====== Merejkovsky – Jesus Desconhecido (I.4) ====== //Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935// **PRIMEIRA PARTE** **O EVANGELHO DESCONHECIDO** //E o mundo não o conheceu. Καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.// //(Jo. I, 10)// ==== **IV** ==== **JOÃO** **I** No tempo de Trajano, vivia em Éfeso um ancião tão idoso que não só os de sua geração, mas seus filhos e netos já tinham há muito morrido, e mesmo os bisnetos não se lembravam mais quem ele era. Chamavam-lhe simplesmente João ou o "Ancião", //Presbyteros//, e julgavam que era João, filho de Zebedeu, um dos Doze, "aquele que Jesus amava", que se encostou ao seu seio na Ceia e de quem Jesus, após a ressurreição, havia dito misteriosamente a Pedro: "Se eu quiser que ele fique até que eu venha, que te importa?" (Jo., 21, 22.) Tudo isso era sabido, não pelo quarto Evangelho, que ainda não existia, mas pela tradição oral, à qual se dava tanto crédito, senão mais, do que aos Evangelhos escritos. Acreditava-se que seria assim, que o Presbítero João não morreria antes da segunda Vinda; e velava-se sobre aquele que era o último que havia "ouvido", "visto" e "tocado" o Verbo, como se vela pela pupila dos olhos; não se sabia por que nem como provar-lhe essa veneração: revestiam-no de hábitos preciosos, suspendia-se à sua fronte o símbolo misterioso, a estrela de ouro, //Petalon//, com o Nome Inefável, que pertencera a Melquisedec, o rei pontífice, cuja vida não tivera começo nem fim (1). Entretanto, não se sabia com certeza se era mesmo "aquele que Jesus amava" ou outro, porém não ousavam perguntar-lhe isso francamente; e, quando o interrogavam de modo disfarçado, ele respondia de tal jeito que se tinha a impressão que ele próprio não o sabia bem, não se lembrava mais por causa de sua grande velhice. **II** Quando ficou muito fraco e incapaz de caminhar, os discípulos o carregavam nos braços para as reuniões dos fiéis, e, quando estes lhe pediam que os ensinasse ou lhes falasse do Senhor, repetia sempre a mesma coisa, com o mesmo sorriso e a mesma voz: — Meus filhos, amai-vos uns aos outros; amai-vos uns aos outros! Afinal, todos se cansaram tanto disso que um dia lhe disseram: — Mestre, por que repetes sempre a mesma coisa? Ele calou-se, refletiu e replicou: — Assim me ordenou o Senhor e isso basta, se for cumprido. Depois, repetiu: — Meus filhos, amai-vos uns aos outros! (2) Todavia, quando morreu, houve grande luto em Éfeso e, quando o puseram no esquife, começaram a dizer que não estava morto e simplesmente dormia. Muitos o ouviram respirar dentro do caixão. Mais tarde, depois que foi enterrado, ouvia-se, colando o ouvido ao chão, que continuava a respirar regular e fracamente, como uma criança no berço. E todos firmemente se convenceram de que se cumpriria a palavra do Senhor: o Presbítero João somente morreria à segunda Vinda. Ainda, quando, pouco tempo após sua morte, apareceu em Éfeso "O Evangelho segundo João", nenhum dos irmãos da comunidade duvidou que fosse realmente escrito por um dos Doze, pelo Apóstolo João, "o discípulo amado de Jesus". Mas, nas outras igrejas, numerosos foram os que duvidaram. Houve discussões e escândalos. Isso só fez piorar e a calma somente voltou quando a Igreja universal, no fim do século IV, reconheceu como autêntico "O Evangelho segundo João" e o intercalou no Cânone. A discussão findou por muitos séculos, porém nos séculos XVI e XVII, na aurora da crítica liberal, voltou à tona com nova força, tornou-se cada vez mais ardente e parece que jamais se extinguirá. O que se passa quanto ao debate sobre João é o mesmo que se passou quanto ao próprio João: podem enterrá-lo que continuará vivo no fundo do túmulo, esperando a vinda do Senhor. **III** Renan observa com justeza e profundidade que essa controvérsia é insolúvel, porque a solução não depende do assunto, mas do ponto de vista dos que discutem (3). Ou, mais exatamente e mais