====== Gerhard Wehr (CHJB) – Boehme, Theosophia (2) ====== CHJB:64-68 A imagem de referência que Böhme //utiliza// é a do mundo paradisíaco. Em sua mente, não //se trata// de uma pálida abstração, nem de um simples tema de catequese; //trata-se// de um mundo maravilhoso e multiforme, de um universo de alegria e deleites onde a presença de Deus //torna-se// perceptível aos sentidos a ponto de //se deixar// tocar, sentir e saborear. Por que, então, //folhear// os livros dos “escrivinhadores //contando// suas mentiras?” “Não //encontrarás// um único livro onde a sabedoria divina //te aparecerá// de forma mais íntima do que quando //fores// a um prado em flor; lá, //verás// a força maravilhosa de Deus, //sentirás// e //saborearás// dela, embora isto seja apenas um símbolo (//Gleichnis//); de fato, a força de Deus //se materializou// no terceiro princípio, e Deus //se revelou// no símbolo. No entanto, para aquele que busca, é um bom mestre. E //encontrarás// lá muitas coisas.” O que //encontrará// aquele que busca é a polaridade das coisas e a sua unidade; é a noção que, um século antes, Nicolau de Cusa //chamou// de //Coincidentia oppositorum//. Cem anos depois de Böhme, o teósofo e teólogo suábio Friedrich Christoph Oetinger, que //pratica// a alquimia em segredo e que foi //batizado// “o mago do Sul”, //retoma// esta noção teológica em sua dissertação, frequentemente citada, sobre “a //corporificação// (//Leibwerdung//) como fim dos caminhos e das obras de Deus”. Finalmente, em Goethe, a teosofia //torna-se// uma visão consequente da natureza, quando Fausto, //posto// diante do signo do microcosmo, //reconhece// que: Tudo //se entrelaça// de maneira a //formar// um todo, cada objeto //age// e //vive// dentro dos outros, as forças do céu //sobem// e //descem// e //passam// os selos de ouro. Com suas asas de perfume bendito, //vindas// do céu, elas //penetram// a terra e //ressoam// harmoniosamente através de todo o universo. O espírito e a matéria não //se separam//. Deus e a natureza //formam// uma unidade compacta; é a isso que //aludem// os alquimistas da Idade Média quando //falam// do “mundo um”, e //pode-se dizer// igualmente que a psicanálise e a física moderna //redescobriram// esta unidade. Como //diz// C.G. Jung, a matéria e o psiquismo //aparecem// como os dois modos de manifestação, //referindo-se// um ao outro, do “aspecto //unificado//, //transcendendo// a consciência do ser”. Na última passagem de Böhme que acabamos de //citar//, //trata-se// do “terceiro princípio”. A teoria dos “Três princípios” //constitui// com certeza um elemento chave da doutrina do teósofo. Na carta //endereçada// a Caspar Lindner, ele //define// como segue esta chave hermenêutica: “Meu livro //comporta// apenas três folhas: são os três princípios da sabedoria. Lá, //posso encontrar// tudo o que //disseram// Moisés e os profetas, e também o Cristo e os apóstolos. //Posso encontrar// nele o fundo do universo, e todo o seu mistério. Mas não //sou// eu quem o //faz//, é o espírito do Senhor, na medida em que ele o //quer//.” Esta última frase tem a sua importância. Pois os filósofos medievais da natureza já //conheciam// uma doutrina dos três princípios, //associada// por um lado do dogma cristão da Santíssima Trindade, e por outro à observação dos processos alquímicos. É assim que, em Paracelso (por exemplo, na //Opus Paramirum// ou no //Liber meteororum//), //encontra-se// esta teoria do papel universal do número três, //apresentada// como um resultado da “experiência” (//Erfahrnis//). Da mesma forma, o filósofo e mago Agrippa von Nettesheim, contemporâneo de Paracelso, //descreve// em suas “obras mágicas” como é possível a um mago //extrair// forças do “triplo universo”. O sal, o