Simone Pétrement — O Deus Separado
O Deus “Homem”
Os teólogos às vezes falam de um mito gnóstico do “Homem”, como se houvesse um simples mito, o mesmo para todos os sistemas gnósticos e este pudesse ser claramente definido. O nome de Homem (Anthropos) é às vezes dado a uma pessoa divina, às vezes a outra. Às vezes é a primeira pessoa da Trindade que é o Homem, às vezes a segunda, às vezes ambas, e o nome pode ser dado a Ennoia, que é o Espírito, embora seja uma figura feminina. Ou pode ser dado a um dos eones do Pleroma, ou seja, para uma das entidades que são atributos divinos, em Valentino, e tipos de hipóstases emanadas de Deus em seus discípulos. Por vezes se tem a impressão de um simples protótipo ideal do homem terrestre, ou sua essência mais interior.
tentou reunir todas estas especulações sobre o Homem em um único mito, e ainda mais, associar este mito com especulações fora do Gnosticismo e da Cristandade. Relacionou com o mito iraniano de Gayomard e o mito hindu de Purusha. Sua estrutura é instável e as associações entre diferentes partes do todo são tênues.
De acordo com e teólogos de sua escola o mito do homem seria aproximadamente o seguinte. No princípio do tempo, uma entidade divina e luminosa, chamada Homem Original ou o Primeiro Homem, ou simplesmente Homem, desceu ou caiu dentro do reino dos poderes da escuridão, ou seja, dentro do mundo ou dentro da matéria. Estes poderes apreenderam o divino Homem. De acordo com algumas versões do mito, este homem é em parte salvo; ajudado por outras entidades, ele reascende ao reino da luz; mas algo de sua essência deve ser retido pelas sombras. De qualquer modo, seja salvo ou permanecendo prisioneiro, os poderes da escuridão qubram em pedações a substância luminosa que foram capazes dele tirar, se maneira que os fragmentos de luz divina habitam dispersos e aprisionados no mundo inferior. Estes fragmentos de luz são as almas dos seres humanos. Os poderes de escuridão buscam fazê-los esquecer sua origem de modo a retê-los entre eles. Mas deus tem piedade destas almas e os envia um salvador para relembrá-los de sua origem e de sua dignidade, de maneira que possam de novo reunir-se e ascender à luz. O Salvador é essencialmente idêntico ao primeiro Homem, seja porque a parte do primeiro Homem que foi salvo reaparece nele ou simplesmente porque é da mesma essência. Graças ao “conhecimento” que o Salvador os ensina, as almas se liberam elas mesmas do mundo ou da matéria e em se reunindo elas mesmas , reascendem em direção a sua origem. Quando todos os fragmentos de luz tiverem assim se liberado e se coligido juntos, a inter-mistura de escuridão e a luz chegará a um fim, o Homem divino e o reino de luz terá sido restabelecido em sua integridade, enquanto a escuridão cairá em seu estado primitivo.
Este mito é de fato retirado do Maniqueismo, onde no mito do Primeiro Homem encontram-se todos estes elementos. reconhece esta procedência e sugere que no Gnosticismo a figura do Homem que caiu na matéria foi substituída pela figura de Sophia, a Mãe.
No Gnosticismo encontram-se especulações tratando seja do Homem (Anthropos), pensado como um ser divino; o Primeiro Homem (Proanthropos, Protos Anthropos); às vezes o Homem original (Archanthropos); ou o Homem perfeito (Teleios Anthropos); o Homem essencial (Anthropos ousiodes); o Homem imortal; o Homem de luz; o Homem verdadeiro; o Homem vivente; etc.
“Homem” como um Nome do Pai
Como explicar a denominação de Homem dada a Deus Pai (surpreendente e inexplicável pela cristandade). O Filho, o mensageiro, o Salvador foi chamado Homem, o que é natural pois apareceu como homem. No entanto, uma das ideias fundamentais gnósticas era que o homem reconheceu ele mesmo nele (o Salvador), no sentido que no Salvador viu sua própria origem e destino. “Vejam, o Senhor é nosso espelho. Abram seus olhos, olhem para eles nele, e saibam os traços de suas faces”. No NT também razões podem ser encontradas para associar o nome do Homem com Cristo. Introduzindo ele, Pilatos diz: “Vejam o homem” (Jo 19,5). O nome “Filho do homem”, que parece se atribuir a ele mesmo, não significa simplesmente “homem” em hebraico e aramaico? Este significado parece ter sido esquecido muito cedo, mas estava la nos primórdios do cristianismo. Resta portanto compreender porque se usaria “Homem” como referência à Deus o Pai.
Bousset não dá uma explicação suficiente. O fato do Filho ser denominado Homem não justificaria que o Pai o fosse, embora o Filho nos tenha revelado o Pai.
A explicação de Schenke parece ser melhor, sem convencer. Combinação de dois fatores: a doutrina gnóstica sustenta a essência divina no interior do homem, sendo Deus da mesma essência que o homem; por outro lado, o relato do Gênesis à luz desta concepção, reforça a noção de “à imagem de Deus”, portanto de Deus como protótipo da humanidade, Homem por excelência.