profundamente ainda: a resposta depende da vontade dos que discutem. Quem é essa derradeira testemunha do Homem Jesus, aquele que, aparentemente, contradiz todas as outras, aquele que viu o Verbo Encarnado? É o que se recostou ao seu seio e ouviu bater-lhe o coração? Uns querem que seja, outros que não; uns têm grande necessidade que seja assim, outros que não. E, por mais numerosas que sejam as provas históricas em favor duns ou de outros, a discussão não acabará: os homens não a podem mais abandonar como Sísifo não podia deixar de rolar a pedra da montanha. A discussão sobre João é "o maior enigma do cristianismo" e, talvez, o enigma do próprio Cristo (4). **IV** "O mais terno dos Evangelhos, //das zarteste Evangelium//... Eu daria por ele todos os outros com a maior parte do Novo Testamento de quebra", declarava energicamente Lutero, aliás sem nos convencer; cada cristão poderia dizer ainda com mais força: "Eu não daria nada" (5). "Os antigos me disseram, relata Clemente de Alexandria (o termo "Antigos, Presbíteros" designa aqui, como em Papias, os anéis vivos da cadeia da tradição, os ecos da "voz viva e inesgotável"; aqueles que perguntavam e respondiam uns aos outros, de século a século, de geração a geração: "Vistes?" — "Vimos", "Ouvistes?" — "Ouvimos".), os antigos me disseram que João, o último, vendo que os outros Evangelhos haviam posto em evidência o carnal, escrevera, a pedido incessante de seus discípulos e sob a inspiração do Espírito Santo, um Evangelho espiritual" (6). Seja qual for a nossa opinião sobre o valor histórico desse testemunho, devemos reconhecer que a questão de "três e um", dos Sinóticos e do IV.º Evangelho, não só não está resolvida como não está mesmo bem posta. Porque, para o próprio Clemente, como também talvez para os "Presbíteros", que estão por trás dele, o Cristo "carnal" dos Sinóticos não é sem alma do mesmo modo que o Cristo "espiritual" de João não é incorpóreo. Que relação existe entre eles? Há dois Cristos ou um só? Pergunta terrível e aparentemente absurda. Pois não é muito fácil responder: "o carnal não se opõe ao espiritual: o espírito e a carne são um em um Cristo único". Mas, então, por que Clemente e, a dar-lhe crédito, o próprio João opõem seu Cristo "espiritual" ao Cristo "carnal" dos Sinóticos. E como aquele que "se recostou no seio do Senhor", que ouviu bater seu coração, pôde dar sobre ele tal testemunho que fez nascer essa questão? Não crer isso dizer que o enigma de João é talvez o próprio enigma de Cristo? "Ele mente, ele mente e é indigno de continuar na Igreja!" uivam como possessos, no fim do século II, os alógios, adversários do Verbo-Logos de João (7). E são quase os mesmos os uivos dos "alógios" do século XX, todos aqueles que desejariam aceitar os Sinóticos e rejeitar João — chegar ao Cristo sem passar por ele. "Mas, se o cristianismo se prende tão fortemente ao IV.º Evangelho, não será porque o semblante do Cristo que nos revela está bem firmado não somente no dogma cristão como também na mais simples e mais profunda experiência cristã?" pergunta um dos críticos liberais mais avançados do século XX (8). Quantas vezes se tentou acabar com João e quantas vezes se quis acabar com o próprio Cristo! Parece, entretanto, que jamais se conseguirá isso nem com um nem com o outro (9). **V** O mais forte argumento contra o Apóstolo João, como autor do IV.