====== Merejkovsky – Jesus Desconhecido (I.1) ====== //Dmitri Merejkovsky – Jesus Desconhecido. Tr Gustavo Barroso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935// **PRIMEIRA PARTE** **O EVANGELHO DESCONHECIDO** //E o mundo não o conheceu. Καὶ ὁ κόσμος αὐτὸν οὐκ ἔγνω.// //(Jo. I, 10)// ==== **I** ==== **JESUS TERÁ EXISTIDO?** === **I** === Estranho livro. Nunca foi completamente lido. Pode-se lê-lo continuamente e parecerá sempre que não se chegou ao fim, que alguma coisa foi omitida ou incompreendida. Torna-se a ler e tem-se a mesma impressão todas as vezes. É como o céu noturno: quanto mais se contempla, mais estrelas se descobrem. Nesse ponto, todos os que leram esse livro ou o viveram, porque não se pode lê-lo sem vivê-lo — tolos ou inteligentes, sábios ou ignorantes, crentes ou ateus — todos estarão de acordo, pelo menos no fundo de suas consciências. E todos logo compreenderão que me refiro não a um livro humano, nem mesmo ao Livro Divino, mas simplesmente ao Evangelho. === **II** === “O milagre dos milagres, deslumbramento e motivo de assombro, nada se pode dizer nem pensar que ultrapasse o Evangelho; nada existe que se lhe possa comparar ”. Assim se exprime Marcion, o grande gnóstico do século II, e eis o que diz um simples católico, um jesuíta do século XX: “Os Evangelhos não devem ser postos ao lado ou acima dos outros livros escritos pela mão do homem, porque estão fora de comparação e não há medidas para eles ”. Sim, são de outra natureza; distinguem-se de todos os outros livros mais do que o rádio difere dos outros metais ou o raio de qualquer outro fogo. Não são mesmo um livro, porém qualquer coisa que não podemos denominar. === **III** === **O NOVO TESTAMENTO DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO** Tradução para o russo. S. Petersburgo, 1890 É um pequeno volume in-32, encadernado em couro preto, impresso em 662 páginas de duas colunas de tipo miúdo. De acordo com a data manuscrita do frontispício, 1902, agora, em 1932, faz trinta anos que me acompanha. Leio-o todos os dias e o lerei enquanto meus olhos puderem ver à luz do sol ou à luz do meu coração, tanto nos dias mais refulgentes como nas noites mais escuras, na felicidade ou na desgraça, com saúde ou enfermo, crente ou incrédulo, sensível ou insensível. E parece-me sempre encontrar nele qualquer coisa nova ou ignorada. Nunca o lerei bastante. Jamais o conhecerei até o fim. Só o vejo com a menina dos olhos e só o sinto com o âmago do coração. Que seria se o pudesse conhecer inteiramente? Sobre a capa, o título — NOVO TESTAMENTO — está tão apagado que mal se pode ler. Os dourados desmaiaram. O papel amareleceu. O couro da encadernação está rútilo. O dorso descolou. As folhas descoseram-se, gastaram-se nas margens ou têm os cantos enrolados. É necessário encaderná-lo de novo, mas não tenho coragem de fazer isso com medo de me separar, mesmo por alguns dias, do pequenino livro. === **IV** === Como eu, homem, que o gastei de tanto lê-lo, a humanidade também dirá como eu digo: “Que levarei comigo para o túmulo? Ele. — Com que me levantarei do túmulo? Com ele. — Que fiz na terra? Li-o”. É muito para o homem e talvez para toda a humanidade, mas para o livro é terrivelmente pouco. //“Por que me chamais: Senhor, Senhor... e não fazeis o que eu digo?” (Lc. 6, 46)// E um //agraphon//, uma palavra desconhecida de Jesus Desconhecido, que não figura no Evangelho, é ainda mais forte, mais terrível: //Se fazeis um comigo e vos deitais sobre meu seio, mas não cumpris a minha lei, eu vos afastarei de mim .// Isto quer dizer que não se pode ler o Evangelho sem cumprir o que ele manda. Mas quem de nós o cumpre? Eis porque é o menos lido e o mais desconhecido dos Livros. === **V** === O mundo, tal como é, e esse Livro não podem coexistir. Ou um ou o outro. O mundo tem de deixar de ser como é ou esse Livro deverá desaparecer do mundo. O mundo absorveu-o como um homem sadio toma um veneno ou como um doente toma um remédio, lutando contra ele para assimilá-lo ou vomitá-lo de vez. Esse combate dura há vinte séculos e, durante os últimos, a luta se tornou tão áspera que até um cego vê que o mundo e esse Livro não podem coexistir: é o fim de um ou do outro. === **VI** === Os homens leem o Evangelho como cegos, porque estão habituados a ele. Quando muito dizem: “É um idílio galileu, um segundo paraíso perdido, o sonho divinamente belo da terra que aspira ao céu, porém, se se realizasse, tudo se acabaria”. Pensamento espantoso? Não, habitual. === **VII** === //“Ficava-se impressionado com seu ensinamento”.// Isto que é dito ao começo se repete no fim: //“Toda a multidão ficava impressionada com seu ensinamento”. (Mc. I, 22; 2, 18).// //“O cristianismo é estranho”,// declara Pascal . //“Estranho”,// extraordinário, espantoso. É pelo espanto que se aborda a ele e, quanto mais nele se penetra, maior é o espanto. São Mateus vê no espanto o primeiro grau do conhecimento superior (//gnose//)... como também ensina Platão: o espanto é o começo de todo conhecimento, diz Clemente de Alexandria, — lembrando-se talvez dum //agraphon//, sem dúvida tirado do original aramaico de São Mateus, hoje perdido: //Aquele que busca não deve repousar enquanto não tiver achado; e, tendo achado, ficará espantado, espantado, reinará; reinando, repousará .// === **VIII** === O publicano Zaqueu //“queria ver Jesus, mas não podia por ser pequenino. Correu, pois, diante dele e trepou numa figueira”. (Lc., 19, 3, 6.)// Nós também somos //“pequeninos”// e subimos numa figueira — a história — para ver Jesus, mas não o veremos, enquanto não o ouvirmos dizer: //“Zaqueu desce depressa, porque é preciso que hoje eu fique em tua casa”. (Lc., 19, 5.)