====== Evágrio – Sonhos (FOJ) ====== FOJ Devemos indagar como os demônios informam e configuram o princípio fundamental de nossa alma nas fantasias que nos assediam no sonho. Isso acontece ao intelecto tanto quando vê com os olhos ou quando ouve com os ouvidos ou com qualquer percepção. Às vezes nos chegam por meio da memória, que informa ao princípio fundamental da alma, movendo o que recebeu mediante o corpo. Parece-me, pois, que os demônios informam ao princípio fundamental de nossa alma, movendo-nos a memória, pois o órgão é, nesse momento, mantido inativo pelo sono. Devemos saber como se produz esse movimento da memória. Será, acaso, por meio das paixões? Isso é evidente, pois aquele que é puro e está livre de paixões, não passa por coisas similares. No entanto, existe um movimento da memória produzido simplesmente por nós mesmos, ou bem pelas santas potências, no qual encontramos os santos e somos seus comensais. Mas deveremos prestar atenção: essas imagens que a alma recebe conjuntamente com o corpo, serão depois movidas pela memória sem o corpo. Isso está claro pelo fato de que frequentemente passamos por isso durante o sono, enquanto o corpo está imóvel. Pois pode acontecer que nos lembremos da água já seja que tenhamos sede ou não, e assim acontece que nos lembramos do ouro já seja com cobiça ou sem ela. E o mesmo acontece com o resto. No entanto, o fato de encontrarmos tais diferenças entre as variadas fantasias, é um indício de sua artificiosidade. E ainda mais: devemos saber que os demônios se servem também de objetos externos para suscitar suas fantasias. Por exemplo: do som das ondas, para alguém que se dedique à navegação. Nossa irascibilidade, quando se move contra a natureza, coopera muito com os objetivos que os demônios pretendem, tornando-se assim utilíssima para qualquer de seus enganos. Portanto, estes não se fazem rogar para acioná-la, de dia ou de noite. E quando a veem contida pela humildade, logo a liberam com bons pretextos, e assim, tornando-se violenta, esta serve a seus pensamentos bestiais. É necessário, pois, não excitá-la com nenhum objeto, nem justo nem injusto, evitando pôr em mãos de quem nos sugestiona, uma arma funesta, como sei que muitos fazem, aferrando-se mais do que necessário a fúteis pretextos. Por certo, diga, por que se é tão combativo? Não se desprezou já manjares, riquezas e glória? Por que se cria um cão, se se manifestou não possuir nada? Se este late e se atira sobre as pessoas, é claro que é porque se tem algo e se quer defendê-lo. E estou bem certo de que um homem assim está afastado da oração pura, porque sei que a irascibilidade destrói esta oração. E me assombra que se esqueça também dos santos, enquanto Davi grita: Cessa em tua ira e deixa a cólera (Sl 36:8). E o Eclesiastes recomenda: Afasta a cólera de teu coração, e remove a maldade de tua carne (Ecl 11:10), enquanto o Apóstolo nos ordena elevar, em todo tempo e lugar, mãos puras sem iras nem disputas (1 Tm 2:8). E por que não aprendemos da antiga e misteriosa costume de expulsar de casa os cães em tempo de oração? Ela nos demonstra, alegoricamente, como não deve existir cólera naquele que reza. E também se disse: Há cólera de dragões em seu vinho (Dt 32:33), e no entanto, os nazireus se abstinham de tomar vinho! Quanto ao dever de não se preocupar com trajes ou manjares, considero supérfluo escrever a respeito, já que o Salvador mesmo o proíbe nos Evangelhos: não vos preocupeis com vossa vida, com o que comereis, com o que tomareis ou com o que vestireis. Isso concerne aos gentios e aos incrédulos, aos que rejeitam a providência do Soberano, e renegam o Criador, mas é coisa totalmente alheia àqueles cristãos que creram que dois passarinhos que se vendem por um ceitil estão sob o governo dos santos anjos. Mas os demônios têm também este outro costume: depois de nos acossar com pensamentos impuros, nos infundem alguma preocupação a fim de que Jesus se retire, devido ao caudal de ideias que acodem à nossa mente, e sua Palavra se torne infrutífera, sufocada por pensamentos de preocupação. Mas uma vez que os tenhamos deposto e havendo depositado toda nossa confiança no Senhor, conformando-nos com as coisas que temos, e pobres quanto a nosso estilo de vida e pela roupa que nos cobre, despojaremos cada dia aos pais da