====== Daniel Vidal (DVPE) – A Pérola evangélica, dobras ====== DVPE Ao ler e reler o texto, circulando por ele como em espaço ambíguo de múltiplos caminhos — onde se crucam instrução devota e palavra de ignição simples, queimando suas palavras para que o leitor possa ler suas cinzas; onde se misturam horas canônicas e orações de vacuidade, falas de aniquilamento e de plenitude, bênçãos marianas e súbita nudez daquele que se abandona o suficiente a seu deus para tornar-se, possuído-possuidor, esposo de Sua incircunscritibilidade -, ao ler assim este texto de todas as presenças, compreende-se que ele não é mais apenas enunciado entre outros. É texto em sobreposição, como último olhar sobre o horizonte antes que paisagem desapareça. Última saída mística antes que espiritualidade ocidental se realize como instituição da palavra em instância de sujeito — e que dê origem, ao longo do século XVII, a essa floração de textos que, de Benoît de Canfield a Madame Guyon, sustentarão continuamente obras voltadas ao nada e a toda quietude, essa febre íntima dos sem-desejos. A Pérola Evangélica mantém essa postura elevada por sua capacidade de significar essa última reserva da alma, que, nua e disposta a seu deus, despojada de todo pensamento e competência, aliviada de valores que são agora vestígios imemoriais, decide enfim seu destino. Essa dobra da consciência, esse âmago do espírito, esse refúgio no último depósito da alma — quase-nada dentro do próprio nada — é essa essência realizada de que fala o texto místico, esse foro interior que hoje nos interpela. A Pérola trabalha o próprio conceito de deus até abri-lo, rompendo seu cerco sem limites, levando-o à paixão e crucificando-o última vez. Ela diz essa tensão suprema, necessária e de pura perda, injunção sem recurso, e ainda assim à beira do vão, traçando no centro da alma — convocada a ali se provar — dobra súbita que muda ordem das coisas, do mundo e sua equação. A alma é arranjo há muito formulado, nomeado, identificado, de sequências e segmentos. É via régia para Deus, nela abundando tanto mais facilmente quanto é desse deus partícula cintilante, emblema, marca já presente, sinal em toda sua eloquência. E A Pérola registra jogo dessas faculdades e sequências, diz alma em todos estados, fiel aos enunciados anteriores a seu tempo próprio, atentos a discernir por quais caminhos, na própria alma, Deus avançaria rumo à criatura. Mas A Pérola desdobra esse itinerário até seu horizonte mais ínfimo, mais íntimo, e subitamente encerra descida na alma em torno de ponto de nenhum outro lugar, de nenhum aqui, onde "eu" como perda e "outro" como recurso não têm valor — esse vazio da alma, esse espaço neutro. Neutro: A Pérola o chama "fundo essencial", onde se fundem deus e sua testemunha, criatura e sua deidade oceânica. Não junção de contrários, trama de categorias adversas, mas indistinção do outro e do um, pulsação indecidível, partilha da meia-noite, intervalo mudo. A Pérola nos fala precisamente disso — a pérola —, que se aloja no mais profundo do texto e brilha. Essa pérola: esse espaço tão interior que faz insolência no centro de verbo apropriado e imediatamente abandonado, e que funda, nesse deserto, possibilidade mesma de retorno. Esse retorno, esse espaço invertido, esse espaço enfim curvado sobre si mesmo, marca especificidade desse enunciado místico, que diz partida e horizonte alcançado, mas que diz também flexão necessária — essa flecha subitamente apontada para seu destinador. Na extrema complexidade da "estrutura da alma", A Pérola expõe caminho para Deus e de Deus nessa mesma alma — e cada momento da alma, cada suspiro, cada nota insurgida, é ocasião para Deus e sua criatura de recuo, de ausência, de lamentação, de noite toda escuridão, ou de luz súbita. Até que tudo, como em cruz, seja enfim consumado, desde que se aceite avançar por caminho da ablação e oferecer-se sem vestes internas ao bisturi que abre para Aquele que se busca há tanto tempo. Fundo da alma, princípio essencial, espaço inabitável — pois morada apenas do deus, a menos que se chegue a ser esse próprio deus. Espaço de nada, esse próprio nome de Deus que se escreve em A Pérola, na estrita filiação renana, como emblema de pura nudez e nada. Esse é, portanto, cumprimento da busca, destino de toda criatura em instância de Deus — que é outro nome do sofrimento de si. No texto que trabalha o mais próximo possível desse ponto — presença essencial do sujeito a seu deus, do deus a seu real —, escrita explora todos graus a transpor, todas provas a atravessar, todas vias a percorrer para acessar essa região sem suspeita, sem categoria discriminante, sem potência (pois nela toda faculdade, todo vetor de forças, toda tensão da alma se extinguem). Gostaríamos de poder dizer que aqui chega ao fim experiência do limite último, da fronteira intransponível, pois não há além pensável. E sem dúvida criatura, em sua despossessão radical, atinge ponto lógico onde não há mais suplemento de caminho a inventar, nem desejo ou vocação a extirpar — alma foi inteiramente tomada e, desnudada, oferecida a esse deus do qual é ao mesmo tempo templo e negação, sinal e objeção. Não há mais nada que insista ou se reserve: sujeito funda sua solidão (que é sua insolência e seu império) nesse defeito em absoluto. Mas isso supõe, nesse desistimento completo de toda qualidade, virtude ou paixão, e nessa travessia ilimitada da alma por seu deus, que esse último limite seja superfície de reflexão. Não que seja espelho para alma bem-aventurada, que poderia enfim contemplar face a face sua perfeição — face a face onde Deus e alma se declinam no mesmo tempo. Nessa ponta extrema da alma, nesse espaço no mais profundo do espírito, não há obra de contemplação que suponha, de algum modo, que imagem possa ali se conjugar a qualquer outra e receber luz no momento mesmo em que circunscreve seus contornos. Estamos em registro de copresença, termo de caminho sem hora através de categorias, graus, funções e regiões da alma. Depois da decifração da linha oblíqua para Deus (que supõe leitura capaz de desdobrar todas saídas da alma, seus estados e acessos, circunstâncias e linhas de fuga), eis busca do deus chegada a sua transparência. Depois do desdobramento da alma em todos seus estados e vertigens, exposição crua de suas paixões e ações; depois dessa vasta obra de explicitação, de desligamento de toda complexidade, tempo enfim habitado pela cumplicidade.