º Evangelho, é o seu martírio demasiado precoce predito pelo Senhor em pessoa, segundo dois dos Sinóticos, Mateus e Marcos: "Bebereis da taça em que bebo e sereis batizados com o batismo com que serei batizado", disse o Senhor aos dois filhos de Zebedeu, Tiago e João (Mt., 20, 20-28; Mc., 10, 35-40.). Não pode haver dúvida alguma que essa "taça" e esse "batismo" sejam o martírio dos dois irmãos. Mas, se a palavra do Senhor sobre um deles se cumpriu exatamente, como sabemos pelos Atos dos Apóstolos (12,2.), é inacreditável que se não tenha cumprido quanto ao outro irmão. E, afinal de contas, essa palavra tão clara não foi abrogada por outra mais obscura sobre a "sobrevivência" desse mesmo João até a Segunda Vinda (Jo., 21, 22.), pois logo o "Evangelista João" ou a pessoa que fala em seu nome indica que essa "sobrevivência" absolutamente não significa a imortalidade física na terra: "Jesus não disse que ele não morreria" (21, 23.). Era necessário optar por uma das duas palavras, a clara e a obscura, e a Igreja, a fim de não renunciar à tradição de identidade dos dois João, o Presbítero e o Apóstolo, recusou com pesar a palavra clara e aceitou a obscura. Mas logo se vê que a discussão, cujas raízes mergulham aqui no próprio Evangelho, não está extinta por essa solução e provavelmente jamais se extinguirá (10). **VI** Há, no próprio Evangelho, um argumento interno, mais forte talvez do que todos os outros, contra a identidade do Evangelista João com João, filho de Zebedeu, um dos Doze. Em todo o IV.º Evangelho, o primeiro personagem depois de Jesus — personagem que nenhuma vez é chamado por seu nome e que, por estar coberto com uma máscara transparente, mais fica em evidência — é o "discípulo amado de Jesus", o Apóstolo João, filho de Zebedeu. Poderia ele dizer de si próprio tão repetidamente e obstinadamente: "Eu sou o discípulo que Jesus amava"? É preciso ser incapaz de "entender" a alma humana, não ter "ouvidos" para não sentir nisso um som falso, horrivelmente discordante. Basta somente comparar a humildade constante de Pedro, que não sabe como se abaixar, se apagar, desaparecer debaixo do chão, a fim de aplacar a dor do remorso — basta comparar isso com a suficiência: "Eu sou o discípulo que Jesus amava", para verificar a que ponto é impossível. Qual dentre nós, no lugar de João, não diria: "Não posso"? Então, por que pensar que ele pôde? Este único argumento de ordem interna parece bastar para decidir: o IV.º Evangelho foi escrito por qualquer outra pessoa menos pelo Apóstolo João. **VII** Mas, se não foi por ele, por quem foi? A melhor chave do enigma se encontra em Papias, esse homem "trapalhão", talvez, porém que não deixa de ser para nós a mais antiga e a mais próxima testemunha do Presbítero João, senão do próprio Apóstolo João. Quando ele fala de suas conversas com as testemunhas e ouvintes vivos do Verbo, Papias distingue dois João, dois discípulos do Senhor. Um deles é mencionado entre os outros Apóstolos, no passado: "Ele dizia, //eiten//", como se falasse dum morto; o outro, o Presbítero João, entre os "discípulos" (não os Apóstolos) do Senhor, no presente, como se falasse dum vivo: "dizendo, //legousin//". É evidente que são dois personagens diversos: o Presbítero João, que está vivo, e o Apóstolo João, que morreu. Assim, aliás, o entende o historiador eclesiástico Eusébio e parece que se não pode entender de outra maneira (11). Policrates, bispo de Éfeso (190), distingue já menos claramente os dois João, quando afirma em carta ao papa Vitor que "dois grandes astros se apagaram na Ásia... Filipe, um dos Doze Apóstolos... João, que se recostou no seio do Senhor" (12). Diniz de Alexandria, no século III, sabe ainda que "existem em Éfeso dois túmulos dos dois João", isto é, do Presbítero e do Apóstolo (13). "O Ancião, Presbítero", diz simplesmente o autor da II.ª e da III.ª Epístolas de João, que a tradição da Igreja atribui ao Apóstolo: acreditava sem razão — mesmo para seu tempo — que só esse sobrenome bastava para que todos os irmãos de todas as Igrejas soubessem de quem se tratava. (14) **VIII** Dois João, dois gêmeos de semblantes muito parecidos em um aposento meio escuro — a comunidade de Éfeso no fim do século I. Se, desde o meio do século II, cessa-se de distingui-los e se toma um pelo outro, com mais forte razão isso acontece no século XX. Sabemos que um deles é o verdadeiro, o corpo, e o outro somente a sombra; mas ignoramos qual dos dois é o verdadeiro e, por mais