vanglória. Se alguém se sentir indecoroso por ter um traje pobre, que dirija seu olhar a são Paulo, que esperou a coroa da justiça no frio e na nudez (2 Co 11:27). Posto que o Apóstol chamou a este mundo "teatro" e "estádio", vemos como é possível que um, acompanhado por pensamentos de preocupação, corra para o prêmio da suprema chamada de Deus (Fl 3:14) ou lute contra os principados, as potências, os dominadores cósmicos das trevas deste século (Ef 6:12). Ainda treinado na observação das realidades sensíveis, não sei como isso é possível. Está claro que aquele que veste a túnica, se encontrará impedido de avançar e arrastado aqui e acolá, como o intelecto o é pelos pensamentos carregados de preocupações, se cremos na palavra que diz que o intelecto deve estar constantemente atento a seu tesouro. Disse-se, de fato: Onde está teu tesouro, ali estará teu coração (Mt 6:21). Quanto aos pensamentos, alguns deles separam e outros, são separados. Isto é: os maus separam aos bons e, por sua vez, os maus são separados pelos bons. Portanto, o Espírito Santo atende ao primeiro pensamento que nos acode e com base nele, nos julga ou nos recebe. Quero dizer isto: tenho um pensamento de hospitalidade e seguramente o tenho para com o Senhor, mas como se aproxima o Tentador, meu pensamento é separado, porque este me sugere oferecer hospitalidade por amor à glória. E mais ainda: tenho um pensamento de hospitalidade, mas para ser visto pelos homens. E no entanto, este mau pensamento pode ser rescindido ao acudir um pensamento melhor, o de pensar que é melhor dirigir a virtude para o Senhor e induzir-nos a não fazer estas coisas pelos homens. Depois de muita observação, conhecemos qual é a diferença entre os pensamentos provenientes dos anjos, os provenientes dos homens, e os que provêm dos demônios. Os primeiros, os angélicos, observam as várias naturezas das coisas e descobrem as razões espirituais. Por exemplo, a razão pela qual o ouro foi criado, isto é, para ser distribuído nas zonas inferiores da terra misturado com a areia, e ser encontrado com muito trabalho e fadiga. E logo vemos como, uma vez encontrado, é lavado com água, passado pelo fogo, entregue às mãos dos artesãos, os quais farão o candelabro da tenda, o altar, os incensários e as copas, nas quais agora não bebe mais - por graça de nosso Senhor - o rei de Babilônia. Por estes mistérios arde o coração de Cleofás. Mas o pensamento que nos surge por obra dos demônios, não sabe nem compreende tudo isto, mas nos sugere, descaradamente, o afã pela posse do ouro sensível, indicando-nos todo o prazer e a glória que nos encherão ao tê-lo. Quanto ao pensamento que provém do homem, este não busca a posse do ouro, nem se preocupa por entender seu significado simbólico, mas nos introduz na mente sua forma nua, sem paixão nem cobiça por possuí-lo. O que dizemos do ouro, é válido também para as outras coisas, quando este pensamento é misticamente exercido segundo essa regra. Há um demônio, denominado vagabundo, que se apresenta aos irmãos sobretudo durante o transcorrer do dia. Este passeia nosso intelecto de cidade em cidade, de povoado em povoado e de casa em casa. O intelecto entabula, no princípio, simples diálogos. Logo se entretém por mais tempo com algum conhecido e corrompe o estado interior dos que encontra, e depois, pouco a pouco, vai se esquecendo de seu conhecimento de Deus, das virtudes e de sua própria profissão. É pois necessário que o solitário observe de onde vem este demônio e a onde este quer chegar. Não é por casualidade que este demônio dá todas estas voltas. O faz para corromper o estado interior do solitário. Deste modo o intelecto, inflamado por estas coisas, embriagado por todos os encontros, imediatamente tropeça com o demônio da fornicação, ou da ira, ou da tristeza. Sentimentos que massivamente destroem o resplendor do estado interior. Mas nós, se realmente nos propomos reconhecer a astúcia deste demônio, não devemos nos apressar a gritar contra ele, nem a meditar sobre o sucedido, contando como este realiza estes encontros em nossos pensamentos e de que maneira vai empurrando o intelecto para a morte. Não suportando ser observado em seu agir, o demônio fugirá de nós e nada poderemos saber do que queríamos aprender. Mais bem deveremos permitir que por um ou dois