Destinação divina da vontade (§§11-12) [RSME:83-88]

Assim como um homem desapegado está repleto de conhecimento não mais abstrato e por representações, mas essencial e pela posse de ideias, assim também quem sofre sem se apegar ao seu sofrimento, Deus carrega seu fardo e o torna leve e doce para ele.


tradução

Os dois parágrafos seguintes, dedicados à vontade, são visivelmente modelados nas passagens que tratam do intelecto. Eles repetem até as palavras o conteúdo dos parágrafos 8 a 10, para que os dois desenvolvimentos possam ser colocados em paralelo…

Se passarmos agora a listar as sentenças que não encontraram lugar em uma ou outra coluna, notamos o seguinte: em relação ao intelecto, os elementos originais, sem equivalente do lado da vontade, são a reciprocidade de gerar e a teoria do “agora” em que se realiza o desapego: os dois pontos decisivos em torno dos quais se organiza todo o sermão.

Do lado da vontade, por outro lado, não há nenhum elemento novo, a não ser alguma variação nas expressões e o longo desenvolvimento do décimo segundo parágrafo sobre o sofrimento, uma espécie de ampliação oratória em relação ao final do décimo primeiro parágrafo. Em outras palavras, Mestre Eckhart apenas cita a vontade de ser inteiro em sua apresentação. O problema do arranjo dos dois poderes da alma, intelecto e vontade, questão discutida à saciedade nas escolas, não despertou nenhum interesse particular de sua parte. Não há nele nenhum vestígio de um pensamento pessoal sobre a vontade. Os termos que ele usa neste domínio são emprestados sem exceção da apresentação sobre o intelecto, e não correspondem originalmente a uma epistemologia da vontade. É precioso ter notado desde já esta falta de aprofundamento, nele, da relação entre o intelecto e a vontade; de fato, observa-se sobre esse assunto expressões flutuantes, até mesmo contraditórias, ao longo de seus sermões.

Esta passagem sobre o sofrimento é franca: o sofrimento, diz Eckhart, pode ser transformado em alegria e prazer, desde que se sofra por Deus e não por amor próprio. — Olhando de perto, esta observação também deve ser comparada com uma afirmação sobre o intelecto. Assim como um homem desapegado está repleto de conhecimento não mais abstrato e por representações, mas essencial e pela posse de ideias, assim também quem sofre sem se apegar ao seu sofrimento, Deus carrega seu fardo e o torna leve e doce para ele. Desapegar-se da própria dor significa: não considerá-la como sua, mas como assumida pelo próprio Deus. Tanto quanto qualquer bem material ou cultura, pode-se de fato possuir ciosamente a própria dor. A comparação, portanto, continua da seguinte forma:

conhecimento ligado às representações; todas as coisas são mantidas “essencialmente” no intelecto, em suas ideias; conhecimento por desapego. o sofrimento com apego que “é pesado para você suportar”; “você sofre por amor de Deus”; este sofrimento “não é pesado nem pesante para você”.

No caso do sofrimento como no do conhecimento, Deus assume o que o homem consente em abandonar; dá-lhe felicidade e conhecimento, fora de proporção com o sofrimento e as “imagens” que ele deixou para trás. — Somente tal interpretação segundo o ritmo “tudo deixar — tudo receber”, aplicado já acima à análise do conhecimento, justifica, aliás, a citação um tanto improvisada do texto do Evangelho de Lucas que ocorre no final da passagem. O ensinamento de Eckhart seria então este: não basta receber passivamente o sofrimento como uma “virgem”, livre de todo apego, mas também é preciso renascer. Deus não é apenas um consolador, não é mais o “porquê” do sofrimento, mas dele se torna o sujeito. A condição de possibilidade de tal transferência é precisamente a natureza divina da vontade que, como a do intelecto, se realiza à medida que a transferência ocorre. O ser que é “mulher” entrega a Deus o sofrimento que lhe foi confiado. Deus então o carrega e o preenche de alegria e prazer.

Este último paralelismo nos confirma que, no que diz respeito à vontade (à qual a antropologia escolástica liga o sofrimento), Eckhart simplesmente retoma as expressões menos comprometedoras de sua doutrina do intelecto. Suas fórmulas mais audaciosas são lidas em um contexto de filosofia do intelecto, que ele pouco se importa em contradizer de um estudo da vontade.

Finalmente, esse paralelismo talvez mostre que os sermões de Mestre Eckhart não são confidências um tanto desordenadas feitas diante de um público feminino e que seria errado querer analisar em detalhes. Se o texto publicado pela edição crítica é aquele que o pregador realmente proferiu, o que parece comprovado, então devemos concluir que Mestre Eckhart construiu seus sermões com rigor. De que outra forma esses lembretes de um parágrafo para outro seriam explicados? Qualquer que seja a suposição de que este sermão seja uma compilação posterior, feita pelo próprio Eckhart, é certo que estamos lidando com um texto “trabalhado”, cuidadosamente construído, com ocasionais exclamações do tipo que encontraremos imediatamente depois: “Se você pudesse apreender isso com o meu coração, você entenderia claramente o que estou dizendo, pois é verdade, e a própria verdade o diz”. »

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