// Somente quando o tivermos visto hoje, em nossa casa, é que poderemos vê-lo na história há dois mil anos. //“A vida de Jesus”// é o que procuramos sem o achar no Evangelho, porque ele tem outro fim — não sua vida, porém a nossa, a nossa salvação, //“pois não existe sob o céu outro nome que tenha sido dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos”. (Atos, 4, 12.)// //“Estas coisas foram escritas para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e, acreditando, tenhais a vida”. (Jo., 20, 31.)// Só depois de haver achado nossa vida no Evangelho nele também encontraremos a //“vida de Jesus”.// Para saber como ele viveu, é preciso que ele viva naquele que deseja conhecê-lo. //“Não sou eu mais quem vive, é Jesus quem vive em mim”. (Gal., 2, 20.)// Para vê-lo, tem-se de ouvi-lo como o ouviu Pascal: //“Eu pensava em ti na minha agonia e derramava minhas gotas de sangue por ti”// . E como o ouviu São Paulo: //“O Filho de Deus me amou e ele próprio se sacrificou por mim”. (Gal., 2, 20.)// Eis o que há de mais desconhecido nele, o Desconhecido: a atitude pessoal do Homem Jesus para com a personalidade, — antes de minha atitude para com ele, a dele para comigo; esse é o milagre dos milagres e por onde dentre todos os livros humanos, lumes terrestres, se distingue esse clarão celestial — o Evangelho. === **IX** === Para ler no Evangelho a //“vida de Jesus”,// não basta a história; é preciso ver também o que está acima dela, antes e depois dela, o começo e o fim do mundo; é preciso decidir qual dos dois domina o outro, a História ou Jesus, qual dos dois deve julgar o outro, ela ou ele. No primeiro caso, não se pode vê-lo na história; só é possível vê-lo no outro caso. Antes de vê-lo na história, precisa-se vê-lo em si mesmo. //“Ficai comigo e eu ficarei convosco”. (Jo., 15, 4.)// A essa palavra reconhecida corresponde uma palavra não reconhecida, um //agraphon:// //Assim me vereis em vós como alguém que se contempla na água ou num espelho. // Só levantando os olhos desse espelho interior, a eternidade, é que nós o veremos também no tempo, a história. //“Jesus existiu?!”// A essa pergunta só poderá responder, não aquele para quem somente ele existiu, mas aquele para quem ele existiu, existe e existirá sempre. Que existiu, as crianças sabem e os sábios ignoram. //“Quem és tu? — Até quando terás nosso espírito suspenso?” (Jo., 8, 25; 10, 24.)// Que é ele, mito ou história, sombra ou corpo? É preciso ser cego para confundir o corpo com a sombra, mas ao próprio cego basta estender a mão, tatear, para sentir que o corpo não é a sombra. Ninguém teria pensado em perguntar se Jesus existiu, se, antes da pergunta, já o espírito não tivesse sido obumbrado pelo desejo de que ele não houvesse existido. É tão desconhecido, tão enigmático em 1932 como no ano 32, continuando //“o sinal que provocará a contradição”. (Lc., 2, 35.)// Sua milagrosa aparição na história universal é uma perpétua névoa nos olhos dos homens, que preferem negar a história a acreditar no milagre. === **X** === O ladrão precisa de trevas: o mundo precisa que Cristo não tenha existido. === **XI** === //“Li, compreendi e condenei”,// disse do Evangelho Juliano o Apóstata . Nossa Europa //“cristã”// e apóstata ainda não o diz, mas já o faz. Os homens são rotineiros em tudo e especialmente em matéria de religião. É possível que não somente a horrenda //“massa de perdição”, massa perditionis//, //“a multidão nascida sem razão”, multitudo quae sine causa nata est// , o //“joio”// do Evangelho, como também o trigo do Senhor que o joio abafa, continuem a crescer juntos, tal qual há meio século, sob dois signos — as duas //Vidas de Jesus// de Renan e de Strauss. Poder-se-ia, falando do livro de Renan, dizer como o Anjo do Apocalipse: //“Tomai-o e devorai-o! Será amargo para tuas entranhas, mas doce aos teus lábios como mel”. (Apoc., 10,9.)// Misturar mel e veneno, esconder alfinetes em bolinhas de pão foi a arte em que Renan se tornou inigualável. //“Jesus não será ultrapassado... Todos os séculos proclamarão que entre os filhos dos homens nunca houve um maior do que Jesus”. — “Repousa agora na tua glória, nobre iniciador. Tua obra está finda e tua divindade fundada. Não receies mais ver desabar por um erro o edifício dos teus esforços; tornar-te-ás de tal modo a pedra angular da humanidade que arrancar teu nome deste mundo seria abalar-lhe os fundamentos”. // Eis o mel e agora o veneno ou o alfinete na bolinha de pão: o límpido profeta das //Beatitudes// torna-se pouco e pouco o //“gigante sombrio”// das //Paixões//. A caminho de Jerusalém, começa a compreender que toda a sua vida foi um erro fatal; compreendeu-o definitivamente na cruz e //“talvez se arrependeu de haver sofrido por uma raça vil”. // Pior ainda: Lázaro, de conivência com Marta e Maria, deitou-se vivo no túmulo para enganar as gentes pelo milagre da ressurreição e //“glorificar seu Mestre”.// Este sabia? Talvez — palavra querida de Renan — //“talvez”// soubesse. É a alusão mais sutil, o mel mais envenenado, o espinho mais agudo . Seja como for, o //“grande encantador”// — outra expressão preferida de Renan — //“tombou vítima duma santa loucura”.// Perdeu-se a si próprio sem salvar o mundo; enganou-se e enganou o mundo como jamais alguém o enganou . Mas, então, que quer dizer: //“Entre os filhos dos homens nunca houve um maior”?// O que quer dizer na boca de Pilatos: //“Ecce homo”,// Renan dirá //“eis o Homem”// e lavará as mãos; dirá //“pedra angular da humanidade”// e a retirará tão devagarinho que ninguém dará por isso; prosternar-se-á diante da Verdade, porém sempre com essa pedra escondida no seio: //“Que é a verdade?”// A //Vida de Jesus// de Renan é o Evangelho segundo Pilatos. === **XII** === Talvez Bruno Bauer seja mais inocente, quando, trêmulo de furor e espanto, clama como o possesso aos pés do Senhor: //“Vampiro, vampiro! Sugaste todo o nosso sangue!”