enxofre e o mercúrio //são considerados// pelos alquimistas como os fundamentos materiais da trindade; ao mesmo tempo, estes //acreditam// na presença de três “forças” invisíveis e incorpóreas. Böhme, de maneira característica, //faz// suas essas ideias básicas, mas //dá-lhes// uma forma tal que elas //poderão// //servir-lhe// de meio de expressão para //representar// o processo que ele //vê// //se desenrolar// na divindade, no cosmos e no gênero humano. Em um primeiro impulso, por assim dizer, Böhme //esforça-se//, em “A Aurora”, para //traduzir// em palavras as imagens da sua visão. É esta abordagem que o //conduz// ao limite do que é //comunicável// pela linguagem; ela é também uma das causas da obscuridade — da qual os leitores de Böhme //se queixam// frequentemente — de numerosas passagens da sua obra. É ainda ela que //explica//, nos escritos do teósofo, o fluxo de imagens e de metáforas incessantemente renovadas, assim como o recurso à “linguagem natural” (//Natursprache//). É assim que ele //designa// um modo de interpretação das palavras que lhe é pessoal, e que nada tem a ver com a etimologia científica. //Trata-se// aqui para Böhme de //descobrir// a linguagem dos sons, a sabedoria //enterrada// nas vogais, nas consoantes e nas suas combinações, e isto a fim de //determinar// a qualidade do que é //designado// pelas palavras e pelas sílabas, melhor do que //permite// a significação convencional dos termos utilizados. É com a ajuda desta linguagem natural que Böhme //procura//, em suma, //expressar// o inefável. Antes de //abordar// a trindade divina, o teósofo //constata// que //existe// um //Ungrund// (“sem-fundo”) fora de toda natureza, e também fora de tudo o que está //contido// nas proclamações dogmáticas da Igreja. Este //Ungrund// divino “não é nada mais do que um silêncio sem essência (//ohne Wesen//). Não //contém// nada que //possa dar// algo. É uma calma eterna e não um equilíbrio, um //Ungrund// sem começo e sem fim. Não é também um objetivo nem um lugar, não //se procura// nem //se encontra//, não //encerra// nenhuma possibilidade. Este mesmo //Ungrund// é semelhante a um olho, pois é o seu próprio espelho. Não //possui// nenhuma essência (//Wesen//), e não //comporta// nem luz nem trevas; é antes de tudo uma “magia”, e //possui// uma vontade que não //devemos// nem //procurar// nem //explorar//, pois ela nos //perturba//. Por esta mesma vontade, //entendemos// o fundo (//Grund//) da divindade, que não tem origem; pois ele //se contém// a si mesmo, o que nos //deixa// mudos com razão; pois ele //está// fora da natureza12”. Assim, //existe// para Böhme uma coisa ao mesmo tempo primeira e última, e que é também o que há de mais profundo; é o que os gnósticos do segundo século, notadamente os da escola de Valentino, também //chamaram// //Sige// (silêncio). Quando Böhme, //prosseguindo// seu desenvolvimento, //chega// à santíssima Trindade, ele //sublinha// de imediato com força que não //se trata// absolutamente de três deuses dos quais cada um //teria// uma realidade separada: “Não, tal substância ou essência não //existe// em Deus, pois o ser divino //encontra-se// na potência, e não no corpo ou na carne.” O Pai //se identifica// para Böhme com a “potência divina inteira, pela qual todas as criaturas //foram engendradas//. O Filho //está// no Pai, ele é o coração do Pai ou a sua luz... O Espírito Santo //emana// do Pai e do Filho... e consequentemente o Espírito Santo é igualmente o espírito //movente// no Pai inteiro, e de eternidade em eternidade ele //emana// sempre do Pai e do Filho... a sua força //agente// está no Pai inteiro.” Até aí, o texto de Böhme não //difere// essencialmente do dogma canônico da Santíssima Trindade. No entanto, a