que rolemos o rochedo de Sísifo, provavelmente nunca saberemos. Só um testemunho interno do Evangelho vem lançar bruscamente um raio de luz no aposento semi-escuro. Quando lemos: "o discípulo que Jesus amava", nosso "ouvido" muito naturalmente nos sugere que o que escreve não é aquele por quem se faz passar, que só se refere ao "discípulo que Jesus amava", como a uma "testemunha. Aquele que viu (não o que escreve, porém outro qualquer) esse fato o atesta e seu testemunho é verdadeiro, e ele sabe que é verdadeiro, a fim de que vós também acrediteis" (Jo., 19, 35.). É sob a égide dessa terceira pessoa, do "discípulo que Jesus amava" que se abriga o "Evangelista João"; é ao seu testemunho verídico por ser de uma "testemunha ocular" que se refere, evidentemente porque ele próprio não é testemunha ocular. Se aquele que escreve fosse esse terceiro — suponde que se ponha na primeira pessoa, dissimulando-se sob uma máscara muito transparente — ora "eu", ora "não eu" — seria ainda mais impossível, mais insuportável para o ouvido do que se fizesse isso claramente (15). Os dois semblantes parecidos, fracamente iluminados, poderão nos aparecer quanto quiserem por eclipses, num pestanejar espetral, claro se verá que não há um só rosto, mas dois. **IX** Então, brota do próprio espírito uma hipótese, a mais simples de todas e por isso mesmo a mais difícil de admitir, a existência de dois Evangelistas João, o Presbítero e o Apóstolo. Talvez a vida de Jesus, tal qual o "discípulo bem amado" costumava contar a seus mais íntimos discípulos, não parecesse de todo com a que relatavam os "tradicionalistas de Bataneia" por quem foram anotadas as //logia// dos pré-sinóticos; talvez soubesse certas coisas que eles ignoravam ou sabiam menos do que ele — conhecia importante parte do ministério de Jesus, a que decorreu, não na Galileia, mas na Judeia; conhecia também seus íntimos e os pormenores de sua vida, que, repitamos, aqueles não conheciam ou não conheciam tão bem (16). João adivinha justamente, mais justamente talvez do que os Sinóticos, o que Jesus queria. Sabemos por Marcos o que fazia, por Lucas o que sentia, por João o que queria, e, certamente, na vontade reside o mais essencial e verdadeiro. Eis por que João nos conduz, por mais estranho que isso pareça, ao Jesus mais historicamente autêntico — àquele que se encontra em Marcos-Pedro; a última testemunha nos reconduz à primeira. João, melhor do que qualquer outro Evangelista, une o Cristo "glorificado", celeste, ao Jesus terreno, graças à experiência provinda duma intimidade provavelmente imediata e única com esse mesmo Jesus terreno. **X** Paulo, senão ele próprio, pelo menos na sua ação futura, eclesiástica, separa o Jesus terreno do Cristo celeste; João une-os. Paulo não conhece, não quer conhecer o "Cristo segundo a carne" — é assim pelo menos que é compreendido ainda uma vez na sua ação eclesiástica; João quer. Paulo, nesse ponto, fica mais perto dos "docetas" passados e presentes do que João, que se liga com toda a sua força à carne do Cristo (esteve "recostado no seio do Senhor"). Quando João diz: "O Verbo se fez carne", o acento principal, para ele como para nós, não está no "Verbo", mas na "carne". Há nessa mudança de acento, a mudança, a transformação de toda a "polarização" cristã; onde havia um mais há um menos e vice-versa. Aliás, isto é relativamente fácil de exprimir e compreender, porém muito difícil de realizar. É a mudança, //apokatastasis//, de ordens cósmicas inteiras de //eons//; é preciso, para isso, que "as forças celestes sejam abaladas", "mudadas". "Todo espírito que não confessa Jesus-Cristo incarnado não é de Deus. É o espírito do Anti-Cristo" (Jo., 1, 4, 2-3). Não se pode dizer mais energicamente: "Conheço o Cristo segundo a carne, — conhecei-lo vós também". Para João, a lacuna dos Sinóticos consiste precisamente em não mostrarem suficientemente — por mais estranho ainda uma vez que isso pareça — Jesus no Cristo, o homem em Deus. E eis porque toda a plenitude do cristianismo, seu //pleroma//, só se encontra de verdade no IV.