// Talvez Strauss seja mais honesto, quando se atira como um urso contra o chuço do caçador: Que é a religião? — //Idiotisches Bewusstsein.// Que é a ressurreição? — //Ein welthistorischer Humbug// . E, senão o próprio Nietzsche, pelo menos sua pobre alma no inferno terrestre da demência, compreendeu o que Renan não compreendeu: a crítica, o julgamento do Evangelho pode muito bem tornar-se o Julgamento Final dos juízes: //quod sum miser tunc dicturus.// Talvez sua pobre alma tivesse compreendido em que ombro tocava — que a sombra do desgraçado me perdoe! — com a desenvoltura dum lacaio, quando escreveu: //“Jesus morreu muito cedo; se tivesse vivido até o meu tempo, teria renunciado ele mesmo à sua doutrina”. — “Era um decadente muito curioso com um encanto sedutor feito de grandeza, doença e puerilidade”// . === **XIII** === //“Vós nos ofereceis como Deus um personagem que acabou por uma morte miserável uma vida infame”.// Essas horríveis palavras são relatadas pelo grande doutor da Igreja, Orígenes, porque sem dúvida sabia que os crentes não veriam nelas nem mesmo uma blasfêmia, mas simples absurdo, embora partissem dum homem inteligente e, como dizemos hoje, culto, o neoplatônico Celso . Absurdo que parece não poder ser ultrapassado. Entretanto, o foi: Celso não duvidava da existência de Jesus e nós duvidamos. === **XIV** === Essa tolice ou essa loucura científica que os séculos antigos não conheceram, a mitomania (Jesus é um mito), começou no século XVIII, continuou no XIX e acaba no XX. Carlos Dupuis (1742-1809), membro da Convenção, na sua //Origem de todos os cultos ou Religião universal//, obra datada do ano III da República, sustenta que Jesus, cópia de Mitra, Deus do Sol, será em breve para nós o que são Hércules, Osíris e Baco . Na mesma época, Volney, nas //Ruínas ou meditações sobre as revoluções dos impérios//, assegura que a vida evangélica do Cristo não passa dum mito do curso do sol pelo zodíaco . No começo do último século, Strauss, que certos teólogos protestantes ainda consideram genial, publicou em 1836 sua //Vida de Jesus.// Sem o saber e talvez mesmo sem querer, abria com sua //“mitologia evangélica”// o caminho da //“mitomania”.// Strauss semeou, Bruno Bauer colheu. A crítica do século XX deu a mão à //“mística”// anticristã do século XVIII. Bauer já está convencido de que Jesus, como personagem histórico, nunca existiu, que sua imagem evangélica é criação livre e poética do //“primeiro evangelista”, Urevangelist,// imagem mítica do //“rei da democracia, do Anti-César”// necessária às camadas inferiores e escravizadas do povo. E — irrisório fim de tão pavoroso começo, camundongo gerado pela montanha — substitui-se Jesus por uma personalidade fantástica tirada de Sêneca e de Flávio Josefo . === **XV** === Devia-se esperar, graças à crítica científica do Evangelho, que, no fim do século XIX e princípio do século XX, destruiu até os fundamentos a //“mitologia”// de Strauss, que Bauer ficasse tão esquecido quanto Volney e Dupuis . Mas essa esperança não se realizou. As raízes do século XVIII rebrotaram no século XX . Que é a //“mitomania”?// Uma forma pseudocientífica do ódio a Cristo e ao cristianismo, uma espécie de contração das entranhas humanas para rejeitar esse remédio ou esse veneno. //“O mundo me odeia porque eu testemunho diante dele que suas obras são más”. (Jo., 7, 7.).// Eis por que, na véspera da pior das obras do mundo — a guerra — o mundo se pôs a odiá-lo mais do que nunca. E se compreende muito bem que por toda a parte onde se queria acabar com o cristianismo, a //“descoberta científica”// de que Jesus é um mito tenha sido acolhida com entusiasmo, como se fosse isto o que se esperava . === **XVI** === Para um conhecedor das origens do cristianismo, tão profundo como J. Weiss, os livros de Drews e de Robertson não passam de //“imaginação desregrada”, “caricatura da história”.// Poder-se-ia dizer o mesmo de todos os //“mitólogos”// modernos . O saber é lento e difícil, a ignorância é pronta e fácil. Segundo a expressão de Carlyle, ela enche o universo com //“o barulho ensurdecedor da mentira”,// alastra pelo mundo como uma nódoa de azeite sobre papel ordinário e é também inapagável. No decurso dos últimos vinte e cinco anos, a crítica alemã realizou um trabalho de Hércules, limpando as estrebarias de Augias da ignorância religiosa e histórica; mas, se se persistir na barbárie de após a guerra, tamanhos montões de esterco se amontoarão nas estrebarias que o próprio Hércules será sufocado pelo seu fétido. === **XVII** === Jesus é o deus pré-cristão de Canaã-Efraim, o deus do sol, Jeschua (Drews); é também Josué ou o patriarca José, ou Osíris, ou Átis, ou Jasão; é ainda o deus hindu Agni — //Agnus Dei,// ou o gigante babilônio Gilgamés, ou simplesmente um //“fantasma crucificado”// . O caleidoscópio de todas as mitologias ou, melhor, de todas as tolices policrômicas, gira, como em delírio, no fundo negro da ignorância . Para todos os que têm olhos, ouvidos, paladar, olfato e tato histórico, é infinitamente mais natural acreditar na existência real dum fenômeno tão único como Jesus do que supo-lo inventado, criado pelos homens do nada, do que pensar que impostores ignotos ou imbecis enganados tenham transformado o mundo espiritual imaginando algo tão real, embora incomensuravelmente mais novo, do que o sistema de Copérnico . === **XVIII** === Quem, portanto, salvo o próprio Jesus, poderia //“inventar”,// criar Jesus? A comunidade da //“gente do povo sem instrução alguma”? (Atos, 4,13).