhe um ou o outro”. Antes de fazê-lo aqui em baixo, no tempo, ele já havia escolhido lá em cima, na eternidade. De quem vem a primeira vontade do sacrifício, do Pai ou do Filho? Os Ofítas-Nasseus rezam ou blasfemam, quando respondem a essa pergunta? “E Jesus disse: Abba, Pai! Vê como a alma sofre longe de ti, na terra; ela quer fugir da morte e busca a vida sem a achar. Pai, envia-me, pois. Eu atravessarei todos os céus, Eu descerei à terra para os homens, Eu lhes revelarei todos os mistérios e o caminho secreto para ti ”. **XIX** “A alma foi encerrada num corpo-prisão por uma grande falta”, diz Clemente de Alexandria, relatando a doutrina dos gnósticos . “Todos nós vivemos em castigo por alguma coisa”, diz igualmente Aristóteles, lembrando, segundo parece, a mesma doutrina . “O maior pecado do homem é ter nascido” (Calderon), — que o filho tenha deixado o pai. Só houve um Homem isento desse pecado: esse Filho não deixou o Pai — foi enviado ao mundo pelo Pai. Ora, eis que nele também a “alma está perturbada”: “Abba, Pai, livra-me dessa hora! “Não houve já na sua vida, antes de Getsêmani, semelhantes minutos de fraqueza humana, em que foi tomado de angústia e pavor: “Abba, Pai! Quem é, pois, que deixa o outro? Sou eu ou és tu?” Esse tormento que o tortura não o compreenderemos jamais, porque não o queremos conhecer e estamos amedrontados pelo que seu rosto tem demasiado humano na vida e na morte. Entretanto, se nós não soubermos isso, jamais o amaremos como o devemos amar, jamais compreenderemos porque os homens que o conheceram e amaram, como São Paulo ou São Francisco de Assis, traziam nas mãos e nos pés os estigmas da Cruz; jamais compreenderemos o lamento que não cessa de soar pelos caminhos da terra: “Vós que passais dizei se há dor igual à minha dor!” **XX** O Pai sabia aonde ia o Filho? Deus é “onisciente”. Isto não significa que Deus pode, mas não quer tudo saber, a fim de não entravar a liberdade humana, essa liberdade que é a única medida do amor divino? Bem parece que a misteriosa parábola dos maus vinhateiros faz alusão à recusa do Pai em saber o que farão os homens, quando o Filho vier a eles. “Que farei?” indaga o dono da vinha, depois que todos os que mandou aos vinhateiros regressaram batidos e escorraçados. “Que farei? Enviarei meu filho bem amado, talvez o respeitem (Lc., 20, 9-16)”. Toda a agonia, toda a luta mortal do Homem Jesus cabe nesse talvez, que o torna o mais Irmão dos homens, seus irmãos. Eis o que significa: “Aquele que não carrega sua cruz não é meu irmão”. E, com que nova luz, maravilhosa e terrível esse talvez ilumina o semblante mais desconhecido do Desconhecido! **XXI** Se seu tormento sobre-humano é inconcebível para o nosso coração terrestre, sua beatitude sobre-humana, sua calma, vitória suprema sobre todas as tempestades da terra, ainda é mais. “Por que me abandonaste?” A esse grito do Filho na Cruz, o Pai já respondera na profecia de Isaías (54,7.): “Eu te abandonei por um instante, mas, nas minhas grandes compaixões, eu te acolherei”. O Irmão do homem teria podido dizer aos homens, seus irmãos, durante a longa, muito longa noite do mundo, que vai da primeira à segunda Vinda, o que disse aos discípulos na noite de sua morte: “Ides todos ficar escandalizados por minha causa... deixar-me-eis só; mas eu não ficarei só, porque o Pai está comigo (Mc., 14, 27; Jo., 16, 32.)”. “Eis meu filho, o que trago pela mão”, diz o Senhor na mesma profecia de Isaías (42, I) Sempre o Filho sente sua mão na mão do Pai. “Mesmo quando caminharei pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum! Porque tu estás comigo: o teu bastão e o teu cajado me tranquilizam (Ps., 22, 4.)”. Essa serenidade, esse silêncio são o divino no humano. “Meu filho, em todos os profetas, eras tu que eu esperava viesse para repousar em ti. Porque tu és meu repouso. Tu es enim requies mea”. É o que diz, no Evangelho dos Hebreus, a Mãe-Espírito, descendo sobre o Filho no momento do batismo . **XXII** Nas grandes altitudes, o viajante vê a seus pés nuvens e tempestades, e sobre sua cabeça um céu eternamente sereno; assim, na vida de Jesus, depois de todos os sofrimentos terrenos e não terrenos, chega um momento em que ele vê acima de si a vontade do Pai, Basta-lhe erguer os olhos para o céu e dizer: Abba, Pai!” para que todas as vozes terrestres se calem nele e, de novo, escute, a voz do Pai: “Tu és meu Filho bem amado”. **XXIII** viva, o arco se distende cada vez mais — a corda vai partir-se. “Eu vim lançar o fogo sobre a terra, e como desejaria que já estivesse aceso? É um batismo com que devo ser batizado e como anseio para que se realize (Lc., 12, 49-50.)”. Se na vida pública, quando a flecha já foi despedida, está tão angustiado, como não estaria na sua vida secreta, quando a flecha continuava imóvel! Para medir na sua alma o suplício dessa espera, devemos, como todos os seus outros sofrimentos, multiplicá-la pelo infinito. Em seus últimos anos, em seus últimos meses, em seus últimos dias, cada um de seus suspiros é uma prece: “Abba, Pai! que minha hora chegue!” **XXIV** “O povo estava à espera”, diz Lucas, falando desses dias. Talvez não fosse unicamente um povo, porém toda a humanidade. Mais baixa, cada vez mais baixa, estende-se a tempestade. Tudo se cala numa atonia sem um sopro. O mundo está mergulhado numa espera, numa angústia que nunca sentiu. Um instante ainda, parece, e o coração do mundo, como a corda de um arco muito distendido, vai partir-se. É nesse supremo instante que o Atirador lançou a flecha do arco. Um relâmpago iluminou a alma do Jesus e ninguém o viu. Mas o trovão, “a voz clamando no deserto”, foi ouvido por todos: “O Reino dos Céus está próximo! Preparai os caminhos do Senhor. Aplanai-lhe a estrada (Mt., 3, 2.)”. João apareceu no deserto, pregando e dizendo: “Ele vem depois de mim, aquele que é mais poderoso do que eu... Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará no Espírito Santo, com fogo (Mc., I, 4, 7-8; Lc., 3, 16.)”. Jesus ouviu a voz de João e disse: “Minha hora chegou”.