º Evangelho. **XI** Entretanto, João está mais perto dos Sinóticos do que possa parecer à primeira vista. Basta só comparar a palavra do Senhor em Mateus (11, 27.): "Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo" com a de João (14, 6.): "Ninguém chega ao Pai senão por mim", para ver que há "no terreno dos Sinóticos um bólide caído do céu joanino" (17). Quem, pois, tomou emprestado: João aos Sinóticos ou estes a João? Isso parece muito pouco com eles. Em Mateus, Jesus fala com tom tão joanino que os críticos liberais decidem levianamente: "Jesus não podia falar assim; é uma interpolação posterior". Por que não o podia? Não será porque os modernos alógios estão tão convencidos como os antigos que João "mente"? (18) "... O quarto Evangelho, escrito sem nenhum valor, se se tratar de saber como Jesus falava, mas superior aos Evangelhos sinóticos, quanto à ordem dos acontecimentos", opina Renan, como se se pudesse em um homem e, com maior razão, num homem como Jesus, separar o que diz do que faz (19). **XII** Não é com os olhos que vemos dois João no mesmo Evangelho, mas nós os sentimos como se sente, se vê, com a ponta dos dedos, através dum pano, os dois objetos que ele envolve. (20) Dois homens: um, que chamamos o Apóstolo João, fala; o outro, o Presbítero João, escuta; um evoca suas reminiscências, o outro as recolhe, anotando-as talvez logo, talvez mais tarde, salvo se outros também tomam nota de suas palavras, mas, qualquer que seja posteriormente o número dos intermediários, os primeiros, os principais personagens são dois. Duas testemunhas, uma próxima e outra mais afastada. Um, o primeiro, originário da Palestina, não podia ignorar ou esquecer que a gente de Sicar (//Sychar//), tão abundante em águas, precisava ir ao poço de Jacó, longe da cidade (21), ou que as palmeiras não crescem sobre o monte das Oliveiras; porém o segundo, vivendo em Éfeso, poderia preferir para a entrada em Jerusalém, do Rei, não mais de Israel e sim do universo, as clássicas "palmas da vitória" aos humildes ramos verdes e às ervas, //stibadas//, da Judeia (Hb., 11, 18.). Como estas, vivas, primaveris, de pequenas folhas visguentas e cheirosas, são mais autênticas do que as outras, mortas e sem perfume! O primeiro não podia olvidar que não foi Moisés quem "instituiu a circuncisão entre os judeus" e que o sumo sacerdote judaico não é mudado todos os anos. Só o primeiro podia lembrar-se — ver com seus olhos — diante do pretório de Pilatos, o chão calçado de mosaico, //lithostrotosoron//, em aramaico //gabbatha// (ainda ai se sente, através da tradução grega, o original aramaico. Jo., 19, 13). Nessas minúcias se verifica que tudo o que foi dito e escrito não o foi "para provar e sim para narrar", //ad narrandum, non ad probandum//. E é só no primeiro que, nas discussões com os //soferim//, os escribas hierosolimitanos, — discussões intermináveis, "talmúdicas", vãs e incompreensíveis para nós — que o próprio Jesus, do mesmo modo que em Mateus, se revela um verdadeiro //Sofer// judeu, o //Rabbi// Jeschua (22). Também só o primeiro podia conservar a admirável narração sobre os irmãos de Jesus, que é "um pequeno tesouro histórico", como o faz notar muito justamente Renan (23). Estes, em João, quando tentam seu Irmão com pérfida prudência e ultrajante frieza: "Pois, se praticas tais obras, manifesta-te ao mundo" (7, 1-8), são talvez piores que os de Marcos, quando querem, simplesmente e rudemente, como galileus rústicos, "apoderar-se dele", amarrar o "louco" (3, 21.). Como o brilho deslumbrante do magnésio num quarto escuro ou um relâmpago na noite, esse relato ilumina com um clarão súbito os "trinta e três anos" que separam o Natal do Batismo e que são, para nós, os anos mais obscuros, mais desconhecidos de Jesus