====== Boosco: III - O glorioso guiador ====== //Edição do texto de 1515 por Augusto Magne, com introdução, anotações e glossário.// 14. Tanto que esto houve dito, tomei já quanto esforço em meu coração e comecei a dizer ao esprandecente mancebo: — Senhor, rogo-te, por Deus, que me digas quem és, que tam grande cuidado hás do meu bem. E ele me respondeu, dizendo: — Amigo, não me conhoces? E eu lhe disse: — Certamente não, ca nunca te vi, nem outra criatura semelhável a ti. 15. E ele me respondeu: — Verdade dizes ca nunca me viste; mas, se bem acordado fosses, bem te devia nembrar, que muito amiúde me sentiste, ca, dês o dia em que tu naceste, sempre fui teu companheiro e me trabalhei de te guardar e pera te levantar e espertar do sono do pecado e, de noite, pera aproveitares em bem obrar; e trabalhei de afastar de ti os maaus espritos, e te ensinar e certificar em nas coisas duvidosas, e seer teu guiador, que não errasses, e acorrer-te toste-mente, que não caísses. 16. E trabalhei de te ajudar contra os enemigos e de luitar contigo, pera te fazer usado em bem, e muitas vezes te trouve à memória os teus pecados, por haveres deles vergonça, e amostrei a ti a vontade de Deus, que não errasses, e trabalhei de te tirar os embargos pera servires mais livremente ao Senhor; e amiúde te visitei, por não pecares (3, a) e amansei as tuas tentações, que não fosses vencido. 17. E orei ao Senhor Deus, merecendo a mi e a ti; ca sabe por certo que eu som o anjo de Deus, que som dado a ti pera te fazer estas coisas todas, que te disse, e eu fiz quanto em mi foi; ca por mi não faleceu, se te bem quiseres lembrar; mas, como revel e malicioso e fraco e mesquinho, não te quiseste ajudar do meu proveito e consentiste, pola maior parte, ao anjo maau, que é contrairo a mi e a ti e ao Senhor Deus, que deu-me a ti por guardador; e fezeste-me haver muita tristeza em os teus caimentos; e como quer que com razom te devia desemparar de todo, pero, porque eu da tua consolação som consolado e do teu padecimento hei compaixom, ainda quero usar contigo de meu ofício e quero te guiar per tal caminho, per que possas achar consolação e remédio às tuas mizquindades e tribulações, se não quiseres seer revel como ataaqui foste. 18. Quando eu esto ouvi, fiquei todo espantado, que não sabia que fezesse nem que dissesse, e caí em terra, assi como morto. E ele me levantou da terra e disse-me: — Homem fraco e coitado, está sobre teus pees. E tanto esforço senti da sua palavra e de uu odor mui precioso que saía da sua boca, que estive levantado; e, dês i, lancei-me em terra e adorei-o. E ele me levantou outra vez da terra, e eu fiquei-me ante ele em giolhos, e disse-lhe: — Oo santo anjo do Senhor, que és meu guardador, pola piadade do Senhor, rogo-te que salves e defendas e governes a mi, que som dado em tua encomenda. E entom lhe disse mais: — Senhor, rogo-te que me digas porque trazes taaes vistiduras de fogo esprandecente, e porque trazes esta segur em tua maão e a vara de ouro e a grilanda e as às em os pees e a cinta. 19. E ele me respondeu nesta guisa: — A coroa das pedras preciosas, que eu e os outros anjos trazemos em as cabeças, demostra a mui grande riqueza que havemos de muitas e desvairadas virtudes, que som demostradas pelas pedras preciosas; e as vistiduras de fogo sinificam o ardor da caridade e da boa vontade; e som assi luzentes, porque todos somos cubertos de lume em os intendimentos. E a cinta de ouro é (3, b) porque todos os anjos somos em uu coração juntos e apertados em virtudes; e as às, que trazemos em os pees, som porque mui tostemente nos movemos pera adereçar as coisas da terra sem nosso abaixamento, e não há em nós coisa pesada nem terreal. E a vara que trago em a mão é porque nós, só Deus, regemos as coisas que som só o céu, e julgamos as coisas dereitas. E a segur que trago em a outra mão é porque nós havemos virtude e poder pera talhar e quebrantar os maaos.