====== Merejkovsky – Jesus Desconhecido (I.2) ====== //Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935// **PRIMEIRA PARTE** **O EVANGELHO DESCONHECIDO** //E o mundo não o conheceu. Καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.// //(Jo. I, 10)// ==== **II** ==== **O EVANGELHO DESCONHECIDO** === **I** === //Não deixarei de notar nas minhas Explicações (das palavras do Senhor) tudo o que anteriormente aprendi e guardei dos Antigos, os Presbíteros, tendo absoluta certeza do que afirmam. Porque, ao contrário do que é vulgar, não procurei os grandes palradores, porém os que ensinam a verdade, nem os que lembram os mandamentos profanos, mas sim os preceitos impostos à nossa fé pelo Senhor e emanados da própria Verdade. Se alguém restava dos que haviam seguido os Antigos, eu me informava dos seus relatos, do que diziam André ou Pedro, Filipe ou Tomás, Tiago ou João, Mateus ou qualquer outro dos discípulos do Senhor, do que diziam Aristion ou João o Antigo (discípulos do Senhor). Porque julgava que teria mais proveito com o que vem de vozes vivas e inesgotáveis do que dos livros (1).// Foi nesses termos que, no ano de 150, Papias, bispo de Hierápolis, na Síria, a mais próxima testemunha dos discípulos do Senhor, se exprime no prefácio dos cinco livros de suas //“Explicações das palavras do Senhor”,// tesouro que os ortodoxos destruíram e que continha talvez muitas palavras desconhecidas de nós e não menos autênticas que as dos Evangelhos. Esse testemunho, o mais antigo que possuímos, é dos mais preciosos, pois é quase único, sobre o meio de onde saíram os Evangelhos. === **II** === Um testemunho um pouco posterior, datando mais ou menos de 185, de Irineu, bispo de Lião, é igualmente precioso, porque confirma o que diz Papias. Irineu nos conta o que ouviu e viu na sua juventude e cuja lembrança conservou viva. //“Lembro-me melhor do que então se passou do que dos fatos recentes, porque o que aprendemos em criança adere à nossa alma”.// Nessas reminiscências sobre São Policarpo mártir, bispo de Esmirna, um velho centenário dirá: //“ele nos relatava suas conversas com João e com os outros que haviam conhecido o Senhor, e, como guardava de memória o que deles escutara, tudo era conforme às Escrituras ... Gravei isso, não sobre o papiro, mas no meu coração, exatamente e para sempre”// (2). === **III** === O sentido dos dois testemunhos é muito claro, por mais estranho que nos pareça. Na Igreja, desde os dias da vida terrena do Senhor até o fim do século II e mais longe, até os séculos III e IV, até o historiador eclesiástico Eusébio, a cadeia viva da tradição se desenrola como uma espécie de apelo transmitido de século a século, de geração a geração: //“Vistes?” — “Vimos!” — “Ouvistes?” — “Ouvimos!”// Assim retumba no coração dos fiéis a //“voz viva e inesgotável”.// Existe além do Evangelho alguma coisa que lhe é igual, senão superior, porque mais autêntica, mais perto do Cristo vivo; o que é dito vale mais do que o que está escrito; os que viram e ouviram o Senhor sabem e lembram-se do que o Evangelho não sabe e não se lembra mais. === **IV** === Esse mesmo sentido estranho e quase espantoso vamos encontrar em uma lenda dos gnósticos, muito antiga, segundo parece: //“O Senhor, depois de sua ascensão, voltou novamente à terra e passou onze anos com seus discípulos, ensinando-lhes muitos mistérios”.// Essa é verossimilmente a parte mais antiga da lenda e eis a mais recente: //“E lhes ordenou que escrevessem tudo o que haviam visto e ouvido dele”// (3). Esta parte é posterior, porque, durante os dias, meses e anos que se seguiram imediatamente à desaparição do Senhor, seus discípulos não tinham tempo de escrever: a Vinda que esperavam era muito iminente: para que rolos de livros quando o próprio céu estava para se enrolar como um livro? Os homens mal teriam tempo de começar a ler o que sobre ele se escrevesse e ele se apresentaria. //“É preciso que se não esqueça”,// pensa o que escreve. Mas quem poderia esquecer? As crianças? Porém haverá ainda meninos, haverá ainda tempo para criá-los? Longo tempo ficou ele presente aos seus olhos; sua voz viva ressoava a seus ouvidos: //“Bem-aventurados vossos olhos, porque viram, e vossos ouvidos, porque ouviram” (Mt., 13, 16.)