Desconhecido. **XIII** Mais precioso ainda é talvez o primeiro encontro do discípulo com o Mestre, "em Betânia" (os mais antigos manuscritos trazem Betânia), onde "João batizava": "No dia seguinte, João (o Batista) ali se achava de novo com dois de seus discípulos, e, olhando Jesus que passava, disse: eis o Cordeiro de Deus! Os dois discípulos ouviram essas palavras e seguiram Jesus. Jesus, tendo-se voltado e vendo que o seguiam, lhes perguntou: Que buscais? Eles lhe responderam: //Rabbi// — isto é, Mestre — onde habitas? Ele lhes disse: Vinde e vede. Eles foram e viram onde habitava, e ficaram com ele nesse dia. Era mais ou menos na décima hora (Jo., 1, 35-39.)". Quem poderia saber tudo isso senão aquele que tinha visto, e quem teria necessidade de guardar essa lembrança senão aquele que a tinha vivido? Nesse "mais ou menos na décima hora" (ele não olhou a hora num quadrante, mas ao sol, inconscientemente, por hábito, como um pescador galileu), nessas palavras singelas tudo para ele se fixa inapagavelmente, com uma nitidez "fotográfica": o sol da tarde declinando (a décima hora depois do nascer do dia corresponde a quatro horas da tarde), as águas do Jordão, rápidas e amareladas, no meio dos caniços e dos juncos verdes; as pedras redondas e brancas como os "pães da Tentação" do deserto da Judeia (24); e talvez a pomba descendo em um raio de luz duma nuvem de tempestade como dum "céu aberto", mas sobretudo Ele, seu rosto e, nem mesmo seu rosto, seus olhos, seu olhar somente, quando, ouvindo passos atrás de si, bruscamente se voltou, parou e olhou primeiro João e André, depois João sozinho, e pela primeira vez seus olhares se cruzaram. Foi talvez nesse primeiro olhar que Jesus o amou como amou o outro, o "moço rico" (Mc., 10, 17-24), mas de outro modo, inteiramente de outro modo. Como não se recordar de tudo isso, não o conservar? Para quem? Para todos os homens até a consumação dos séculos? Não, para si mesmo, para si somente e talvez também para Aquele que, também, sempre se lembra? Do mesmo modo que a imagem do Amado fica gravada viva na pupila viva de quem ama, ela se reacenderá mais tarde, viva, na pupila morta. É nessa imagem que a primeira testemunha, Marcos-Pedro, se encontra com a última, João. **XIV** É possível que o mesmo homem fale duas linguagens tão diversas como a de Jesus em João e nos Sinóticos, que uma harpa dê o mesmo som que uma flauta? Esse é, no fundo, o principal e único argumento dos céticos contra a "historicidade" de João. A essa pergunta direta respondamos diretamente: "sim, é possível". Se cada homem pode, não somente falar a pessoas diferentes uma linguagem diferente, ainda mais pode ele próprio ser diverso, contraditório, oposto, novo, inesperado, irreconhecível, por que isso não será possível com o Homem Jesus? Ele, a plenitude, o //pleroma// do humano, não poderia ser o mais diverso, o mais contrariamente concordante? Poderia falar às "multidões", //ochloi//, galileias com a mesma língua com que conversava a sós com seus discípulos (às vezes, na "escuridão", "ao ouvido"); poderia falar à noite com Nicodemos como de dia com os fariseus; poderia dizer a Pedro: "És feliz, Simão, filho de Jonas" (Mt., 16, 17), com a mesma voz com que disse a Judas: "Tu traíste o Filho do Homem com um beijo!" (Lc., 22, 48.) Que importa que a harpa da Judeia não tenha o som da flauta da Galileia? Nos Sinóticos, sua palavra tem uma simplicidade humana, sempre breve (mesmo os longos discursos em Mateus são compostos de frases curtas), sempre clara, às vezes cáustica, um pouco seca, cheia de sal ("o sal é uma boa coisa"; "tende sal em vós"). No IV.