// É pouco provável que a mais viva das figuras humanas tenha podido ser composta com a ajuda de vários elementos mitológicos na sábia retorta dos filósofos do tempo. Para que a pessoa histórica de Jesus pudesse ser criação dum poeta ou duma comunidade de poetas, seria necessário que esse poeta ou essa comunidade se tivessem representado nele; então, Jesus seria ao mesmo tempo o poeta e o poema, o criador e a criação. Ou, noutros termos, se Jesus não fosse tão grande ou antes maior do que o pintam os Evangelistas, sua própria grandeza seria o mais inexplicável milagre da história. Assim, seu mistério só faria tornar-se mais remoto e mais indecifrável . Isto equivale a dizer que, por menos que se aprofunde, o problema da existência de Jesus implica outra questão: Jesus poderia não ter existido, quando uma imagem como a sua nos é oferecida num livro como o Evangelho? === **XIX** === //“Existiu”:// eis o que nenhuma das testemunhas não cristãs suas contemporâneas nunca afirmou com a clareza que exige a crítica científica. Este é um dos principais argumentos dos mitólogos. Mas será tão comprobatório como pensam? Para verificar isso é preciso antes responder às três seguintes perguntas: De entrada, quando as testemunhas não cristãs começam a falar de Jesus? Antes que uma religião se torne um acontecimento histórico visível, o que só aconteceu com o cristianismo no primeiro quartel do século II, os historiadores não podem falar do fundador dessa religião. Ora, como é precisamente a essa época que remontam os primeiros testemunhos dos historiadores romanos sobre Jesus, o argumento negativo, tirado do fato de que só tardiamente se falou dele, cai por si. Em seguida, falou-se muito ou pouco dele? Muito pouco. Os homens esclarecidos iriam prodigalizar frases por causa dum bárbaro obscuro, dum Judeu rebelde, crucificado cem anos antes numa província distante, perdido na multidão de seus semelhantes, propagador de //“absurda e extravagante superstição”?// Porque foi exatamente com essas palavras que os historiadores romanos caracterizaram Jesus. Afinal, como se falará dele? Como as pessoas que passam bem falam duma epidemia desconhecida, pior do que a lepra e a peste, que as ameaça. E foi mesmo assim que se falou de Jesus. === **XX** === O primeiro testemunho não cristão é a carta que Plínio o Moço, proconsul da Bitínia, dirigiu no ano 112 ao imperador Trajano. Plínio pergunta-lhe o que deve fazer com os cristãos. Em toda a região, não só nas grandes cidades como nas mais remotas aldeias, são muito numerosos, de ambos os sexos, de todas as idades e condições; e esse contágio cada vez mais se espalha; os templos estão desertos e já se não sacrifica mais aos deuses. Ele, Plínio, julga os culpados e os interroga; uns, repudiando a //“superstição”,// fazem libações, queimam incenso ante a estátua de César e //“amaldiçoam o Cristo” — male dicerent Christo;// outros se obstinam. Porém tudo o que ele consegue saber se reduz a isto: //“em dia marcado, antes do pôr do sol, eles se reúnem e cantam um hino ao Cristo como a um Deus; juram não mentir, não roubar e não fornicar, etc... Reúnem-se também para repastos em comum, aliás inteiramente inocentes”// (trata-se sem dúvida da Eucaristia). O proconsul fez submeter à tortura duas servas (diaconisas), mas elas nada revelaram, //“além duma superstição absurda e extravagante” — superstitionem pravam et immodicam// . Esse testemunho já é importante, porque confirma a exatidão e a autenticidade históricas de tudo o que as Epístolas e os Atos dos Apóstolos nos contam sobre as primeiras comunidades cristãs. Porém mais importantes ainda são as palavras: //“cantam um hino ao Cristo como a um deus”.// Se Plínio tivesse sabido pelos cristãos que o Cristo era para eles simplesmente um deus, teria escrito: //“cantam um hino a seu deus, o Cristo”.// Portanto, se escreveu: //“ao Cristo como a um deus” — Christo quasi Deo,// foi evidentemente porque sabia que, para os cristãos, o Cristo era, não somente um deus, mas também um homem. Por conseguinte, desde os anos 70 (em 112, certos cristãos da Bitínia eram cristãos havia mais de vinte anos), quarenta anos, pois, após a morte de Jesus, aqueles que nele criam sabiam e se lembravam. E a testemunha não cristã admitia que o homem Jesus tinha existido . === **XXI** === O segundo testemunho, o de Tácito, é quase contemporâneo do de Plínio (mais ou menos em 115). Depois de haver assinalado os rumores que imputavam a Nero o incêndio de Roma, em 64, Tácito continua: //“Para pôr um paradeiro a esses rumores, ele procurou os culpados e infligiu as mais cruéis torturas a infelizes repudiados pelas suas infamias que eram vulgarmente chamados cristãos. O Cristo, do qual lhes vinha o nome, fora condenado à morte no tempo de Tibério pelo procurador Pôncio Pilatos. Reprimida naquele momento a execrável superstição — exitialis superstitio, não tardou a de novo se alastrar não só na Judéia, onde nascera, como até mesmo em Roma, para onde afluem e onde engrossam todos os desregramentos e todos os crimes. Começou-se por prender todos os que se confessavam cristãos e, depois, em consequência de seus depoimentos, uma imensa multidão acusada tanto de haver incendiado Roma como de odiar o gênero humano — odium humani generis”.