// Entretanto, desde que a primeira palavra foi anotada essa felicidade se acabou; foi como uma segunda preparação mais amarga. Escrever era reconhecer que ele não estava mais com eles e que não estava prestes a voltar. A amante que espera no dia seguinte a volta do seu amado não escreve; mas, se ele não volta, nem no dia seguinte, nem nos outros dias, a primeira carta marca a primeira inquietação, a primeira angústia. Foi isso sem dúvida o que se passou com os homens da primeira época, quando se escreveu o primeiro Evangelho: uma carta depois da separação, o sinal dum encontro adiado. === **V** === Foi isso, indubitavelmente, aos olhos do próprio Pedro o primeiro Evangelho em que Marcos, seu discípulo e filho espiritual, anotou os ensinamentos de seu mestre. //“Pedro, diz Clemente de Alexandria, relatando um testemunho provavelmente muito antigo, cuja inverossimilhança garante sua autenticidade, Pedro, sabendo que Marcos escrevia um Evangelho, nada fez para dissuadi-lo nem para encorajá-lo”.// Assim, ficou indiferente, recusando conceder-lhe um olhar, ou, quando muito, passando-lhe os olhos com //“angústia e inquietação”;// talvez não tenha dito, mas pensou: //“Ele também! Vá que sirva para os que não viram nem ouviram, mas para ele, que viu e ouviu tudo?...”// Pedro, o príncipe dos Apóstolos, nem animou nem abençoou o Evangelho: renegou-o. Isso é tão estranho, tão espantoso que não podemos crer nos nossos ouvidos. E, ao fim de alguns anos, a Igreja, recusando, como nós, a acreditar nisso, apressou-se a fazer desaparecer essa mancha que enodoava a memória de Pedro, que é a sua memória, com outras lendas mais recentes: //“Pedro, tendo sabido por uma revelação do Espírito que Marcos escrevera o Evangelho, se alegrou”,// ele //“confirma o que foi escrito”,// ordena mesmo que se escreva e, enfim, faz escrever o que ditará” (5). Para compreender tudo isso, embora só em parte, é preciso não esquecer que esses homens que //“renegaram o Evangelho”// tinham ouvido com os próprios ouvidos e visto com os próprios olhos o Cristo vivo, o Sol. Ele continua vivo com eles. E, perto d’Ele, junto d’Ele, o Evangelho é como uma vela acesa diante do sol. Mas chegou o dia em que tiveram de reconhecer que haviam compreendido mal o que o Senhor lhes dissera sobre sua vinda, embora lhes parecesse impossível que não tivessem compreendido o que lhes fora dito com terrível clareza: //Alguns dos que se acham aqui presentes não morrerão sem que tenham visto o Filho do Homem vir para seu reino” (Mt., 16, 28.).// Ora, todos ou quase todos morreram sem o ter visto. Havia nisso para eles tal escândalo que só ele, ainda presente e vivo entre todos, poderia aquietar. Entretanto, era necessário admitir que ele não viria logo, porém dentro de muitos anos, de muitos séculos talvez. Durante muito tempo ainda, os homens morrerão e nascerão (até então não se acreditava nisso ou não se pensava nisso) e mesmo é possível — pensamento tão terrível para eles como para nós! — que esqueçam o Cristo. Foi somente quando compreenderam que tinham de deixar o Sol, //“a luz do Senhor”,// e descer pelo longo e escuro subterrâneo dos séculos que haveriam de separar a primeira vinda da segunda, que se resignaram com dor no coração a acender a lâmpada, a escrever o Evangelho. É o que devemos compreender, embora seja difícil, mesmo quase impossível, senão não entenderemos nunca o que é o Evangelho, sobretudo não conseguiremos ver o que há além dele: a vida viva do Cristo, a vida desconhecida do