º Evangelho, pelo contrário, é longa, complicada, às vezes mesmo parece obscura e brumosa, fluida com a mirra preciosa e doce com a ambrosia. Ali, é, como na Galileia, a brisa seca das salinas junto ao mar Morto; aqui, como na Judeia, o incenso do orvalho nos prados edênicos. Mas ali e aqui: "Nunca um homem falou como esse homem" (Jo., 7, 46). É esse "nunca", essa "unicidade", essa incomensurabilidade com qualquer outra palavra humana que é a marca comum das palavras do Senhor em João e nos Sinóticos — o selo de sua igual autenticidade. Se, para nós, esse selo é ou não convincente, isso só depende da agudeza ou obtusidade de nossos ouvidos. "Tu estás possuído pelo demônio", diz João (7, 20.). "Ele perdeu o senso", diz Marcos (3, 21.). Será, parece, o primeiro julgamento e o mais profundo, o mais sincero que os homens, que o mundo, tal qual é, poderão pronunciar sobre as palavras do Homem Jesus. Essa palavra é dura, //skleroi//; quem pode escutá-la? (Jo., 6, 60.). Os homens não falam assim; não podem, não devem falar assim: não é possível suportá-la. É uma impressão absolutamente idêntica à que nos deixam a fluidez de mirra dos longos discursos "helênicos" do IV.º Evangelho e as breves //logia// aramaicas dos Sinóticos. **XV** Como muito justamente notou Wellhausen, é na oração dominical — o derradeiro discurso humano do Senhor — que se atinge ao supremo grau do que é sobre-humanamente único, insuportável, impossível para um ouvido humano (não seria para ouvir alguma coisa semelhante que Beethoven ficou surdo?). Dir-se-ia, no espaço terrivelmente vazio e claro, um monótono som de sinos em que as partes componentes dum acorde, unindo-se em uma ordem qualquer, ora avançam e se elevam como vagas da maré, ora caem para, depois, se levantarem mais alto, até o próprio céu (25). E existem ainda nesse acorde três componentes: o primeiro é: "Tu lhe deste". — "Que, pelo poder que tu lhe deste sobre toda criatura, ele dê a vida eterna a todos que tu lhe deste". — "Eu manifestei teu nome aos homens que tu me deste". — "Eu lhes dei as palavras que tu me deste..." — "Eu oro... por aqueles que tu me deste..." A essa primeira parte se junta e se entrelaça a segunda parte: "Glorifica-me..." — "Eu te glorifiquei..." — "E agora, tu, Pai, glorifica-me..." Terceira parte: "Tu me enviaste". — "Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo..." — "... a fim de que o mundo saiba que foste tu que me enviaste..." — "E aqueles que reconhecerem que foste tu que me enviaste..." Afinal, as três partes se fundem em um só acorde — o vértice da pirâmide ligando o céu à terra — o mais alto cimo a que jamais atingiu a palavra humana: "A fim de que todos sejam um como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, a fim de que eles também estejam em nós... A fim de que o amor com que me amaste esteja neles (Jo., 17, 25, 26.). O sino calou-se; não há mais sons — todos morreram no terrível silêncio — terrível para nós — como na branca luz do sol morrem todas as cores da terra. Mas, no próprio silêncio, as ondas crescem sempre, elevam-se cada vez mais alto, até o céu — "para essa alegria perfeita" (Jo., 15, 11.) — para essa bruma solar de raios ardentes em que as estrelas diurnas brilham mais claras do que as estrelas noturnas, como divindades: "No éter invisível e puro". **XVI** Eis o que há no mundo de mais santo e de mais silencioso. — É aqui talvez que o silêncio é para nós mais insuportável, mais impossível. Comparar isto com o êxtase dionisíaco, tumultuoso e, às vezes, pecaminoso, não seria somente uma blasfêmia grosseira, seria simplesmente inexato. E, se se quisesse tentar tal comparação, ela não poderia ser absoluta, religiosa, mas somente muito relativa, histórica. "Ele saiu de si", //ekestin//, dizia-se do iniciado nos mistérios dionisíacos e, falando de Jesus, em Marcos, seus irmãos empregam a mesma expressão (3, 31.). //Exeste-extasis// parece ser a tradução da palavra aramaica //messugge//, "o possesso", "o louco", da qual, às vezes, usava a populaça ímpia para insultar os santos profetas de Israel, os //nebiim//, porque a "possessão", a "saída de si", é o princípio de todos os "êxtases", quaisquer que sejam, santos ou culposos (26). Sabia-se bem disso nos mistérios