PRIMA PHILOSOPHIA —Alain de Libera
Excertos de “Filosofia Medieval”
2. A filosofia árabe e o nascimento da metafísica “peripatética” — A tradução latina da Metafísica do Shifa, sob o título de Liber de Philosophia prima sive scientia divina, marca o início de uma nova idade da metafísica, o peripatetismo, que se prolonga com a difusão dos comentários de Averróis.
Do século XIII ao XV, o pensamento metafísico latino é dominado pela interpretação árabe de Aristóteles. A predominância da versão árabe do aristotelismo é atestada na Idade Média pela persistência do debate sobre o próprio objeto de estudo da metafísica como ciência: deve-se dizer, com Avicena, que o objeto de estudo da metafísica é o ser enquanto ser (ens inquantum ens), mas que lhe cabe provar a existência de Deus, ou deve-se sustentar, com Averróis, que cabe à física demonstrar a existência de um Deus Primeiro Motor, interessando-se a metafísica unicamente pelo estudo da substância?
A historiografia contemporânea atribui um lugar importante à tese de Heidegger segundo a qual a filosofia primeira de Aristóteles não considera somente “o ente em sua entidade”, mas “considera ao mesmo tempo o ente que, em pureza, corresponde à entidade: o ente supremo”, o “divino”, o “Ser”.
“A filosofia primeira é, enquanto ontologia, ao mesmo tempo a teologia do verdadeiramente ente. Para ser mais exato, deveria ela chamar-se teiologia. A ciência do ente como tal é em si onto-teológica” (“Hegel et son concept de l’expérience” in Chemins qui ne mènent nulle part, trad. Brockmeier, Paris, Gallimard, p. 161).
Para um medievalista, essa caracterização da essência da metafísica “aristotélica” vale de fato principalmente como uma das interpretações latinas de Avicena, que se impôs na Escola, e que, através da neoescolástica do século XIX, impregnou decisivamente a visão heideggeriana da metafísica: o scotismo. De fato é em Duns Scot, leitor de Avicena, e não no próprio Aristóteles, que a metafísica é apresentada como uma ciência que tem como objeto comum o ente, e como objeto eminente Deus, tese apoiada por um certo número de princípios de origem “aviceniana”, transpondo a teoria da “indiferença da essência” para o nível daquela do conceito de ens.
O conceito escotista do ser (ente, ens) unívoco a Deus e à criatura (Ordinatio, I, 3, 1-3) faz do ente, simultaneamente, o “primeiro conhecido” e o “primeiro objeto adequado do intelecto” — conceito de si distinto de seus inferiores (como o infinito e o finito) mas contido era cada um deles, e cuja univocidade ou identidade funda a metafísica, como ciência do ente, e a teologia, como ciência do Ente infinito, no “estado presente” da história da Salvação (pro statu isto), isto é, como teologia para nós, distinta da teologia em si, cujo objeto de estudo seria e é a própria essência divina. Essa problemática do conceito unívoco de ser, que num sentido “ultrapassa” ao mesmo tempo a questão “greco-latina” da “transferência” das categorias in divinis e a problemática aristotélica autêntica da multiplicidade dos sentidos do ser, não pode valer como paradigma da “constituição originariamente ontoteológica” da “metafísica” herdada de Aristóteles: basicamente cristã, ela está também essencialmente ligada à história do avicenismo, sem aliás esgotá-la inteiramente. Além disso, o pensa mento de Avicena não é a antecipação da tese da univocidade do ser: ao contrário, o conceito propriamente aviceniano do ser é um conceito analógico. A controvérsia medieval sobre “Avicena e Averrois” refere-se. aliás, tanto às suas concepções respectivas da analogia quanto ao seu recorte do objeto de estudo da metafísica.