dinâmica do seu pensamento o //leva// mais longe quando ele //escreve// no mesmo capítulo: “A potência do Pai //engendra// o Filho, sempre, de toda a eternidade. Desde então, se o Pai //cessasse// de //engendrar//, não //haveria// mais Filho; e se o Filho não //brilhasse// mais no Pai, o Pai //seria// um vale escuro”. São certamente imagens um tanto //pouco convencionais//. Elas //tendem//, em última análise, a //sugerir// a presença da unidade divina no interior da multiplicidade dinâmica dos //engendramentos// intra-divinos e dos processos //prosseguindo// permanentemente. À trindade suprema //está associada// uma “//septimidade//” bastante semelhante à que //se encontra// na Cabala judaica: “Os sete espíritos são o Pai da luz, e a luz é o seu Filho que eles //engendram// sempre assim de eternidade em eternidade; e a luz //se acende//, e //torna// sempre e eternamente os sete espíritos vivos e alegres, pois todos eles //devem// sua ascensão e sua vida à força da luz126.” Este processo, que //se desenrola// tanto em Deus quanto para além da divindade, não //está ligado// a nenhum tempo nem a nenhum lugar. O que //se produz// assim além das categorias do conhecimento humano, Böhme //tenta// //descrevê-lo// “à maneira de Deus, e também das criaturas... a fim de //inspirar// a muitos a vontade de //refletir// sobre estas altas coisas”, como ele o //diz// em sua segunda obra, “Descrição dos três princípios da essência divina”. Isso //significa// que o autor não //se contenta// em //ceder// à sua própria necessidade de //comunicar// o que ele //pensa//, //vê// e //experimenta//; ele //quer// também //ativar// o pensamento, e se possível a visão dos seus leitores. Sua intenção, como //mostraremos// no contexto de sua //cristosofia//, é de natureza psicopedagógica. É de forma um pouco mais clara e mais transparente do que em “A Aurora” que Böhme //tenta// //explicar//, em sua segunda obra e nas seguintes, sua teoria dos três princípios. Não //deve-se//, porém, //esperar encontrar//, lá também, definições filosóficas precisas; para ele, de fato, “um princípio não é nada mais do que um novo nascimento, uma nova vida128.” O que Böhme //expõe// em detalhe nestas obras //pode// ser //resumido// como segue: A base do tríplice universo é //formada// pela eterna vontade de Deus. No primeiro princípio //expressa-se// o azedo //furor// e a cólera de Deus. Böhme //fala// também, a este respeito, da “//angústia-fogo//” (//Angst-Feuer//), noção que //poderia// ser //assimilada// a uma energia pura hipotética cuja força original //eruptiva tenderia// para o exterior, para a materialização. No segundo princípio, o Deus-Pai //engendra// o Filho, dentro do qual a dinâmica do //fogo-furor// //se transforma// em um mundo de luz e de amor, e isto sempre antes de toda objetivação ou personificação. É somente o terceiro princípio que //contém// o //Fiat//, a palavra criadora de Deus. É através deste princípio que o ininteligível //alcança// o entendimento (//Begreiflichkeit//). O que tem por fonte (//Urständ//) o espírito do //furor// divino (o Pai) e que //encontra// seu polo oposto criador no amor (o Filho), //toma// forma, enfim, no terceiro princípio. É assim que //se desencadeia// um processo que //conduz// do ser-em-si de Deus à sua manifestação. O //Deus absconditus// (Deus escondido) //torna-se Deus revelatus//. //Antecipando-nos// ao que será dito mais adiante, //podemos// desde já //notar// que, para Böhme, uma vez que os três mesmos princípios são o fundamento de toda criatura, a criação //permite conhecer// o segredo da divindade que //se manifesta// nela. De fato, “toda coisa neste mundo //foi formada// segundo a imagem desta trindade”, como ele o //nota// em uma passagem de “A Aurora”.