O último tema que destacamos para comparação é a relação entre o Ser e os entes em Heidegger e entre Deus e as criaturas em Meister Eckhart. Assim, ao lado da analogia central de proporcionalidade — Deus: alma :: Ser: Dasein — existe outra analogia que é quase tão importante — Deus: criaturas :: Ser: entes.
É importante indicar imediatamente o sentido em que esta analogia não se aplica, a fim de evitar mal-entendidos sobre o sentido em que ela se aplica. Para Heidegger, o Ser é sempre o Ser dos entes, e os entes devem ser sempre tomados em seu Ser (GA9, 26-7). Ser não possui uma realidade independente e separada. Se assim fosse, tornar-se-ia “um ente”, talvez o mais real de todos (ens realissimum), o ente mais elevado, mas mesmo assim um ente. O testemunho mais interessante disso é a famosa alteração que Heidegger fez no texto de O que é metafísica?, apontada pela primeira vez por Max Mueller. Na edição de 1943 de O que é metafísica?, é acrescentado um “Epílogo” que contém a observação :
… pertence à verdade do Ser que o Ser pode de fato (wohl) “ser” (west) sem entes, (mas) que um ente nunca é sem Ser. (ênfase nossa)
Mas na Quinta Edição, na qual Heidegger acrescenta um importante “Prólogo”, a mesma frase é modificada da seguinte forma – sem o reconhecimento da mudança por parte do autor:
… pertence à verdade do Ser que o Ser nunca (nie) pode “ser” (west) com entes, que um ente nunca é sem Ser. (ênfase nossa) (GA9)
A emenda, mesmo que não reconhecida, é bem-vinda e está de acordo com tudo o que Heidegger havia dito anteriormente sobre a relação entre Ser e entes. O texto original, uma afirmação muito enganosa que não surpreende ver Heidegger correto, parece ter significado que a “iniciativa”, por assim dizer, pertence a Ser no processo pelo qual Ser acontece nos entes. Ser acontece nos entes, mas como isso acontece depende inteiramente do “avanço” ou “retirada” do Ser ele mesmo. A versão corrigida deixa claro que seria um erro “hipostatizar” Ser por causa disso, para permitir que subsista à parte dos entes.
Mas, por outro lado, é precisamente essa auto-subsistência que Eckhart atribui a Deus, que, como dissemos, pode ser considerado uma espécie de um ens separatissimum. Para Eckhart, Deus é um criador transcendente e causa primeira que está acima de ser, isto é, da criação, e que poderia muito bem subsistir sem a criatura da qual Ele é absolutamente distinto. Se a relação de Deus com as criaturas em Eckhart fosse assimilada à relação do Ser com os entes em Heidegger, então a transcendência absoluta de Deus seria destruída e a Inquisição teria acertadamente acusado Eckhart de heresia. Eckhart não veria necessidade alguma de alterar a primeira versão do “Epílogo” de Heidegger; pois Deus pode “de fato subsistir” (wohl west) sem criaturas, embora as criaturas não possam ser sem Deus.
Contudo, Eckhart colocou a maior ênfase na imanência de Deus dentro das criaturas, ou melhor, das criaturas dentro de Deus. Pois Deus cria todas as coisas, não para que elas “fiquem fora de Si mesmo ou ao lado de Si mesmo ou além de Si mesmo”, mas para que elas “habitem em Si mesmo” (LW, II, 161-2). Ao trazer uma criatura à existência, ele a traz para dentro de Si mesmo, pois “Ser é Deus”. O que isto significa, como vimos, não é o panteísmo, mas uma doutrina da dependência radical de todas as coisas em relação a Deus, que enfatiza que uma criatura “por si mesma” não é nada. Ora, esta metafísica tem uma influência muito importante nos ensinamentos místicos de Eckhart. Ele enfatiza aos ouvintes de seus sermões a necessidade que temos de “encontrar Deus em todas as coisas”. Ele diz que para o coração desapegado todas as criaturas têm gosto de Deus, enquanto o homem mundano nada saboreia nas criaturas, exceto algo criado (Q, 230,17-9/Serm.,150; 272,4-9/Serm., 183). Isto, mostraremos, é profundamente parecido com a insistência do próprio Heidegger em que encontramos Ser ele mesmo nos entes e com a sua crítica do pensamento que compreende entes – e nada mais.
Eckhart e Heidegger apontam para perigos semelhantes. Eckhart nos adverte contra o espírito mundano que separa as criaturas “em si mesmas”, de Deus. Heidegger nos alerta não contra o mundanismo, mas contra a metafísica:
Na medida em que representa sempre os entes como entes, a metafísica nunca pensa no próprio Ser. (GA9, 8/207)