Definição do homem pela Preocupação [Sorge]? [MHSV]

Tal é a situação crucial de que resulta a polêmica apaixonada dirigida pelo cristianismo contra a Preocupação. Que os homens tenham de se preocupar com os bens necessários à sua existência, certamente não é o que é condenado por Cristo. A brevíssima oração a Deus cujos pedidos ele mesmo formulou não fala do “pão de cada dia” (pedido que assume hoje um tom menos arcaico do que afirmavam certas pessoas há não muito tempo)? Como, aliás, celebrar a vida sem pôr no lugar mais alto suas necessidades, até as mais elementares? A crítica da Preocupação não pode ser compreendida, na realidade, se não for referida às pressuposições fundamentais do cristianismo concernentes à Verdade. Recusar a definição de homem pela Preocupação é afastar a redução da fenomenalidade à do mundo e, por via de consequência, a definição do homem como “ser no mundo”. Que o homem não seja inicialmente Preocupação e não tenha de se comportar como tal resulta diretamente da tese segundo [205] a qual, enquanto Filho, ele tem sua essência na Vida. Pois, na Vida, não há nenhum mundo, nenhum lugar para uma preocupação, que se projeta sempre “lá fora”, não se preocupando nunca com nada além daquilo que é outro e só se preocupando consigo mesma como com algo outro. “A rosa [que designa metaforicamente a Vida] não tem preocupação consigo mesma”, diz um verso famoso de Angelus Silesius.1 Ela não tem preocupação consigo mesma porque não se relaciona nunca consigo na distância de um mundo, no “lá fora” de um ver. “A rosa não tem preocupação consigo mesma nem deseja ser vista”, prossegue o texto. A vida, que vive conforme à essência da Vida nela, afastou no princípio a possibilidade mesma da Preocupação, bem como a de tudo com que a Preocupação se preocupa.

Essa correlação entre o afastamento da Preocupação e a definição do homem como Filho se exprime na oposição estabelecida pelo cristianismo entre dois homens. De um lado, o homem do mundo que só se preocupa com o mundo e que só o pode fazer, todavia, sobre o fundo de sua essência previamente concebida como “ser no mundo”. Do outro lado, o homem que não é do mundo porque, Filho da Vida, se encontra originariamente determinado em si mesmo pelo acosmismo desta. A oposição entre esses dois homens não reside antes de tudo numa diferença de comportamento, mas nas estruturas fenomenológicas a que eles se referem. Não são os fatos e os gestos de alguns o que os leva a odiar os que se comportam diferentemente. E sua própria natureza – a pertença ao mundo na Preocupação – o que o faz levantar-se contra os Filhos da Vida, os quais pedem à Vida e somente a ela os princípios tanto de seus atos como do que sentem e experienciam. “… Mas o mundo os odiou, porque não são do mundo, como eu não sou do mundo” João 17,14).


  1. Le Pélerin Chérubique. Description Sensible des Quatre Choses Dernières. Livro Primeiro, dístico n. 289.