====== Serpente [PNHI] ====== Paul Nothomb — O HOMEM IMORTAL VIDE: Eva Serpente Maçã A SERPENTE OU A FASCINAÇÃO LÓGICA A figura mitológica da serpente do relato do Jardim do Éden deu lugar a muitas especulações. Que representa este animal falante? Satã, o Adversário, o Espírito do Mal, o anjo Samael? Contrariamente ao que deixa entender a tradução corrente, o texto não diz que é uma criatura de Deus. Deve-se ler (Gen 3,1): “A serpente era mais astuta que todos os animais que YHWH tinha feito” e não “o mais astuto de todos os animais selvagens...”. O adjetivo astuto, que caracteriza esta criatura fictícia é ainda mais significativo. Traduzindo “aroum” em hebreu tem a conotação pejorativa em francês. Mas se referirmos às dez outras ocorrências deste adjetivo na Bíblia nota-se que duas vezes somente é traduzido com esta conotação, e oito vezes com a conotação oposta. Os oito casos positivos se encontram no Livro dos Provérbios e cada vez a Bíblia de Jerusalém traduz aroum por “avisado”, “precavido”. Entre as citações há uma bem interessante para esclarecer nosso texto: “As pessoas avisadas se fazem do saber (Daat) uma coroa” (Pr 14,18). É um elogio. Qualidade ou falha, avisado ou astuto, o que une estas duas conotações é a inteligência, a sutilidade de espírito. E o sentido sutil domina na Bíblia. A serpente astuta ou sutil personifica uma faculdade intelectual em relação com o saber (Daat) ou a ciência (Daat) é a mesma palavra em hebreu e é aquela da famosa árvore (Árvore do Conhecimento) se se junta “em tudo”. Nenhuma dúvida é possível. A serpente não é um porta-voz da tentação moral ou do instinto sexual, como não se pára de dizer. É a voz interior, ou melhor uma das vozes interiores do debate contínuo do pensamento reflexivo na lida consigo mesmo, que, se debatendo com os limites que a realidade aponta a seus conceitos, tem tendência de querer os ultrapassar na pseudo realidade da linguagem por um movimento de vai e vem, tese, antítese, síntese, que se chama dialética. “A Mulher viu que a árvore era (...) desejável para adquirir o entendimento” (Gen 3,6). Eben Ezra, o racionalista, comenta: Ela viu em seu coração”. O coração é o órgão da inteligência na Bíblia. Se chocando com os limites que aponta para seu conceito de “aquilo que é bom” a realidade — aqui a ordem de Deus interditando de comer desta árvore —, a Mulher, sensível ao argumento da serpente (quer dizer a sua sutilidade) que é um argumento linguístico, segundo o qual a onisciência analiticamente, quer dizer o conhecimento do “tov” e do “ra”, do bom mas também do mau, “vê no seu coração”, imagina que este suplemento ao “tov”, do qual ela ignora até aqui totalmente a natureza mas que, pelo fato único que se junta ao tov, lhe parece “desejável para adquirir o entendimento” — um entendimento que vai além do conceito do “tov”, ao qual se limita a realidade essencialmente boa criada por Deus. Certamente, poderia se ter dúvida, a palavra "onisciência" é menos rica, menos sugestiva que a expressão hebraica dual que tenta traduzir. Corrige o sentido moralista ou puramente pragmático, que prestam ao drama do Jardim do Éden, das traduções, tais como "conhecimento do Bem e do Mal" ou "conhecimento da felicidade e da infelicidade". Faz da transgressão de nossos primeiros pais seu caráter de "pecado contra o espírito" que ela reveste antes de tudo. Mas deixa na sombra o papel desempenhado pela linguagem nesta passagem da unidade à dualidade que é a "Queda". Pelo ouvido hebreu que entende tov wara, mesmo se compreender que isto quer dizer "em tudo", há por trás do //tov// que isolado significa "bom", //ra// que isolado quer dizer "mau" mas que evoca também uma raiz consonântica conexa que quer dizer "outro". Como se este //ra// fosse o "outro" do tov, seu duplo, seu reflexo, sua face oculta