dionisíacos. "Eu sou a verdadeira videira, E meu Pai é o vinhedor", diz o Senhor abençoando a copa de vinho, segundo João (15, 1.), de Vinho-Sangue, segundo os Sinóticos. O que isso significa, teriam compreendido também, no todo ou em parte, exatamente ou falsamente, nos mistérios dionisíacos. "Depois de ter cantado o cântico, eles saíram para ir ao Monte das Oliveiras" (Mt., 26, 30.). Eles cantaram o cântico pascal, a trovejante //Aleluia//, //Hallela//, cântico de alegria extática do Êxodo, do qual diz o Talmude: "A páscoa é como uma azeitona, e a //Hallela// quebra os telhados das casas (27)". É esse mesmo canto alegre, mas dum Êxodo maior — o Êxodo do espírito deixando o corpo, do "Eu" saindo do "Não-Eu" — que retumbava também nos mistérios dionisíacos. E, enfim, a principal semelhança é a monotonia extática dos movimentos nas danças dionisíacas e a repetição dos mesmos sons nos cantos, a monotonia do "toque de sinos": "Por que, Mestre, sempre repetes as mesmas coisas?" **XVII** Nos "Atos" apócrifos de João, devidos a Leucius Charinus, gnóstico da escola valentiniana, que datam do século II, isto é, duma ou duas gerações após o IV.º Evangelho e que, segundo parece, pertence ao mesmo ciclo dos discípulos efésios do Presbítero João, onde nasceu esse Evangelho (28), Jesus diz aos Doze, durante a Ceia: "Antes que eu seja traído, Cantemos um cântico ao Pai... E ele nos ordenou que formássemos um círculo. E, depois que nos déssemos as mãos, Ele se colocou no meio do círculo E disse: respondei: //Amen//. E cantou, dizendo: "Pai! glória a ti," E nós caminhávamos em redor, respondendo: "Glória a ti, Verbo! — //Amen//! Glória a ti, Espírito! — //Amen//! Eu quero ser salvo e salvar, — //Amen//! Eu quero comer e ser comido. — //Amen//! Eu vou tocar flauta, — dançai. — //Amen//! Eu vou chorar, — soluçai. — //Amen//! A oitava única, canta convosco. — //Amen//! A Dúzia dança convosco. — //Amen//! Tudo o que está no céu dança. — //Amen//! Aquele que não dança não conhece O que se vai cumprir. — //Amen//! (29) No sonoro bronze do latim (em Santo Agostinho, a propósito das ceias de Presciuliano), o canto é ainda mais "carrilhonante", mais monocórdio: "*Salvare volo et salvar volo, Solvere volo et salvi volo... Cantare volo, saltate cuncti* (30)". E, de novo, nos "Atos de João": "Que aquele que dança comigo se contemple Em mim, e, vendo o que faço, Se cale... Conhece na dança Que de teu sofrimento humano Eu quero sofrer... Quem eu sou Saberás quando me afastar, Eu não sou aquele que pareço (31)". O que significa: "Eu sou o Desconhecido". **XVIII** Foi alguma coisa análoga, embora bem outra (quem acreditaria que os discípulos pudessem dançar durante a Ceia?), supremamente desconhecida, terrível para nós por ser silenciosa como o bater do coração de Jesus que mal ouvia o discípulo recostado ao seu seio — mas silencioso desse silêncio que rompe não mais os telhados das casas, porém o próprio céu — foi talvez alguma coisa análoga que se passou realmente nessa noite, na "grande câmara alta", //anagaion//, guarnecida de tapetes, no andar superior da casa hierosolimitana, onde, atrás da porta, João-Marcos, o menino da casa, escutava e olhava curiosamente. Duas testemunhas: o rapazinho de quatorze anos, que deixou o leito, "com um simples pano aos ombros", João-Marcos, e o velho centenário, o pontífice revestido de ricas roupagens, com o "//petalon//" de ouro faiscando misteriosamente sobre a fronte, o Presbítero João. Dois testemunhos — tanto mais verídicos quanto mais contrariamente concordantes. Um deles só foi escrito pela mão duma testemunha ocular, mas nele se sente palpitar o coração daquele que viu. E, se isso ainda não nos basta, é porque talvez para nós seja o Evangelho já letra morta e não mais a "voz viva e inesgotável" e não compreendamos mais o sentido destas palavras: "Eis que ficarei convosco todos os dias até o fim do mundo! //Amen// (Mt., 28, 20.).