A influência da metafísica aviceniana ultrapassa os limites do “avicenismo latino” do século XII (representado pela obra de Gundissalvi, pelo Liber de intelligentiis, e o Liber de causis primus et secundis); além de sua especificação do objeto de estudo da metafísica e do lugar que atribui a Deus no dispositivo geral do discurso sobre o ser, a distinção — de origem farabiana — entre a essência (res) e a existência (ens), a teoria da indiferença da essência (o esse essentiae), a doutrina dos três estados do universal (ante multitudinem, post multitudinem, cum multitudine), a teoria da intencionalidade (intentiones animae) e a ligação que ela instaura com a psicologia e a cosmologia (teoria do “Doador das formas”, Dator formarum, segundo a expressão de al-Ghazali) fundam ou instrumentam muitos projetos filosóficos dos séculos XIII e XIV — entre os quais, naturalmente, a corrente dita do “agostinismo avicenizante” (Gilson), representada por Guilherme de Auvergne e Roger Bacon.
Na medida em que o modelo averroísta da metafísica como ousiologia, ciência da substância enquanto substância (Metaf., XII, com. 5) dá um lugar a Deus, considerado como substância suprema, isto é, como causa formal e causa final de todas as outras substâncias, inclusive “da substância separada e eterna que é o princípio da substância natural engendrada e corruptível”, a metafísica de Averrois pode, não menos que a de Avicena, ser apresentada como uma “teiologia”. Entretanto, sendo o Deus averroísta pensado como Primeiro Motor, parece mais pertinente sublinhar a orientação mais aristotélica do peripatetismo de Averrois.
Contrariamente ao que sugere a organização androniciana do corpus da Metafísica, Aristóteles não hesita entre uma interpretação ontológica e uma interpretação teológica da filosofia primeira. Trata-se, para ele, de determinar qual é, entre as ciências “teoréticas”, a “ciência universal porque primeira” (Metaf., VI, 1), e ele decide pela teologia em detrimento da física, concluindo que cabe à teologia enquanto “ciência da substância imóvel” estudar a essência e os atributos do ser enquanto ser.
Fazendo da teoria da substância o verdadeiro objeto de estudo da metafísica, Averróis concorda pois com o propósito central de Aristóteles. A definição aristotélico-averroísta da filosofia primeira como teologia da substância imóvel comandando uma teoria do ser enquanto ser não basta, entretanto, para isolar uma corrente especificamente “averroísta”: no De aeternitate mundi, o “averroísta” Boécio de Dácia utiliza a expressão aviceniana de “ser enquanto tal” para delimitar o objeto de estudo da filosofia; inversamente, em sua Summa Theologiae (I, 3, cap. 1), Alberto Magno sustenta uma distinção entre o “objeto principal da parte principal” da metafísica — Deus e as outras substâncias separadas (“o que os Antigos chamavam também teologia”) — e seu “objeto segundo” — o ser, com suas “partes” e as “paixões” que lhe cabem, o uno, o múltiplo, a potência, o ato, o necessário e o possível.
O “averroísmo latino” ou “aristotelismo radical” encontra seu terreno principal na psicologia (monopsiquismo) e na ética (felicidade mental). Em metafísica a própria tese da eternidade do mundo não pode bastar para caracterizar o “averroísmo”.
A maioria dos autores cristãos, inclusive os “averroístas”, professam que a criação do mundo de novo (e não apenas ex nihilo, que diz somente uma contingência radical do mundo unanimemente admitida) é acessível “unicamente à fé” (sola fide); além disso, mesmo se Avicena e os “avicenianos” propõem uma demonstração racional propriamente teológica da existência de um Deus causa do ser causado, e não simples princípio do movimento, Primeiro Agente, e não simples Primeiro Motor (Metaf., I, 2) — distinção de origem neoplatônica que, para Avicena, exprime a irredutibilidade do ponto de vista dos teólogos ao dos físicos, e, assim, limita de direito como de fato as pretensões do “aristotelismo” (Metaf., VI, 1) —, a concepção aviceniana da criação por via de emanação necessária não é menos repreensível aos olhos de um teólogo cristão do que a redução “averroísta” de Deus ao Primeiro Motor da Metafísica de Aristóteles. Em muitos casos, aliás, o necessitarismo e o determinismo da filosofia emanatista são mais vigorosamente atacados (condenações parisienses de 1270 e 1277) do que a tese da impossibilidade de uma demonstração racional do fato de que o mundo ou o homem tenham tido um começo “por causas e princípios naturais”.