e atrativa. O "diálogo" que a serpente engaja com a Mulher nada tem de espontâneo. É uma démarche reflexiva essencialmente lógica. A habilidade consiste em pôr então a questão em termos muito generosos, no modo interrogativo, como se se tratasse de dissipar uma mal-entendido. "Ela diz à Mulher: Deus verdadeiramente disse: Não comereis de todas as árvores do jardim?" (Gen 3,1). Ela exclama: "Do fruto das árvores do jardim comemos; é do fruto da árvore que está no meio do jardim que Deus disse: dele não comereis e aí não tocareis, em receio de morreres" (Gen 3,2-3). Ora, segundo o texto, o que Deus disse ao Homem, antes que a Mulher exista, a respeito da Árvore da Onisciência, é: "Dela não comerás, pois o dia que dela comerdes morrereis certamente" (Gen 2,17). A exegese judia desde muito tempo notou esta diferença de formulação, que um midrash explica assim: Desconfiando da curiosidade de sua mulher, o Homem a instruiu da interdição divina nisto adicionando por conta própria uma proibição suplementar, aquela de não tocar na árvore. Esta informação mentirosa, inspirada pela prudência, a perdeu, pois a Mulher, não sem hesitação, e talvez como por inadvertência, começou por se aproximar mais e mais da árvore, a roçá-la e enfim tocá-la. Nada de incômodo se produzindo, ela disto deduziu que ela poderia também dela comer, e que a advertência de Deus não se verificava. O Homem foi pego de certa maneira na armadilha de sua própria astúcia. Constatemos que o Adam e a Mulher substituíram seu raciocínio à realidade da Palavra Divina, e que no caso do Adam foi para "melhorá-la". De pronto a serpente se animou. "Não, não morrereis, Mas Deus sabe que o dia que dela comerdes vossos olhos se abrirão, e serei dotados de onisciência como Deus" (Gen 3,5; Abriram-se os Olhos). Eis, enfim nomeada, a verdadeira tentação. Traduzir: "Sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal", como em Segond, a faz aparecer metafísica e moral, enquanto ela é intelectual. A forma adjetival no plural "dotados de onisciência" ("conhecendo o bem e o mal") se relaciona a "vós" (o Homem e Mulher) e não a Deus, que deve portanto permanecer no singular. No Éden o Homem e a Mulher não têm qualquer desejo de se tornar "deuses" ou "seres divinos". Eles já o são demais, posto que vivem no Jardim de Deus. Mas a ambiguidade da onisciência, que concebem logicamente como um ideal e como um atributo divino, os atrai. E na medida que a Mulher, raciocinando a partir da informação errada que lhe transmite o Homem, crê que ela nada tem a temer, ela decide. O que é mais chocante neste drama, é o papel completamente passivo que desempenha o Homem. Ele aí está presente do início ao fim (a Mulher diz: "Comemos", a serpente: "Sereis"; o texto precisa mesmo: "ela deu também a seu homem que estava com ela"). E ele não pronuncia uma palavra. Como uma cabra hipnotizada por uma cobra, não esboça a menor resistência. É ele no entanto que ouviu da boca de Deus a advertência, que lhe pareceu tão grave que creu bom "reforçá-la" em a comunicando em seguida à Mulher. E ele não tem a desculpa da Mulher que, enganada por ele, deduziu depois de ter tocado a árvore, que ela podia dela comer impunemente. Ele sabia, ele, que não era interdito tocar na árvore, mas somente dela comer. E ele dela come certamente, imitando sua mulher em lugar de pará-la em seu gesto, de dissuadi-la antes que não fosse muito tarde, como se estivesse subitamente "ausente", em um estado de estupor total. Que se passou? Foi sua mulher que o seduziu, como alega em seguida? Deus parece repreendê-lo a princípio: "Por que escutaste (obedeceste a) voz de tua mulher" (Gen 3,17). Toda uma tradição misógina se tomou desta "desculpa" do Homem e desta reprimenda de Deus para dar a Mulher, de geração em geração, a etiqueta de "tentadora".