Desconhecido. === **VI** === A primeira versão pré-sinótica, que, em seguida, tomou lugar entre os Sinóticos (//synoptikoi// quer dizer as co-testemunhas, os concordantes, em oposição a João, o que não concorda), apareceu na Palestina, pátria de Jesus, em aramaico, sua língua natal, provavelmente ali pelos anos de 40, isto é, antes que sua geração tivesse desaparecido (6); mas não teve curso senão para permitir aos jovens irmãos admitidos na comunidade, os quais não haviam visto nem ouvido o Senhor, aprenderem de cor suas Palavras (7). No fim da guerra da Judéia, os primeiros cristãos que abandonaram Jerusalém em ruínas refugiaram-se na cidade vizinha, Pela, depois em Kokaba, na província da Bataneia submetida ao rei Agripa II, perto da fronteira do reino dos Nabateus (Arábia). Ali também se instalaram os parentes de Jesus e, entre eles, os irmãos que haviam acabado por acreditar nele (8). Os primeiros arrulhos desses pombos brancos da Bataneia, pobrezinhos de Deus, //ebionim,// que, fugindo à tempestade, se haviam refugiado numa fenda do rochedo, sob a calma do sol nascente do Reino de Deus, são as primeiras //“palavras do Senhor”,// as //logia kyriaka,// que foram anotadas. Poderemos acreditar que o foram exatamente? Sim. Nessa ninhada de pombos, todos se arrimavam uns nos outros fortemente; nessa intimidade fraternal — (uma só alma, a Sua, em um só corpo, o Seu) — é para nós a melhor garantia duma memória fiel: o que um tiver esquecido os outros lhe lembrarão, se um se enganar, os outros retificarão. Lembrar-se-ão, não somente de suas palavras, mas ainda do som de sua voz viva, do rosto, do olhar, do gesto que as acompanhava, e de onde foram pronunciadas. Recordarão tudo, porque o amaram. === **VII** === Não podemos, com a experiência de nossa memória escrita, onusta e enfraquecida, fazer a menor ideia da força e da maravilhosa frescura da antiga memória oral. O enorme Talmud, o Rig-Veda com seus 16 mil versos, o Corão foram durante séculos conservados de cór. A memória dum bom discípulo, dizem os doutores do Talmud, é //“uma cisterna estanque que não deixa escapar uma gota de água”// (9). O poder exterior da memória era reforçado pelo poder interior das palavras do Senhor: //“Nunca um homem falou como aquele homem” (Jo., 7, 46.).// Se homens tão simples, tão grosseiros mesmo, como os servos dos Fariseus enviados para agarrar Jesus, o sentiram, quanto mais os discípulos dele. //“Nunca um homem falou assim”:// é que suas palavras tinham esse caráter único e sobre-humano, incomensurável a qualquer medida humana, que elas são tão memoráveis para eles, que as ouviram, e tão autênticas para nós, que as lemos: ai o memorável e o autêntico se confundem. //“Uma espécie de brilho ao mesmo tempo suave e terrível, uma força divina, se ouso dizer, sublinha essas palavras, as faz ressaltar do texto e as torna facilmente reconhecíveis pela crítica”,// nota Renan (10). E, certamente, ele, o incrédulo, tão sutil e tão complicado, tem muito mais dificuldade de compreender do que os simples e rudes servos dos Fariseus. Basta comparar o Evangelho aos outros livros do Novo Testamento, ou, melhor, o Lucas do Evangelho ao Lucas dos Atos dos Apóstolos para sentir tudo o que distingue a Palavra Verdadeira das outras, tão bruscamente como o pulmão sente a passagem do ar dos campos ao dos aposentos, ou o olhar sente a passagem da luz do sol à duma candeia. É o mesmo que cair do céu sobre a terra. === **VIII** === Palavras tão simples que uma criança as entende. Pequenas parábolas, quadros ingênuos que se incrustam para sempre na memória: a trave nos nossos olhos, a palha no olho do vizinho; o cego guiando o outro cego para o buraco. É tão simples, tão compreensível que a gente se lembrará até o fim do mundo. As crianças compreendem, mas não os sábios, porque essa primeira camada clara recobre outras, tanto mais obscuras e enigmáticas quanto mais profundas. Porém, antes mesmo que o homem dê fé, esses enigmas se imprimem no seu espírito, na sua vontade, na sua consciência e, em todo caso, na sua memória, como espinhos agudos ou dardos envenenados. E aquele cujo coração foi ferido uma vez ficará envenenado para sempre. === **IX** === Todas as palavras humanas parecem de argila friável ao lado dessas que têm a dureza e a limpidez do diamante. O mundo move-se sobre elas como sobre eixos indestrutíveis: //“O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão” (Lc., 21, 32.).