// === **XXII** === Tácito é um dos historiadores mais escrupulosos. Quando se limita a registrar rumores, não deixa de assinalar isso. Entretanto, não declara que o suplício de Jesus fosse um vago rumor, porém o dá como uma informação, tal como outras que refere, proveniente de testemunhas incontestáveis no seu modo de ver, os historiadores que o antecederam ou as fontes oficiais. É igualmente fora de dúvida que nenhuma mão cristã alterou esse testemunho, senão não teria deixado subsistir as últimas palavras, que são talvez as mais fortes, mais serenas e mais cruéis jamais pronunciadas contra o cristianismo . Palavras breves e pesadas, sonoras como bolas de cobre caindo numa urna de ferro. Tácito fala tranquilamente, mas em cada uma de suas frases espuma o ódio, idêntico àquela resina com que se untavam as //“tochas vivas de Nero”,// as quais serão seguidas de muitas outras! Verdadeiro romano, encarnação perfeita do Direito sobre a terra, julgando os cristãos, Tácito é justo a seu modo. Logo após as terríveis palavras que pronuncia a seu respeito, acrescenta: //“Assim, embora culpados e dignos do último suplício, todos se compadeceram dessas vítimas que pareciam imoladas mais ao passatempo dum bárbaro do que ao bem público”.// Será porque os não conhece que esse homem tão justo julga dessa forma os cristãos? Talvez que, pelo contrário, os conheça tão bem como nós. //“Filhos, amai-vos uns aos outros”.// O misterioso ancião de Éfeso, o presbítero João, que morreu, murmurando essas palavras, é quase contemporâneo de Tácito. Este teria podido conhecer também os que haviam visto os mártires do ano 64 e, entre eles, Pedro e Paulo; teria podido ver brilhar nos seus olhos o reflexo do Amor Celeste que baixara sobre a terra. Ora, eis o seu julgamento: //“Odeiam o gênero humano”.// Que é isso senão o choque até então ignorado de dois mundos, infinitamente mais opostos do que o cristianismo e o paganismo, o mundo e o outro mundo? Tácito não sabe ainda, mas pressente já que Roma — o mundo, — e o Cristo não poderão coexistir. Ou o mundo ou ele. E Tácito tem razão, mais razão talvez do que todos os historiadores, mesmo cristãos, desde dois mil anos. O que Tácito diz do Cristo nos mostra admiravelmente que seus //Anais// são, como os da própria Roma, mais duradouros do que o bronze, — //aere perennius.// E eis que a resposta à pergunta: Jesus existiu? ficou gravada nesse bronze. === **XXIII** === A terceira testemunha, um pouco posterior a Tácito, mais ou menos em 120, é Suetônio. //“Nero causou muito mal, mas causou muito bem. Os cristãos, homens duma superstição nova e maléfica, — superstitionis novae et maleficae, foram condenados à morte”.// Isto se encontra na //Vida de Nero.// Na //Vida de Cláudio,// Suetônio diz: //“Ele expulsou de Roma os Judeus, que se revoltavam continuamente, excitados por um tal Chrestus”// . O nome do Cristo foi deformado em //Chrestus.// Os //“mitólogos”// agarraram-se a essa palha, pretendendo que se tratava dum desconhecido chamado //Chrestus,// talvez um escravo fugido. (//Chrestus — “Útil”// era, sem dúvida, um nome muito comum entre os escravos) . Mas nós sabemos perfeitamente que, no reinado de Cláudio, não houve nenhum rebelde judeu com esse nome. Sabemos igualmente por São Justino, Atenágoras e Tertuliano que, então, se chamavam aos cristãos — //chrestiani.// O //Chrestus// de Suetônio não pôde ser outro senão o Cristo . === **XXIV** === O quarto testemunho, o mais antigo de todos, remontando a 93-94, se encontra nas //Antiguidades Judaicas// de Flávio Josefo. Quando se sabe quem era Josefo — renegado da fé judaica, transfuga que passara para os romanos na guerra de 70, analista oficial dos Flávios, louvaminheiro dos seus amos tanto quanto os historiadores latinos, vê-se logo que, embora com outros motivos, quer sobre o cristianismo em geral e sobre o Cristo — Messias, Rei de Israel em particular, afastar dele e de seu povo qualquer suspeita de rebelião, apesar de ter sido ele mesmo revoltoso . Ser-lhe-á, porém difícil fazer absoluto silêncio sobre o cristianismo, pois os cristãos eram demasiadamente conhecidos em Roma depois da guerra da Judéia e das perseguições de Domiciano. A julgar pelos manuscritos que até nós chegaram, Josefo fala de Jesus em dois lugares. A primeira passagem é uma interpolação cristã que, por ter sido feita muito cedo (talvez no século II), é por isso mais evidente e muito grosseira. Mas, como sua posição no seguimento do relato é muito natural , como a segunda menção feita mais longe de Jesus (//“o irmão de Jesus denominado o Cristo”//) supõe que já tivesse falado dele, como, afinal Orígenes a ela alude é muito verossímil que havia ali um trecho real mais tarde deformado pela interpolação cristã. Se se afastar tudo quanto é impossível atribuir a Josefo e se se modificarem ligeiramente alguns pormenores, para os tornar mais aceitáveis, eis o que restará: //“Ora, nesse tempo, apareceu Jesus denominado o Cristo, hábil taumaturgo, que pregava aos homens ávidos de novidades, seduzindo a muitos judeus e helenos. E, mesmo depois que Pôncio Pilatos, pela denúncia de alguns dos nossos principais, o puniu de morte na cruz, os que primeiro o haviam amado (ou que primeiro ele havia enganado) não cessaram de amá-lo até o fim. Existe ainda em nossos dias uma comunidade que dele recebeu o nome de cristãos”// . A autenticidade da primeira passagem é admitida pela maioria dos críticos, mesmo os da esquerda. Após haver mencionado a usurpação do grão sacerdote Anás o Moço (parente do que julgou Jesus), que ocorreu depois da partida do procurador Festus e antes da chegada de Albinus (no começo de 64), Josefo continua: //“Anás... julgando assada a ocasião... reuniu o sinédrio para julgar o irmão de Jesus denominado o Cristo... cujo nome era Tiago e, tendo-o acusado com outros de haver transgredido a lei de Moisés, o fez lapidar”// . Assim, o testemunho judaico confirma o testemunho romano: Jesus existiu. === **XXV** === O quinto testemunho se acha no Talmud. Suas partes mais antigas — as //“narrações”, agada,// os //“ensinamentos”, halaka// e as //“parábolas”, meschalim,// dos grandes rabinos, remontam incontestavelmente ao meio do século II e provavelmente ao início do século I, portanto aos primeiros dias de Jesus: o rabino Hilel e o rabino Schamai são quase contemporâneos do Senhor . Desde a primeira metade do século II, os doutores do Talmud transformaram o //Evangélion// em //Aven-gilion,// a //“Má Nova”,// ou em //Avongilaon,// o //“Poder do Pecado, da Iniquidade”// . O versículo 12.