dias, atue a fundo, assim poderemos aprender bem suas maquinações, e o faremos fluir enfrentando-o com nossas palavras. E acontece que quando nos sentimos tentados, o intelecto está turvo e lhe resulta difícil ver o que está sucedendo. Devemos pois, agir quando o demônio se foi da seguinte maneira: senta-se e traz à tua memória o sucedido, por onde começou tudo, onde foste, e em que lugar te sentiste atraído pelo espírito da fornicação, da tristeza ou da ira, e novamente recapitula o sucedido. Examina tudo muito bem e confia-o à tua memória, assim poderás enfrentar ao demônio quando se aproxime. Observa atentamente o esconderijo onde ele pretende levar-te e não o sigas. E se inclusive queres enfurecê-lo, enfrenta-o uma e outra vez, falando-lhe diretamente. Sentir-se-á muito molesto já que não tolera ser envergonhado. Como demonstração de que soubeste falar-lhe como é devido, verás que esse pensamento que te assediava te abandonou por completo. É impossível que permaneça se é abertamente enfrentado. Uma vez que tenhas vencido ao demônio, seguirá uma profunda sonolência, uma espécie de estado de morte, com uma grande pesadez nas pálpebras, contínuos bocejos, um grande peso nas costas. Mas o Espírito Santo fará que tudo isto se desvaneça depois de uma intensa prece. O ódio contra os demônios nos ajuda muito a conseguir a salvação e é conveniente para a prática da virtude. Mas nós não estamos em condições de cultivá-lo por nós mesmos como um broto qualquer, já que os espíritos amantes do prazer o destroem e o conduzem a esse amor habitual. Este amor -ou melhor, esta gangrena difícil de curar - é curada pelo médico das almas abandonando-nos a uma prova. Efetivamente, permite que padeçamos de dia ou de noite, uma situação horrorosa para a alma, de tal modo que ela retorna a seu ódio original, aprendendo a dizer o que Davi disse ao Senhor: De um ódio perfeito os odiei; converteram-se em inimigos para mim (Sl 138:22). Pois aquele que não peca com seus atos nem com seus pensamentos, odeia com um ódio perfeito, o qual é índice de uma máxima primitiva impassibilidade. E que dizer daquele demônio que deixa à alma insensível? Sinto temor de escrever a respeito. Não é incrível como a alma, quando se encontra com este demônio, sai de seu estado interior, despoja-se do temor de Deus e de toda piedade, não considera mais ao pecado como um pecado, nem age com responsabilidade, recordando ao castigo e ao juízo eterno como uma coisa de nada e verdadeiramente zomba do terremoto do fogo (Jó 41:20). Reconhece a Deus, por certo, mas não reconhece seu mandamento. Bate-se no peito porque se vê à alma mover-se para o pecado, mas ela não percebe nada. Trata-se de convencê-la com as Escrituras, mas ela não te escuta porque está obtusa. Enfrenta-se com a vergonha dos homens, mas não te atende nem te entende, como se fosse um porco que fechou os olhos e dirige-se para seu cercado. A este demônio nos levam os persistentes pensamentos de vanglória. E disse-se dele que se aqueles dias não tivessem sido abreviados, nenhuma carne se teria salvo (Mt 24:22). Isto acontece àqueles que raramente frequentam a seus irmãos. O motivo é evidente: este demônio, frente às desgraças dos demais, isto é, as daqueles que foram acometidos pelas enfermidades ou que têm a desgraça de estar presos ou encontram uma morte imprevista, foge logo, porque não bem a alma se comove e se enche de compaixão, dissipa-se o endurecimento produzido pelo demônio. Mas esta possibilidade não a temos por causa da solidão em que vivemos ou da rara presença, próxima a nós, de pessoas que sofrem. É justamente para que possamos fugir deste demônio que o Senhor nos recomenda, nos Evangelhos, que visitemos aos enfermos e aos que estão na cadeia. Estava enfermo e me visitastes (Mt 25:36), nos diz. Mas devemos ter presente isto: se algum solitário, tendo tropeçado com este demônio, não aceitou ainda pensamentos impuros, nem abandonou sua casa entregando-se à acídia, este recebeu a tolerância e a temperança, que desceram dos Céus e o abençoaram por tal impassibilidade. Quanto àqueles que fizeram sua a profissão de exercitar a piedade, e elegem viver junto aos mundanos, devem cuidar-se deste demônio. Eu, de fato, envergonho-me diante de todos vós e não quero seguir dizendo ou escrevendo a seu respeito.