// Todas as palavras humanas são ásperas como calhaus ao lado dessas criações do Logos, da Lógica Divina — desses cristais de perfeição geométrica. Assim, a memória visual neles discerne logo o menor defeito — uma ruga ou uma fenda — devidas, não ao cristal, mas à imperfeição da memória. Não se poderia exprimir melhor, nem de outro modo, e que aquele que duvidar procure dizer melhor ou melhor polir o diamante! === **X** === A música interior da linguagem se encontra indestrutível em todas as traduções, em todos os idiomas. Não existe livro mais universal do que esse: é de todas as línguas e de todos os tempos. //“Que fostes ver no deserto? Um caniço açoitado pelo vento?”// ou, então: //“Vinde a mim vós todos que estais fatigados e carregados”.// Isso ressoa e ressoará até o fim do mundo, em todos os quadrantes do mundo, indestrutivelmente (11). A memória auditiva distingue imediatamente o som dessas palavras do de todas as outras palavras humanas, como distingue o tinido duma moeda de ouro verdadeira do duma peça falsa de chumbo; entre todas as vozes estranhas, ela encontra e reconhece essa voz familiar: //“As ovelhas o seguem, porque conhecem sua voz” (Jo., 10, 4.);// a memória auditiva reconhece no meio de todos os ruídos terrestres os sons do paraíso. === **XI** === A memória auditiva reconhece igualmente esse ritmo duplo, que se não pode repetir, particular às palavras do Senhor — o paralelismo dos dois membros da frase que não é simplesmente concordante, como no Antigo Testamento, porém, ao mesmo tempo, concordante e contrário: //“Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”; “Aquele que tiver guardado sua alma a perderá e aquele que a tiver perdido a achará”.// Cada palavra contém tese, antítese e síntese; um //“sim”,// um //“não”// e acima um //“sim”// que as une: o Pai, o Filho e o Espírito; essa música trinitária retumba em todo o Evangelho como numa concha o rumor das ondas marinhas. Nas asas desse duplo ritmo, sua Palavra voa através de todos os séculos e de todos os povos, viva, imortal, como o pólen maravilhosamente sutil que o vento transporta a milhares de léguas. === **XII** === A memória do paladar distingue também imediatamente de todas as palavras humanas a sua Palavra, impregnada dum sal que faz parecer insulsas todas as outras. //“É uma boa coisa o sal”. — “Tende sal em vós mesmos” (Mc., 9, 50).// Em quantas de suas Palavras se encontra o sal, não só o da Sabedoria Divina como ainda o da inteligência humana, e poder-se-ia dizer o //“espírito”,// de certo não como o entendemos hoje e sim com um outro sentido para o qual não temos termo próprio! A viúva importuna em casa do juiz, o servo infiel, o rico imbecil diante da morte e quantos outros! Em cada palavra, sobretudo nas parábolas, há uma pitada de sal, a luz dum sorriso que não é da terra, luz que brilha dolorosa ou alegre, mas com uma suavidade sempre igual, acima de todas as coisas terrenas. Escama-se, esvazia-se e se faz secar ao sol sobre a praia o peixe colhido no lago de Genezaré. É o humilde alimento dos pescadores galileus, dos Doze e dos Anjos que vêm a eles. Aquele que uma vez provou o peixe seco do lago de Genezaré, repasto regiamente pobre do Senhor, jamais o esquecerá e não o trocará por nenhuma ambrosia. === **XIII** === Mas talvez seja a memória do coração que melhor reconheça suas palavras. //“Aquele que não deixar mãe e pai...” — “Tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber. Era estrangeiro e não me agasalhastes. Estava nu e não me vestistes; doente e prisioneiro, e não me visitastes” (Mt., 25, 42-44).