° da mais santa das orações de Israel, //Schemone Esre,// em que os apóstatas, os //minim,// e os //“Nazarenos”// (ambos nomes dados aos cristãos) são lançados à maldição — //“que pereçam subitamente e que seu nome seja mesmo riscado do Livro da Vida!”// — data, como temos certeza, o mais tardar, do fim do século I. Desde esse momento, pois, Israel compreendera que seus eternos destinos se decidiriam por //“Aquele que pende da Cruz”,// pelo Cristo . === **XXVI** === O Talmud não põe em dúvida que Jesus tenha feito milagres e curas. Foi, para isso, que, segundo uma lenda, ele roubara ao templo de Jerusalém o //“Nome Inefável”// (Iahvé) e, segundo outra, mais antiga, datando de mais ou menos o ano 100, //“trouxera do Egito a magia nas incisões de seu corpo”// — as tatuagens . Bem ao fim do século I, o rabino //“apóstata”// Jacob de Kefara continuará a fazer milagres — com o nome de Jesus . No dia do julgamento (véspera do sábado de Páscoa) foi justiçado Jesus o //Hannozeri// (Jesus o Nazareno) e, antes, um arauto caminhou diante dele durante quarenta dias, anunciando: //“Eis aqui Jesus o Nazareno que vai ser lapidado por ter praticado a magia, iludido e seduzido Israel. Aquele que saiba como justificá-lo venha dar seu testemunho”.// Mas não houve quem o justificasse e foi justiçado (crucificado). É o que está escrito na parte mais antiga do Talmud de Babilônia . Resulta de tudo isso que as testemunhas judaicas sabem melhor ainda do que as romanas que o Cristo existiu; sabem também o que ignoram as outras, como viveu e por que morreu. Em verdade, são simples pontos de referência isolados no tempo e no espaço, mas desde que se unam por uma linha mostrarão a figura geométrica, facilmente reconhecível do corpo histórico do Cristo que vemos no Evangelho. === **XXVII** === E eis o que há talvez de mais mortal para os //“mitólogos”.// Todas essas testemunhas dedicam a Jesus o mais violento ódio que os homens podem ter a um homem. Entretanto, ao espírito de nenhuma delas acode a ideia de dizer: //“Jesus não existiu”,// o que, todavia, bastaria para aniquilar o Inimigo. === **XXVIII** === São Justino Mártir, um heleno que se converteu ao cristianismo em 130, nasceu na Palestina, na antiga cidade de Sichem, Flavia Neapolis, segundo toda verossimilhança, no fim do século I. Poderia ele ignorar o que diziam de Jesus os judeus da Palestina? //“Jesus o galileu é o fundador duma heresia ímpia e iníqua. Crucificamo-lo e seus discípulos roubaram seu corpo, afim de enganar o povo, dizendo que ressuscitara e subira ao céu”,// afirma o interlocutor de Justino, Trifão o Judeu. Não há razão alguma para que essa testemunha não exprima o que era para os judeus palestinos, no fim do século I, a verdade histórica. Filhos e netos dos que haviam gritado: //Crucificai-o!// — sabiam disso e disso se gabavam, que seus pais e avós realmente o haviam feito crucificar. E de novo nenhum deles se lembra de pensar que Jesus não existiu . Entretanto, sabiam certamente melhor do que nós se existira ou não, não somente por estarem mais perto dele dois mil anos, como porque seus olhos viam de outra maneira do que vêem os nossos: viam menos as pequenas coisas e mais as grandes, pois sobre eles não pesava, como sobre os nossos, a //“fascinação da futilidade”, fascinatio nugacitatis// . Eis por que não podia acontecer aos piores inimigos do Cristo o que acontece a nós, cristãos: na casa da humanidade, na história universal, o Cristo desapareceu como agulha em palheiro. === **XXIX** === A primeira testemunha cristã anterior aos Evangelistas é Paulo. A autenticidade de seu testemunho está consideravelmente reforçada por se tratar dum antigo inimigo de Jesus, Saulo, o perseguidor dos cristãos. A força do testemunho de Paulo é tão grande que, antes de dizer //“Jesus não existiu”,// ter-se-ia de dizer //“Paulo não existiu”// e, para isso, rejeitar não somente todas as suas Epístolas como todo o Novo Testamento, todas as obras dos Apóstolos (do ano 90 ao ano 150), as quais são os mais seguros testemunhos de Paulo, e ainda todos os apologetas do século II; em outros termos, seria preciso destruir toda a literatura histórica das origens do cristianismo . === **XXX** === Que significam, pois, as palavras de Paulo: //“E, se tivéssemos conhecido o próprio Cristo, segundo a carne, não o conheceríamos dessa maneira?” (II Cor. 5, 16.)// Não poderemos decifrar esse enigma e não decifraremos senão à medida que formos conhecendo o Cristo Desconhecido. Mas basta abordá-lo para ver que essas palavras não podem significar, como o pretendem os críticos //“livres”,// que Paulo somente conhece o Cristo celeste e não conhece nem quer conhecer o Cristo terrestre. //“Ó Gálatas insensatos! quem vos enfeitiçou de tal geito que vos fez renegar a verdade, vós a cujos olhos foi tão vivamente pintado Jesus crucificado entre vós?” (Gal., 3, 1).// Pintado, //proegraphin,// significa //“pintado na tela com o pincel dum artista”.// Como Paulo poderia pintá-lo, se o não tivesse visto nem conhecido, //“segundo a carne”// ? //“Não o vi, Jesus Nosso Senhor?” (I Cor., 9, 1.).// Será simplesmente à visão do caminho de Damasco que se referem essas palavras? — //“Quem és tu?”,// pergunta Paulo ao Cristo na sua visão, porque não sabe ainda que aquele e o segundo a carne fazem um só; e somente quando ambos lhe respondem: //“Sou Jesus”,// o reconhece pela voz e pelo semblante (Atos, 9, 5.). É sobre a identidade do que conheceu na realidade e do que viu na visão que repousa toda a fé de Paulo. A conversão de Paulo ao cristianismo data provavelmente do outono de 31, isto é, ano e meio após a morte de Jesus . //“Ao fim de três anos, subi a Jerusalém para conhecer Cefas e fiquei com ele cerca de quinze dias” (Gal., I, 18).