Alain de Libera — HENOLOGIA
Excertos de “Filosofia Medieval”, Jorge Zahar, 1990
Além do ser: metafísica e henologia (enquanto discurso do Uno) — A ausência de difusão dos textos autênticos do platonismo e do neoplatonismo, a própria constituição tardia de uma posição peripatética explicitamente assumida retardaram durante muito tempo o verdadeiro confronto entre “Platão” e “Aristóteles”. Os diversos platonismos do século XII se desenvolveram enquanto o corpus aristotélico ainda não estava constituído, e eles se libertaram desigualmente das contaminações patrísticas. Ainda que a Idade Média não tenha nunca ignorado totalmente a henologia neo-platônica — como testemunham principalmente João Scot Erígena, Dominique Gundissalvi, Thierry de Chartres ou Alain de Lille —, e ainda que a maioria dos intérpretes árabes (Avicena, Averróis) ou bizantinos (Eustrato) conhecidos pelos latinos tenham oferecido uma versão de Aristóteles fortemente matizada de neoplatonismo plotiniano e porfiriano, é apenas no século XIV que se formou realmente, sob a influência dos escritos tardios de Alberto Magno, mas sobretudo à luz das traduções latinas de Proclo, uma alternativa neoplatônica para a metafísica de inspiração aristotélica. A difusão da Elementatio theologica e dos Tria opuscula deu lugar, entretanto, a produções muito diversas. A Universidade não explorou as novidades proclusianas por si mesmas: Tomás de Aquino, Siger de Brabant, Godefroid de Fontaines, Jacques de Viterbo, Gilles de Roma só recorrem a questões de detalhe, sem tomar posição de conjunto. O enciclopedista Henn Bate de Malines (Speculum Divinorum) preocupa-se principalmente em reconstituir a filosofia de Platão e procura em Proclo instrumentos para a interpretação da doutrina platônica das Ideias. Na realidade, é no meio cultural muito particular dos dominicanos alemães do século XIV que se elabora uma verdadeira henologia negativa, conscientemente oposta à filosofia primeira como ciência do ser enquanto ser. Preparada por Dietrich de Friburgo e Mestre Eckhart, essa crítica neoplatônica da metafísica encontra seu coroamento no comentário sobre os Elementos de teologia de Bertoldo de Mocsburg, única obra da Idade Média tardia que anuncia o “platonismo” militante do Renascimento.
Enquanto que, de acordo com o uso estabelecido, Alberto e Dietrich chamavam de theologia nostra ou scientia nostra a teologia dos Padres e a opunham à scientia divina philosophorum, Bertoldo introduz uma nova distinção, que marcará seu tempo. Para ele, não se trata mais de distinguir, ou até de opor, teiologia filosófica (adaptado da expressão de Heidegge teo-ontologia) e teologia cristã, mas teologia e metafísica, ciência divina e ciência do ser enquanto ser, platonismo e peri-patetismo. Tomando a Dietrich uma distinção entre duas espécies de Providências, a Providência natural e a Providência voluntária, Bertoldo desloca-lhe a significação. Natureza e vontade não designam mais dois pontos de vista sobre o universo (universitas entium), organizados um a partir da ordem filosófica das causas essenciais, outro a partir da ordem teológica dos fins últimos. Certamente, cada Providência tem seu porta-voz: a Providência natural tem Proclo, a Providência voluntária tem o pseudo-Dionísio, mas ambas falam a mesma linguagem, a do supra-essencial, do Bem Supremo, do Uno. O problema da deificação do homem (homo divinus) torna-se o tema central da teoria da Providência. A sapientia nostra toma desde então um sentido novo, é a sabedoria dos platonici, os platônicos, Proclo e Dionísio, que se opõe à teoria do ser enquanto ser do peri-patetismo. A reflexão sobre o objeto da teologia tem, pois, como resultado último, acarretar uma reformulação da própria concepção da filosofia, que, no caso particular da metaphysica, expulsa a ontologia da filosofia primeira, e, sob o nome de sapientia nostra, reconcilia numa mesma corrida em direção ao Único Uno o neoplatonismo cristão de um Dionísio e o neoplatonismo autêntico de um Proclo.
A clivagem tradicional da teiologia filosófica e da teologia cristã é substituída por uma distinção mais sutil, historicamente decisiva, entre a sabedoria metafísica de Aristóteles e a “hiper-sabedoria divina” dos platônicos. Voltada para as realidades divinas por esse princípio cognitivo que Dionísio chama unitio e Proclo unium animae, a sapientia nostra de Bertoldo pretende-se superior a qualquer metafísica:
“O princípio cognitivo (dos platônicos), isto é, o uno da alma ou unição (v. Uno), é de uma tal eminência, que, segundo Dionísio e Proclo, estabelecendo-se inteiramente nele, a alma se torna semelhante a Deus. O habitus dessa hiper-sabedoria que é a nossa ultrapassa pois qualquer outro habitus não só os das ciências, mas ainda o do intelecto, isto é, a sabedoria, do qual Aristóteles tira os princípios de sua filosofia primeira, que trata somente dos seres, já que ela trata do ser enquanto ser.”
Não se trata mais, doravante, de saber se a teologia verdadeira é filosófica ou cristã, trata-se de decidir entre uma sabedoria que “transcende a natureza do espírito”, um “conhecimento supra-intelectivo”, um “delírio divino” de um lado, e uma sabedoria “que não nos conduz mais alto nos princípios cognitivos e nos conhecimentos da alma humana do que o intelecto”.
Tal é a escolha proposta por Bertoldo nos anos 1350: Platão — isto é, Dionísio, isto é, Proclo — ou Aristóteles. Será quase exatamente esta a escolha do Renascimento.