// O coração sente-se transpassado como por um ferro em brasa e fica tão bem marcado por essa queimadura que logo se reconhece de onde ela veio. Mesmo que o Evangelho viesse a desaparecer, essas marcas no coração da humanidade testemunhariam que o Cristo esteve na terra. === **XIV** === O som do original aramaico reconhece-se ainda facilmente na versão grega do Evangelho (12). Quem eram, então, os Arameus? O ramo setentrional da raça semita, o mais próximo dos Arianos. Dois ou três mil anos antes de Jesus Cristo, eles foram os primeiros intermediários espirituais e não políticos, até no sentido das profecias judaicas anti-políticos, entre o Egito-Babilônia e a Fenícia-Canaã (a Creto-Egéia, a Atlântida européia). Foram ainda os últimos mensageiros da universalidade, da //“catolicidade”// antiga e os primeiros mensageiros da nova (13). Se o mito do dilúvio, da Atlântida, do ponto de vista da religião e mesmo da pré-história, tem algum valor, então o segundo Adão, Jesus, fala à segunda humanidade a linguagem da primeira. No século XI antes de Jesus Cristo, a língua aramaica era tão universal como seria mil anos mais tarde a língua grega popular, comum, //koinê,// de Alexandre Magno e do próprio deus Dionísio — essa sombra do Sol, do Filho que devia vir (14). O Evangelho, traduzido do aramaico nessa língua, une as duas universalidades, as duas humanidades numa só, a primeira e a segunda em uma terceira. Encontramos nisso a tese, a antítese e a síntese: o Pai, o Filho e o Espírito, a mesma música trinitária que ressoa no Evangelho como ressoa numa concha o rumor das ondas do mar. === **XV** === Para ouvir a //“voz viva e inesgotável”// de Jesus Cristo, para sentir na sua língua natal //“o próprio hálito de seus lábios divinos”, suavitates quae velut ex ora Jesu Christi... afflari viventur,// é preciso abrir caminho através da tradução grega para chegar ao original aramaico (15). O primeiro balbucio: //Abba,// que dirige a seu Pai na língua de sua mãe terrestre, e seu derradeiro grito na cruz: //Lama sabactani!// são ambos aramaicos: //Rabbi Jeschua,// Jesus o Arameu, esse é que é o Jesus Desconhecido. === **XVI** === //“O que se tocou no alaúde não tem o mesmo som na flauta”// (16). Assim, //Talitha kumi// não significa //“rapariga, levanta-te”,// mas //“menina, acorda”.// Como esse formidável milagre da ressurreição tem uma simplicidade infantil, compreensível, natural nessas palavras infantilmente simples! //“Rapariga, levanta-te”:// a alma cala-se e dorme o sono da morte; //“menina, acorda”:// a alma ressuscita, desperta (17). Nessa simplicidade é que reside a divindade do Evangelho: é tanto mais divino quanto mais simples. Dela é que lhe vem a transparência, a invisibilidade, a quase ausência de ar. Em certas manhãs de inverno de edênica claridade, na pátria de Jesus, ao pé das montanhas da Galiléia, o ar, o mais puro éter celeste que há sobre a terra, tem tal translucidez que os objetos mais distantes aparecem próximos: parece que um passo separa o Hermon do Tabor. O mesmo éter celeste banha o Evangelho. Os dois mil anos que dele nos separam como que não existem: ontem e hoje nele se confundem, tudo aquilo não foi, tudo aquilo é. //“Antes que Abraão existisse — e depois que vós houverdes existido e que tiverem existido os últimos homens do mundo — Eu Sou”.// Entre Ele e nós, nada há; estamos com Ele face a face. É tão terrível que se compreende que, às vezes, os próprios crentes se arreceiem durante anos seguidos de abrir o Evangelho; ouvem-no na igreja, mas, em casa, tapam os ouvidos para não escutar a voz terrivelmente próxima: //“Preciso hoje ficar na tua casa”.