====== Boosco Deleitoso I-X ====== BOOSCO DELEITOSO — PARTE I — CAPÍTULO X 86. Quando isto disse o meu guiador, logo a dona espantosa começou seu falamento nesta guisa: — Como quer que a mim não seja mesura adiantar-me a esta donzela, que é mais alta e mais poderosa que eu, porém, pois que vós sois espírito celestial por que o Senhor obra a sua vontade, porém praz a mim de fazer o que vós dizeis; e se aí advém alguma desensinança, o engano será vosso. 87. E ditas estas palavras, tornou a dona espantosa os seus olhos contra mim com mui fero olhar, e começou a dizer nesta guisa: Ó homem mesquinho, comprido de muitas mesquinharias, em quantas coisas ofendeste e assanhaste o Senhor Deus! Ó homem aborrecido ante Deus e sem proveito, muito sobre-abunda a tua maldade e arrefeceu a caridade em ti! E toda a tua vida é cheia de pecados e apodreces em teu esterco. Tu és cheio de inveja e de homicídios, ao menos de vontade; tu és cheio de contendas e de enganos e de mazelas; tu és escarnecedor e miserador e profanador; tu estás em ódio de Deus, tu és injurioso, tu és soberboso e levantado, achador de males, sem siso e sem ensinança e sem boa afeição e sem misericórdia. 88. Para mentes como todo o mundo, especialmente as cidades e as vilas em que tu vives, são cheias de tiranos e de perjuros e de simoníacos e de hipócritas e de cobiçosos de honras e de riquezas, e de roubadores e de forçosos e de usurários e falsários e de cruéis sem piedade, e de sacrílegos e de traidores e de mentirosos e de fagueiros e louvaminheiros e enganadores, e de palradores e de guias e bêbados e de adúlteros e luxuriosos de toda maneira de luxúria, e de preguiçosos e vãos e estragosos, e de sanhudos e sem paciência e de feiticeiros e agoireiros e perjuros, e de presunçosos e de todos homens envoltos em todos os pecados. 89. Mas certamente eles falecerão e se sumirão assim como fumo; e assim como se derrete a cera diante da face do fogo, assim perecerão os pecadores diante da face do Senhor Deus. E tu, pois que tal és como eles e moras com eles, perecerás para sempre. E sairá de ti o teu espírito e tornarás em terra, e naquele dia perecerão todas as tuas cogitações. Erraste da carreira da verdade, e portanto o lume da justiça não te alumiou; e quando a tua alma sair do teu corpo, espantoso temor haverás e dirás aos montes que caiam sobre ti, e aos outeiros que te cubram da ira do Senhor. 90. Então farás penitência para sempre em pena, mas não acharás perdão. E isto é justa coisa e direito juízo, pois que tu não quiseste fazer penitência e haver perdão quando puderas, que não possas quando quiseres; que o Senhor Deus te deu lugar de penitência e tu usaste mal de ti e do tempo que te deu. E porém o fogo do inferno te destruirá, fogo que sempre arde e nunca luz; sempre te queimará, e nunca te consumirá, e sempre te atormentará e nunca falecerá nem será apagado, que o inferno há mui grande escuridade, que maior não pode ser, e crueldade de tormentos infindos, e mesquinharias sem conto perduráveis. 91. Ali padecerás penas em cada um de teus membros, por que pecaste; e então desejarás morte, e não a poderás haver. Tu, mesquinho, que perdeste a vida, não te enganes nem te afagues, dizendo que o Senhor Deus não será irado para sempre, pensando que a pena do inferno haverá fim. Eu te digo que não tomes vã esperança, dizendo que os amercamentos de Deus são sobre todas suas obras, e quando for sanhudo não se esquecerá da misericórdia, que não há ódio a nenhuma coisa das que Ele fez, e que o homem peca por tempo e porém Deus não dará pena por sempre. 92. Ó pecador, que vã esperança é esta e que falsa presunção? Não creias isto, nem sejas enganado por tal erro, que sei certo que o inferno não há nenhum remimento... Mas verdade é que, nesta vida, posto que Deus seja sanhudo àqueles que hão de ser salvos, não lhes será irado por sempre; mas é irado contra eles, castigando-os como pai a filhos por algum tempo, para os corrigir. Mas aos danados é irado por sempre. Dize-me, tu, pecador, porque recontas as justiças de Deus e tomas o seu testamento em tua boca? Que tu houveste ódio à disciplina e rejeitaste a ensinança e o castigo, e lançaste trás ti as palavras do Senhor. Tu amaste a malícia mais que a bondade, e porém o Senhor Deus te destruirá no fim dos teus dias, e arrancar-te-á da vida do mundo e fazer-te-á sair deste corpo em que moras, e tirar-te-á da terra dos viventes, e a tua glória será no inferno, e para sempre não verás o lume e a luz celestial. 93. Quando eu, mui mesquinho pecador, estas palavras ouvi tão espantosas, não ficou em mim siso nem força, nem soube que dizer; porém esforcei-me e disse: — Ó Senhor Deus, eu padeço força: tu responde por mim. Que direi ou que responderei? Que eu mesmo fiz tudo isto, que diz esta dona. Senhora, livra a minha alma, que não seja perdida, que o inferno não dará a ti confissão de louvor nem a morte perdurável não te louvará, mas os vivos em vida perdurável te louvarão sempre. 94. Senhor, deixa-me e atende-me para eu chorar os meus pecados, por tal que não vá àquela terra trevosa e coberta de escuridade da morte, terra de mesquinhade, onde há espanto e tormento perdurável. Senhor, não te lembres das minhas maldades antigas, mas a tua misericórdia me arrebate cedo, que muito sou feito pobre e minguado de todo bem. 95. Ajuda-me, Senhor, que a minha vida guerra e batalha é sobre a terra, porque inimigos de muitas guisas não ficam de me assediar de cada parte, para me tomar, e perseguem-me para me matar; estes são os demônios e os homens e o mundo e a carne, que lidam fortemente contra mim. O diabo, meu adversário assim como bravo leão, não fica de cercar, buscando alguém que destrua; este acende os seus dardos de fogo contra mim. A morte da alma entra pelas frestas dos sentidos do meu corpo, e os meus olhos roubam a minha alma. 96. Mas tu, Senhor, que és esplendor da luz perdurável, que és todo-poderoso, vem a mim com a tua graça e tira-me do cárcere em que jazo preso e sou em sombras de morte. Senhor, amerceia-te de mim por ti mesmo e envia a tua misericórdia sobre mim. Salva-me, Senhor, que as águas das tormentas dos pecados entraram até a minha alma e a tempestade do mundo me alagou. Livra-me, Senhor, da profundeza do lago; que o poço das minhas maldades não tape a boca sobre mim, em guisa que não possa sair, que a tua misericórdia é mui benigna.