// Durante esses quinze dias, não se teria informado com Pedro sobre a vida de Jesus, procurando conhecê-lo //“segundo a carne”?// Pelas suas Epístolas, vemos até que ponto o conheceu. //“Poder-se-ia fazer uma pequena Vida de Jesus só com as Epístolas”.// Renan já compreendera isso . Paulo sabe que Jesus //“nasceu duma mulher”,// que era //“da raça de Davi”,// que foi //“submetido à lei (à circuncisão)”;// sabe que tem um irmão, Tiago; que o Senhor pregou em companhia de doze discípulos; que fundou uma comunidade distinta do judaísmo, que se reconheceu como Messias, Filho Único de Deus, mas que, na sua vida terrena, //“se fez pobre”, “se aniquilou”,// tomando a //“forma dum servo”;// que marchou voluntariamente para a morte na cruz, que instituiu a Ceia na noite em que foi traído por um dos discípulos e que, vítima dos Anciãos de Judá, foi crucificado e ressuscitou . A força dos testemunhos de Paulo é tal que, à falta de outros, por eles saberíamos com maior certeza do que temos da existência de outros personagens históricos, não só que o Cristo existiu, mas ainda como viveu, o que disse, o que fez e por que morreu. === **XXXII** === Plínio, Tácito, Suetônio, Josefo, o Talmud e Paulo — seis testemunhos independentes uns dos outros, que, vindo dos lados mais opostos, dizem a mesma coisa com vozes diferentes. É verdade que, embora nos afirmem que um homem existiu, nós podemos duvidar disso; porém como não crer, quando vemos e ouvimos esse homem mesmo? Ora, é bem assim que o vemos e ouvimos no Evangelho. //“O que nós ouvimos, o que vimos com os próprios olhos... e que nossas mãos tocaram... nós vos anunciamos”,// diz, senão o próprio São João, //“o discípulo amado de Jesus” (Jo., 19, 26.),// pelo menos aquele que ouviu essas palavras a João (I Jo., 1, 3.) — //“Não foi seguindo fábulas (mitos) habilmente arranjadas que vos fizemos conhecer o poder... de Nosso Senhor Jesus Cristo; foi por ter visto sua majestade com os nossos próprios olhos”,// declara Pedro, como se já pressentisse nossa //“mitologia” (II Pe., I, 16.).// Se, para conhecer, é preciso amar, e, se jamais pessoa foi mais amada do que Jesus pelos seus discípulos, então nunca ninguém foi melhor conhecido do que ele por eles e nunca ninguém teve mais do que eles o direito de dizer: //“nós o ouvimos com os nossos próprios ouvidos e nós o vimos com os nossos próprios olhos”.// === **XXXIII** === //“Somos forçados a reconhecer aos testemunhos cristãos das primeiras gerações que se seguiram aos anos de 30 sobre os principais acontecimentos da vida de Jesus a maior autenticidade que se pode achar na história”,// afirma um crítico muito livre e, além disso, sem a menor eiva de apologética eclesiástica . E, segundo outro, //“nossas informações sobre Sócrates são menos seguras do que sobre Jesus, porque Sócrates foi pintado por escritores e Jesus por homens de poucas letras, quase ignorantes”// . Pode-se dizer que o Evangelho é o livro menos inventado, mais espontâneo, mais inesperado, mais involuntário e, portanto, o mais verídico de todos os livros passados, presentes e provavelmente futuros. === **XXXIV** === Que significam, então, as //“contradições”// que se encontram nos Evangelhos? Jesus é ou não filho de José? Nasceu em Belém ou em Nazaré? pregou somente na Galiléia ou também em Jerusalém? Instituiu ou não a Ceia? Foi crucificado a 14 ou a 15 de Nisan, etc.? Uma criança inteligente dá fé dessas contradições e não sabe como resolvê-las. //“A harmonia secreta vale mais do que a harmonia manifesta” — “Os contrários são concordantes”,// ensina Heráclito, como também ensinam os Evangelhos. As contradições aparentes, as antinomias reais de que é feita a música da //“harmonia secreta”// existem por toda a parte no mundo e mais ainda na religião. Além disso, sabemos bem por nossa experiência quotidiana que, quando duas ou mais testemunhas de boa fé relatam o mesmo fato, não estão de acordo senão quanto ao essencial, contradizendo-se no resto, porque cada qual vê a seu modo. Essas //“contradições”// são precisamente o melhor índice da veracidade: as falsas testemunhas se concertariam para se não contradizerem. Três das testemunhas — Marcos, Mateus e Lucas — são diferentes, //“contraditórias”// e, por conseguinte, independentes uma da outra; entretanto, estão de acordo sobre o essencial; enfim, a quarta, João, embora contradiga as outras três, está igualmente de acordo com elas sobre o mesmo essencial. Assim, com cada novo Evangelho, a autenticidade do testemunho cresce em progressão geométrica. //“Se uma lógica como a de Marcion tivesse prevalecido, não teríamos mais do que um Evangelho, e a melhor marca da sinceridade da consciência cristã está em não suprimirem as necessidades da apologética a contradição dos textos, reduzindo-os a um só”.// . //“O grande número de divergências na transmissão das palavras de Jesus e nos relatos de sua vida prova que os testemunhos evangélicos são livremente tirados de fontes que brotam independentes umas das outras”.// Se a primeira comunidade houvesse inventado o //“mito do deus Jesus”,// ela certamente se teria preocupado com a unidade da invenção e teria apagado as contradições . É precisamente onde a imagem de Jesus contradiz aparentemente a fé da comunidade religiosa que //“nós podemos tocar sob ela o granito inabalável da tradição”// . É também aí que se manifesta melhor toda a impossibilidade histórica da //“mitologia”.