// === **XVII** === Esse Evangelho tão simples e tão terrivelmente próximo é que é o Evangelho Desconhecido. São simples recordações orais de gente simples que não sabia escrever, de //“analfabetos”;// aliás, não há tempo: //“Ele mesmo vai chegar”.// //“As recordações dos Apóstolos que são denominadas Evangelhos”,// diz Justino Mártir, o qual, tendo vivido ali pelo ano 150, vira e ouvira os que haviam visto e ouvido o Senhor (18). Isto significa que //“Recordações” — Apomnêmoneumata// são o primeiro, o mais antigo título do livro, e que //“Evangelho”// é o segundo. //“Recordações”,// não no sentido de //Memorabilia,// como as de Xenofonte sobre Sócrates (há em Jesus coisas mais ou menos dignas de memória ou tudo o é?), porém antes no sentido de nossas //“Memórias”// pessoais e históricas. Eis o que é necessário ter sempre em vista para compreender o Evangelho. === **XVIII** === //“Nada podemos quase conhecer sobre Jesus histórico nos Evangelhos, porque esse livro, conforme sua própria origem, não é de nenhum modo histórico e sim litúrgico: desde o ano 40 do primeiro século, era lido nos ofícios do domingo”,// relata ainda Justino Mártir (19). É fácil refutar essas dúvidas correntes quanto à historicidade dos Evangelhos. Em primeiro lugar, na época em que aparecem as //“palavras do Senhor”,// isto é, não nos primeiros tempos, mas nos primeiros dias do cristianismo, as concepções de //“Igreja”// em geral e de //“rito”// em particular não correspondem absolutamente às nossas. As pequenas //“capelas”// domésticas, humildes recâmaras em que tudo era tão simples, tão pobre, tão nu e tão fraternalmente íntimo e ardente e terno, em que a imensidade e a emoção eram totalmente interiores, porque Ele acabava de estar ali em pessoa e ia talvez voltar, em que Ele estava sempre invisivelmente presente (//parusia//), essas pequenas capelas diferiam muito de nossas igrejas-templos, vastas, magníficas e frias. Se um desses //“pobres de Deus”,// desses //“Filhos de Deus”// de súbito se visse numa dessas igrejas — em São Pedro de Roma ou em Santa Sofia — sentiria tanta surpresa e tanto pavor que teria vontade de chorar como as criancinhas. Também não reconheceria suas notas, humildes farrapos de papiro ou de pergaminho cobertos de caracteres aramaicos, sujos, gastos, mas regados de que lágrimas e iluminados de que amor! — seus //“Evangelhos”// — no livro enorme, pesado, quase impossível de abrir, encadernado de ouro e pedrarias que é o nosso Evangelho eclesiástico. === **XIX** === Acrescentemos a isso o que diz Orígenes: //“Se os Evangelistas não fossem verídicos, mas tivessem inventado fábulas (mitos), como crê Celso, não teriam referido a negação de Pedro e o escândalo dos discípulos”// (20). E não teriam deixado em silêncio muitas outras coisas? Pedro, que, na boca do Senhor, é //“Satan” (Mt., 16, 23.);// Judas, o traidor eleito para ser um dos Doze pelo Mestre, que sabe todavia o que Judas será para Ele e para os outros; a //“possessão”,// a //“demência”// de Jesus na terrível narrativa de João (7,20; 10, 20) e na mais terrível ainda de Marcos, a //“loucura”// de Jesus, admitida, não só por seus irmãos, como mesmo por sua mãe (3, 21, 31-35); a existência de outro Jesus, Bar Abba, //“Filho do Pai”// (segundo a lição dos mais antigos manuscritos), posto em liberdade (21) e o supremo grito do Filho a seu Pai: //“Por que me abandonaste?”// Mas, de que serve enumerar tudo isso? Basta abrir o Evangelho para verificar que está cheio desses //“escândalos”, skandala,// dessas //“palavras duras” (Jo., 6, 60.).// Ele não é mais do que //“um sinal que provocará a contradição”,// como o predisse Simeão Teóforo, carregando-o, menino, nos braços: //“Eis que esse menino está destinado a ser...// //Um sinal que provocará a contradição,// //Semeion antilogomenon (Lc., 2, 34.)”.