Discalceatio

JEAN DANIÉLOU — PLATONISMO E TEOLOGIA MÍSTICA

DISCALCEATIO
A existência com efeito de um rito de «discalceatio» nas cerimônias antigas do batismo, parece hoje em dia confirmada por estudos. O candidato devia se apresentar de pés nus ao banho batismal. E era o batizador que devia desamarrar seus sapatos. Este rito foi explicado simbolicamente mais tarde pelos escritores eclesiásticos que viram nos sapatos um símbolo de mortalidade. Durante a oitava que seguia o batismo, os neófitos deviam portar sapatos: aqueles de couro parecem ter sido interditados e substituídos por outros considerados mais puros. O que reforça esta hipótese, é que estamos aqui em presença de uma sobrevivência de um uso cultural anterior ao cristianismo. Encontra-se no neopitagorismo. Dá um sentido muito mais preciso à palavra de João Batista ao Cristo: «Eu não sou digno de desatar os cordões de tua sandália» (Jo 1,27), que significaria então: «Eu não sou digno de te batizar».

Dölger apoia sua demonstração sobre dois textos. Um é uma passagem de Pedro de Laodiceia em seu comentário sobre São Lucas (III,5), o outro um texto de Clemente de Alexandria: «É preciso que aquele que purifica desate a alma do corpo e de seus pecados como o pé de sua ligadura» (Stromata V,8,55). Mas não se dá conta de um texto muito mais explícito ainda — e que é precisamente de Gregório de Nissa. Trata-se da passagem do Cântico: «Despojei minha túnica. Como a revestirei de novo? Lavei meus pés. Como os sujarei?» (Cântico, V,3). É notável que o tema da túnica e aquele dos sapatos estejam reunidos na mesma passagem. Gregório comenta assim o primeiro: «A alma fez o que lhe dizia em se despindo da túnica de pele da qual ela tinha sido envelopada depois do pecado… Por aí ela abriu a entrada de sua alma ao Verbo, em tirando o véu de seu coração, quer dizer a carne. Por carne, entendo o homem velho que devem despojar aqueles que querem lavar no banho do Verbo os pés de sua alma. Em seguida uma vez o Verbo introduzido nela, a alma se faz uma vestimenta, segundo a prescrição do Apóstolo que convida aquele que se despojou da vestimenta da carne, quer dizer o «homem velho», a revestir uma túnica criada segundo Deus na verdade e na justiça. E esta túnica, ele diz que é Jesus… Pois a Esposa se engaja a não mais retomar a túnica retirada, mas a se contentar da única túnica que revestiu pela regeneração do batismo (XLIV).

Este texto é decisivo para o que trata do sentido batismal do tema da túnica. Aí encontramos agrupados todos os harmônicos que o compõem. A túnica depositada ao batismo é expressamente posta em relação com as «túnicas de pele» do Gênesis por um lado e com o «homem velho» paulino por outro. O paralelismo é portanto inteiramente entre o batismo e a ascese. E por outro lado a túnica nova dada ao neófito é posta em relação com a doutrina paulina do «revestimento de Jesus Cristo». Assim toda a vida espiritual enquanto é despojamento do homem antigo e revestimento do Cristo é o desenvolvimento do mistério batismal. O sentido batismal se revela em outros detalhes ainda: deve-se despojar a túnica antes de lavar a alma, é certamente a ordem mesma do rito, e o tema da ablução é uma alusão precisa. Enfim a recomendação de guardar a túnica batismal se exprimia no simbolismo das vestimentas brancas guardadas durante a oitava pascal.

Mas Gregório continua: «Assim depois de ser lavado os pés, ela não quer mais os sujar de novo com terra. Não se diz com efeito que Moisés, quando retirou de seus pés, sob a ordem de Deus, seu envelope feito de pele para avançar sobre a terra santa da Iluminação, os repôs em seguida em suas sandálias… Eis porque também o Senhor interditou as sandálias aos discípulos, quando lhes ordenou a avançar na via santa… Também quando está nesta via santa — aqueles que nela marcham, o Senhor lhes lava os pés com a água e os enxuga com o linho de que se cinge — a Esposa que anda com os pés nus está atenta a ela mesma, com medo de sujar seus pés com a lama. Compreendes bem que tudo isto que aqui é dito nos mostra que a alma uma vez que tenha se desfeito de suas sandálias pelo batismo — é com efeito o próprio do batizador de desatar os laços das sandálias, como João testemunhou não poder o fazer para o Senhor — lavou seus pés, tendo depositado com suas sandálias toda a sujeira terrestre».