Crítica da explicação de Schenke: os gnósticos afirmam que o corpo humano foi criado pelos Arcontes, à semelhança da imagem luminosa que apareceu para eles, e assim interpretam o Gênesis. Para os gnósticos não é no corpo nem na alma distinta do espírito, que a verdadeira semelhança, a profunda identidade da humanidade com Deus pode ser encontrada. O que há de divino no homem, pelo menos em certos indivíduos algumas vezes, entrou no corpo como algo estranho, “estrangeiro”. Na Kephalaia do Maniqueismo lê-se que em formando Adão os Arcontes copiaram a imagem de um ser divino, mas não sucederam em copiá-la de verdade. Os gnósticos enfatizam uma teologia negativa: deus é incorpóreo, invisível, sem forma, inapreensível, inconcebível, inominável, e assim por diante. Os gnósticos afirmam que o que há de verdadeiramente divino no homem foi enviado para dentro de um corpo que a princípio não o continha; o “fazimento” (plasis) deste corpo não os interessava tanto quanto este divino no homem e seu reconhecimento para salvação.
Os gnósticos reconheciam que o homem tinha “por natureza” um elemento divino? Não parece ser o caso, pois distinguem diferentes tipos de seres humanos, dentre os quais, Valentino reconhecia alguns salvos “por natureza”, pois tinham uma centelha divina neles, mas outros perdidos por natureza ou pelo menos obrigado a um grande esforço para se salvar. Para os gnósticos a natureza humana não foi sempre e em toda parte possuidora de algo do divino. É preciso reconhecer que a referência Homem aparentemente dada a Deus Pai, ocorre sempre junto com o uso de Filho do homem.
Nos escritos gnósticos não se dizem que Deus é o homem, mas ao invés que “seu nome” é Homem, que ele é “nomeado” Homem. Nestes escritos há grande relação desta “nomeação” de Deus como Homem, e o Filho do homem. O salvador, de acordo com Valentino, “é originário dos doze eones que nasceram do Homem, e é por isto que ele se chama a si mesmo Filho do Homem, como sendo originário do Homem”.
O “Filho do homem” nos Evangelhos
VIDE Evangelho Filho do homem
Pode sua citação nos evangelhos implicar no mito gnóstico do Homem divino? É o que defende Reitzenstein e outros, mas que não tem fundamentação adequada.
O uso de Filho do homem por Cristo refere-se à visão de Daniel, segundo vários exegetas. No primeiro ano de Belsazar, rei de Babilônia, teve Daniel, na sua cama, um sonho e visões da sua cabeça. Então escreveu o sonho, e relatou a suma das coisas. Falou Daniel, e disse: Eu estava olhando, numa visão noturna, e eis que os quatro ventos do céu agitavam o Mar Grande. E quatro grandes animais, diferentes uns dos outros, subiam do mar. O primeiro era como leão, e tinha asas de águia; enquanto eu olhava, foram-lhe arrancadas as asas, e foi levantado da terra, e posto em dois pés como um homem; e foi-lhe dado um coração de homem. Continuei olhando, e eis aqui o segundo animal, semelhante a um urso, o qual se levantou de um lado, tendo na boca três costelas entre os seus dentes; e foi-lhe dito assim: Levanta-te, devora muita carne. Depois disto, continuei olhando, e eis aqui outro, semelhante a um leopardo, e tinha nas costas quatro asas de ave; tinha também este animal quatro cabeças; e foi-lhe dado domínio. Depois disto, eu continuava olhando, em visões noturnas, e eis aqui o quarto animal, terrível e espantoso, e muito forte, o qual tinha grandes dentes de ferro; ele devorava e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele, e tinha dez chifres. Eu considerava os chifres, e eis que entre eles subiu outro chifre, pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava grandes coisas. Eu continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e um ancião de dias se assentou; o seu vestido era branco como a neve, e o cabelo da sua cabeça como lã puríssima; o seu trono era de chamas de fogo, e as rodas dele eram fogo ardente. Um rio de fogo manava e saía de diante dele; milhares de milhares o serviam, e miríades de miríades assistiam diante dele. Assentou-se para o juízo, e os livros foram abertos. Então estive olhando, por causa da voz das grandes palavras que o chifre proferia; estive olhando até que o animal foi morto, e o seu corpo destruído; pois ele foi entregue para ser queimado pelo fogo. Quanto aos outros animais, foi-lhes tirado o domínio; todavia foi-lhes concedida prolongação de vida por um prazo e mais um tempo. Eu estava olhando nas minhas visões noturnas, e eis que vinha com as nuvens do céu um como filho de homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e foi apresentado diante dele. E foi-lhe dado domínio, e glória, e um reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal, que não será destruído. (Daniel 7,1-14)
Pétremente discorre longa crítica que visa afirmar que a referência a “filho do homem” em Daniel é de fato uma simples referência a “homem” em oposição às quatro “bestas”; ou seja, nada de transcendente, celestial, divino, ser unicamente glorioso. Daniel identifica sue destino com o do Filho do homem, e sua divindade seria assim também a de Daniel. No entanto para os evangelistas o Filho do homem é definitivamente o Cristo.