// Que estranho, terrível livro //“ritual”,// em que, a cada passo, estão preparadas, como de propósito, tais armadilhas-enigmas! Por mais estranho e terrível que pareça, pode-se dizer que o Evangelho é o menos //“ritual”// e mesmo, dando à palavra //“Igreja”,// não o sentido que tinha nos primeiros dias do cristianismo e sim o que tem agora, o menos //“eclesiástico”// de todos os livros passados, presentes e provavelmente futuros. Foi preciso fechá-lo e encouraçá-lo de ferro, de gemas e de diamantes, esse livro terrível, para seu espírito não explodir e não aniquilar completamente toda a Igreja. Mas a força divina da Igreja está em ter agido de tal sorte que só vive do espírito desse Evangelho eternamente oprimido e jamais esmagado, somente se movendo com as suas explosões interiores. Para persistir afinal na dúvida da //“historicidade”// do Evangelho é preciso ser péssimo historiador. === **XX** === Sente-se quanto os que invocam suas recordações têm, às vezes, dificuldade em lembrar o discurso vivo de Jesus — essas //“palavras estranhas e duras”// — e quanto as acham incompreensíveis: //“Aqueles que estão comigo não me compreenderam”. Qui mecum sunt non me intellexerunt (22).// Ficam atônitos, //“escandalizados”;// entretanto, relatam exatamente as palavras incompreendidas, seladas, intactas, inteiras, vivas, como que ainda tépidas do //“hálito dos lábios divinos”.// Amontoam os pesados blocos das palavras, sem ousar tocá-los, cortá-los ou poli-los. Essas palavras penetraram profundamente em seus corações, marcaram com um sinal inapagável suas memórias para que possam, mesmo querendo, não as escrever como as ouviram: //“Não podemos deixar de dizer o que vimos e ouvimos (Atos, 4, 20.)”.// Por que não podem? Porque o amam muito. Esse infinito amor por Ele é que é a mais sólida garantia da infinita veracidade do Evangelho (23). === **XXI** === Dir-se-ia que, para formar o Evangelho, meteram num cofre, ao acaso, misturadas, as folhas esparsas, as notas sobre as palavras e os acontecimentos da vida do Senhor; depois, essas folhas se animaram e soldaram como as pétalas duma flor única, tanto que é impossível separá-las sem matar a flor; suas tintas vivamente opostas, //“contraditórias”,// fundiram-se na beleza única e viva dessa flor, a Face do Senhor. //“Tu és mais belo do que os filhos dos homens”// e o livro que de Ti nos fala é mais belo do que todos os livros humanos. Mas o próprio Evangelho ignora que é belo e não quer ser belo: se o soubesse, se o desejasse, todo o seu encanto se evolaria. Essa flor desconhecida do Paraíso desconhecido só floresce e só tem perfume para Deus. === **XXII** === O ar é necessário à flor; a liberdade, ao Evangelho. Que liberdade? Digamos singelamente: qualquer liberdade e sobretudo a //“liberdade de crítica”.// A crítica é o julgamento. Se o Evangelho é a verdade, poderá ser julgado? A verdade julga, não é julgada. Mas, antes de tudo, quem de nós ousaria dizer, vivendo como vivemos, que para si o Evangelho é já a verdade? Depois, a verdade combate a mentira e se defende dela. A Apologética, nascida, pode-se dizer, com o Evangelho, nada mais é do que essa defesa. Porém, se a verdadeira crítica acaba pela Apologética, é possível que a Apologética comece pela crítica. === **XXIII** === As //“contradições”// aparentes ou reais do Evangelho implicam já a liberdade necessária da escolha, do julgamento e da crítica. Lê-se em Marcos (10, 18.) : //“Por que me chamas bom?”// e em Mateus (19, 17.): //“Por que me interrogas sobre o que é bom?”