====== Daniel Vidal (DVPE) – A Pérola evangélica, fôro interior ====== DVPE A alma é superfície límpida, e não mais dá saltos nem rebotes. Uma calma perfeita ali se expande, um silêncio pacificado. Mas esse silêncio não pode existir, e essa paz após provações e turbulências, movimentos dos sentidos e do espírito, senão como indícios de uma reversibilidade de todo o dispositivo místico. Da alma a Deus, sem dúvida a distância está abolida: a espiritualidade se define por essa própria abolição, e a imediatez da relação com Deus que daí decorre. Mas de tal imediatez, que não há, em seu triunfo, mais relação propriamente dita. A alma e Deus são um. E esse um, selo da cumplicidade atingindo sua mais alta definição, funda o sujeito como investimento desse deus que faz as vezes do outro, desse deus como todo outro. Como jazida do próximo. De um sujeito seu outro: A Pérola enuncia esse retorno, esse refletir. Essa dobra. Nessa dobra, toda mística encontra seu pensamento e sua lei. Mas A Pérola é sem dúvida o texto por excelência que soube conjugar até seu termo a busca de Deus e a emergência do sujeito, a busca de Deus como invenção do sujeito. Se o sujeito é operador central da mística, não é evidentemente segundo as categorias convencionais da consciência e suas qualidades, seus valores e saberes. Isso é varrido pela prova mística. Ninguém chega a Deus que não esteja sem sombra, e sem pensamento desde que seria preciso que houvesse um sol como metáfora. Que não seja trabalhado pelo aniquilamento. Se reuníssemos todas as ocorrências desse nada no dito de A Pérola, traríamos em toda clareza a única frase, em suma, que valeria. E o texto não diz senão isso, que se insinua através dos enunciados de aliança a Roma e suas instituições de palavra, e que os põe em perda continuamente: ali, nessa instância, e nesse instante, onde a criatura toda despossuída assim se oferece a seu deus como um nada a outro nada, de igual não-valor, de idêntico deserto, de exata resposta de uma poética à outra da nudeza, como Tauler a havia encantado — ali, ocorre um evento transfigurador — a explosão da alma para fora da alma. O fundo íntimo da alma, o foro interior, que a mística renana longamente definiu como essência, extrema interioridade do que a consciência conhece de mais profundo e velado, escondido, secreto — esse espaço interior faz retorno brusco e violento: vira-se sobre si mesmo e, toda reversibilidade cumprida, desdobra-se no espaço — e como espaço — doravante aberto e oferecido ao mundo. Da intimidade mais fechada em sua própria vacuidade, desapropriada de toda qualidade definidora da criatura, de todo valor e diferença — dessa coisa nua e nula a que deve chegar a busca de Deus, a mística, tal como posta em fórmula maior pelos tratamentos sucessivos de A Pérola Evangélica, opera uma virada exemplar. O espaço interior, o fundo oculto da alma, irrompe como categoria social. O foro interior é isso mesmo — essa dobra da alma devastada, que uma intimação de deus leva a essa alteridade que decide toda paixão social. O espaço interior, último abrigo onde se ordena o encontro da criatura desqualificada e de seu deus razão de seu profundo nada, gira sobre o eixo mesmo que constitui essa fusão e, passando para o outro lado de sua forma, funda uma nova razão: não mais o advento da última dobra secreta da alma como espaço de pura exterioridade, nem a insistência de um momento da consciência donde se geraria um debate psicológico; mas isso mesmo que permite a todo outro inventar, rigorosamente falando, um sujeito como abertura nua ao mundo, como essa fenda mesma, essa imensa lacuna por onde esse mundo entra em germinação.