// Se o essencial para os cristãos primitivos era a identidade do Homem-Jesus com o Messias-Cristo do Velho Testamento, com que fim teriam introduzido no //“mito”// de Jesus tantos traços históricos de nenhum modo preditos naquele Testamento ou em flagrante contradição com suas predições, como se quisessem construir o //“mito”// com uma das mãos para destruí-lo com a outra ? === **XXXV** === Basta abrir o Evangelho para sentir o odor daquela terra em que, em verdade, viveu Jesus e dos próprios dias em que nela viveu. //“Aqui, na Palestina, tudo é histórico”,// é a conclusão a que chega um dos melhores conhecedores desse país, depois de trinta anos de peregrinação pelos rastos do Senhor. Não duvidará da existência de Jesus o que pela Terra Santa caminhar sobre a marca dos pés de Jesus. As reiteradas e minuciosas indicações que se encontram nos quatro Evangelhos em pontos bem determinados do tempo e do espaço, isto é, da realidade, ou, em outros termos, as indicações que mostram que os acontecimentos evangélicos não são //“mito”,// mas história, são demasiado significativas. Não, não foi um //“deus Jesus”// irreal que a primitiva Igreja foi buscar à Palestina, porém, ao contrário, ela se apresentou à face do universo com o testemunho claro e irrecusável de que o Homem-Jesus foi um personagem histórico . === **XXXVI** === Então, como é que, depois de tudo isso, os homens podem duvidar da existência do Cristo? A //“mitologia”// vem somente da malevolência ligada à tolice e à ignorância? Infelizmente não vem só disso. Há uma causa mais profunda e mais terrível oculta no próprio cristianismo: a eterna fraqueza do espírito e da vontade humana que a primitiva Igreja denomina //“docetismo”// da palavra grega //dokein, “parecer”.// Os docetas são aqueles que não querem reconhecer o Cristo //“segundo a carne”// e para quem ele somente possúi uma carne //“aparente”.// //“O corpo visível de Jesus não passa duma sombra, dum fantasma, umbra, phantasma, corpulência putativa”,// ensina Marcion, o primeiro doceta, no fim do século II . //“Jesus não nasceu, mas desceu diretamente do céu em Cafarnaum, cidade da Galiléia, no 15.° ano do reinado de Tibério César”.// Assim começa o Evangelho de Lucas, //“corrigido”// por Marcion . Jesus não morreu: //“Simão o Cireneu foi crucificado em seu lugar”. — “Não sofreu senão por sua sombra, passum fuisse quasi per umbram”,// ensina o gnóstico Marcius. E, por sua vez, Atanásio o Grande, um dos pilares da ortodoxia, dirá mais tarde: //“foi somente para enganar e vencer Satan que o Senhor exclamou sobre a cruz: Lama sabactani!”// E outra coluna da Igreja, São João Crisóstomo, dirá que o Senhor, procurando frutos numa figueira estéril, somente //“simulava fome”// . Segundo Clemente de Alexandria, //“Jesus não tinha necessidade de alimento”:// um fantasma não come nem bebe . O grito de Jesus sobre a cruz: //“tenho sede”// significa: //“tenho sede de salvar a humanidade”,// dirá Ludolfo de Saxe, que escreveu no século XIV uma das primeiras //Vidas de Jesus. “Jesus não passa dum fantasma crucificado”,// afirmarão também os docetas de nosso tempo, os //“mitólogos”// . Desse modo, de Marcion aos nossos dias, passando por João Crisóstomo e Atanásio o Grande, todo o cristianismo está impregnado de docetismo. === **XXXVII** === Eis por que os homens mais incrédulos de nosso tempo acreditaram facilmente no mais absurdo dos mitos — o mito de Jesus. Afinal de contas, que é o docetismo? Uma tentativa para roubar ao Salvador o mundo salvo por ele, para crucificar segunda vez o Cristo, de modo ainda pior do que o do Gólgota: lá só seu corpo foi morto, aqui se matam alma e corpo; lá somente Jesus foi morto, aqui se matam Jesus e o Cristo. //“Enfim (sobre a cruz), o Cristo se desprendeu de Jesus”,// ensinam os docetas e nela só ficou sua aparência humana, a //“forma”,// o //“esquema”// (//homoiôma, schêma,// são as palavras terríveis de Paulo, Rom., 8, 3; Fil., 2, 7), a figura geométrica do homem, o casulo transparente, esvaziado pela borboleta que voou. Se essa tentativa tivesse triunfado, todo o cristianismo e a própria Igreja, Corpo do Cristo, teriam sido pulverizados como um pano roído pelas traças, Eis a razão por que o último e o maior doceta será o //“Pseudo Cristo”,// o Anticristo. Nosso docetismo é o caminho que leva em linha reta para ele. === **XXXVIII** === Tudo isso, evidentemente, não passa de mesquinha empresa, porque, no fundo, o docetismo — a aparência substituída à realidade, o engodo, o nevoeiro, o escamotear — é simples tentativa para fazer com que o que foi não tenha sido. Apesar de tudo, os homens e o Doceta, o eterno Escamoteador, mais ainda do que os homens, sabem que o Cristo existiu. Com o sopro de sua boca, o Senhor matará o Inimigo com estas simples palavras: //“Eu fui”.// === **XXXIX** === Perguntar hoje: //“o Cristo existiu?”// é o mesmo que perguntar: //“o cristianismo existirá?”// Por isso é que se deve ler o Evangelho como convém, afim de nele ver, não só o Cristo celeste, mas também o Cristo terreno, conhecendo-o, afinal, //“segundo a carne”,// o que equivale a salvar o cristianismo, o mundo. === **XL** === Ele erra no mundo como uma sombra, enquanto que seu corpo está aprisionado pela Igreja nas vestes douradas das imagens. É preciso achar seu corpo no mundo e livrar o Prisioneiro da Igreja. === **XLI** === A Igreja — as portas do Inferno não prevalecerão sobre ela — será talvez salva da terrível enfermidade do docetismo, mas isso não basta: é preciso salvar o mundo. A Igreja conhece o Cristo //“segundo a carne”,// porém o mundo não o conhece mais ou não o quer conhecer. O eterno caminho da Igreja vai do Jesus terreno ao Cristo Celestial; o mundo, afim de ser salvo, deve seguir caminho inverso, não contra a Igreja, mas para a Igreja, indo do Cristo a Jesus. O caminho da Igreja leva ao Cristo conhecido; o do mundo leva ao Cristo desconhecido.