// Jesus podia falar ora dum modo, ora do outro? Entretanto, entre as duas frases há tanta diferença como entre o céu e a terra. Queira-se ou não se queira, é preciso julgar, escolher livremente, ser juiz, ser //“crítico”// (24). Essas contradições, não somente entre as palavras dos diversos Evangelhos, porém ainda entre as diferentes leituras da mesma palavra, obrigam-nos a fazer uma escolha. Jesus não pôde fazer ali (em Nazaré) nenhum milagre, diz o nosso texto canônico (Mc., 6, 5), enquanto que lemos nos códices italianos mais antigos (//Italocódices//): //“Jesus não fez ali nenhum milagre”, non faciebat,// no sentido, bem entendido, que teria podido, mas não quis (25). De novo, a diferença é enorme e não se pode apagá-la senão com a mais grosseira violência, quebrando ou abotoado a agudeza divina da Palavra com a tolice humana. E eis o que é ainda mais agudo. No nosso texto canônico de Mateus (I, 16), que data do século IV, lemos: //“Jacó foi pai de José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus”,// enquanto que no códice siro-sinaítico (//Syrus-Sinaiticus//), redigido segundo o original grego do século II, se diz: //“José, de quem a Virgem Maria foi esposa, gerou Jesus”.// //Joseph cui desponsato virgo Maria, genuit Jesum (26).// Aqui a diferença atinge o dogma da Conceição virginal. Não sabendo o que fazer, esconderam o manuscrito no canto mais obscuro da biblioteca do Sinai, onde ficou dezesseis séculos até que, enfim, nos nossos dias, veio a lume, talvez para encher de má e vã alegria os críticos da esquerda e de medo não menos vão os teólogos (27). === **XXIV** === //“O Espírito Santo guiava a mão dos Evangelistas, quando escreviam o Evangelho”,// ensina um teólogo protestante do século XVI (28). O Evangelista que escreve seria, pois, para o Espírito, o que é o teclado do órgão para o musicista. Se assim é, é evidentemente necessário pôr de acordo todas as //“contradições”// dos Evangelhos, embora seja necessário, no começo de semelhantes //“sinfonias”,// afirmar, como o faz Santo Agostinho, que houve duas Marias de Magdala, e, afinal, o que ninguém faz, que Jesus nasceu duas vezes e morreu três, ou, em outros termos, que o sentido divino leva os homens ao absurdo. Mas, se não é assim, então o sopro do Espírito, a //“inspiração divina”// do Evangelho e a aspiração à liberdade são uma e a mesma coisa. === **XXV** === Aquele que não crê livremente deve limitar-se a frequentar a igreja e a escutar a //“leitura do Evangelho”,// mas não o deve abrir para não perder sua antiga fé, pois não é certo que encontre uma nova. === **XXVI** === Há alguma coisa de divinamente tocante, e tem-se vontade de dizer de divinamente lamentável, nas //“contradições evangélicas”,// nesses esforços do Espírito Divino, como que desesperados, convulsos e todavia ciosos da liberdade humana, para abrir caminho através da carne e do sangue, esforços vãos, semelhantes ao vacilar da chama em um ar abafado ou ao bater de asas da pomba presa no laço. === **XXVII** === De todos os dons que Deus fez aos homens, a liberdade é o mais terrível, mas também o mais sagrado. Sente-se isso no Evangelho melhor do que em qualquer outra parte. — Eis porque o primeiro objeto sobre que se atiram, para destruí-lo, todos os opressores do Espírito é o livro mais temível para eles, o Evangelho. //“Em lugar de subjugar a liberdade humana, tu a multiplicaste e carregaste com seus sofrimentos... o homem para sempre... Não pensaste que êle acabaria enfim rejeitando... até a tua verdade, oprimido por esse terrível fardo?”// diz ao Cristo o Grande Inquisidor de Dostoievsky. //“Sê um cadáver nas mãos de teu senhor, perinde ac cadaver”,// diz Loyola. Pascal queria ser esse cadáver, mas não pôde, e o medo do //“abismo”,// da liberdade evangélica, o enlouqueceu. === **XXVIII** === Temer a liberdade, não crer nela, é não crer no Espírito Santo, porque o Espírito é precisamente a liberdade humana em Deus. Eis aonde nos conduz a crítica evangélica e já não é pouco. Chegamos, talvez por um preço terrível, mas enfim chegamos a compreender ou a estar prestes a compreender o que, durante dois mil anos de cristianismo, ninguém nunca compreendeu: que o nome desconhecido do Cristo é o de Libertador e que, se não aceitamos a liberdade, jamais conheceremos o Desconhecido.