Crouzel Origenes Pecado IV

OrígenesCrouzel — O PECADO ORIGINAL NA PRÉ-EXISTÊNCIA

O PECADO ORIGINAL NA PRÉ-EXISTÊNCIA. Tradução de Antonio Carneiro das páginas 293 até 306

Também se diz, com bastante frequência, que para Orígenes a queda é algo inevitável, que tinha de se produzir: tal afirmação nos parece infundada. Antes de tudo, é legítimo passar assim do plano do fato sobre o qual se situa Orígenes — afirmativamente quando se trata do que lhe entrega a “predicação apostólica”, e hipoteticamente no que concerne a suas próprias especulações — no plano do direito ? Tal conclusão é inaceitável, posto que, ainda excluindo a alma de Cristo, alguns dentre os seres racionais não caíram. Mas, sobretudo, a inevitabilidade da queda está em oposição ao livre arbítrio das criaturas, que nesse caso não seriam livres, mas sim na realidade manipuladas, e com o respeito, tão frequentemente afirmado, que Deus tem por elas. Se trata-se de uma necessidade proveniente de Deus, então se dá a Deus uma ideia indigna dele, porque se pretende que ele finge respeitar a liberdade humana, enquanto que na realidade não o faz e se lhe atribui ao Deus bom — uma das afirmações constante de Orígenes contra os marcionitas — a responsabilidade do mal. Se pretende-se que tal necessidade não provem de Deus, se lhe tira a divindade, sobrepondo-lhe, assim como às criaturas, um Destino que os determina. Nada mais contrário ao pensamento profundo do nosso teólogo.

Para terminar esta exposição sobre a queda, motivo da criação do mundo sensível por Deus, seria tentador esboçar um paralelo entre a concepção de Orígenes e a de seus principais adversários, os valentinianos. Segundo eles, os dois planos inferiores do mundo, o Intermediário, reinado por Deus criador, o Demiurgo, e das almas, e o Kenoma, lugar do vazio, domínio do Cosmocrator, o Diabo e dos corpos, são a consequência de um drama que se produziu no Pleroma, o Paraíso dos Eones. Este drama, ao que poder-se-ia aplicar irreverentemente o título de um conto para crianças da Condessa de Ségur, “Os desastres de Sophia”, é o seguinte: Sophia, a sabedoria, o último Eon, foi presa de um desejo irrefreável de ver o Pai, o Deus supremo, o qual pôs em perigo todo o Pleroma, pois ameaçava em transtornar sua hierarquia. Esta hybris inconcebível se separou finalmente de Sophia a maneira de um Eon abortado, engendrado por ela, Sophia Achamot o qual para restabelecer a ordem é expulso do Pleroma. Tal é a versão valentiniana da queda. De Achamoth vão sair o Intermediário com seu Demiurgo e o Kenoma com seu Cosmocrator, assim como as criaturas angélicas e humanas que o povoam. Achamoth intervem diretamente na criação dos pneumáticos, insuflando, às costas do Demiurgo, em algumas criaturas feitas por ele, gérmens provenientes do Pleroma a que ela pertence por sua origem. Na escatologia, quando finalmente Achamoth sua mãe será recebida no Pleroma e unida ao Salvador, que é o Eon masculino que foi engendrado para “formá-la” e salvá-la, os pneumáticos também serão acolhidos ali e unidos,como elementos femininos, aos anjos do Salvador.

A versão origeneana da queda, por mítica que seja, tem muito pouco em comum com essa mitologia. Antes de tudo, a queda é para ele obra de criaturas racionais e não o resultado de um drama ocorrido em um mundo transcendente e uma das consequências seria a criação dos seres humanos. Por outro lado, o livre arbítrio não representa nenhum papel na gnose valentiniana quanto ao desenvolvimento dos acontecimentos. Não somente o das criaturas, que todavia não existem, como também o da iniciadora do drama, Sophia, pois seu desejo irrefreável de ver o Pai não é uma vontade livre; tampouco o é o processo pelo que o Demiurgo cria; talvez o seja, em certa medida a insuflação dos gérmens pneumáticos por parte de Achamoth. Mas, como a distinção das três naturezas do homem, tudo foi pensado para economizar o mais possível o livre arbítrio.

A hipótese da preexistência das almas e a versão da queda à ela ligada são certamente o mais caduco no pensamento origeneano e, como o havíamos dito antes, foram rapidamente impugnadas pelos adversários do Alexandrino, sem serem sustentadas, mas sim tão somente explicadas, por suas apologias. No entanto, tudo isso será desenvolvido e sistematizado e se tornará um dos pontos essenciais do organismo posterior, tanto do século IV quanto do século VI. O qual é compreensível em parte por razão da polêmica contra os hereges do século III, valentinianos e marcionitas, e pelo Platonismo Médio que constitui o universo do pensamento filosófico onde se move Orígenes. Todos os elementos não são necessariamente carentes de valor, especialmente as concepções do pecado.

Alguém poderia se perguntar que vínculo tem esta pretensa história do homem com os relatos da criação segundo o livro do Gênesis. Lamentavelmente, já não temos, exceto alguns fragmentos e alguns dados provenientes de autores posteriores, o Comentário sobre o Gênesis que provavelmente explica-se alegoricamente neste sentido os primeiros capítulos do livro: devemos contentar-nos com a primeira homilia sobre este livro, que provavelmente sobre este ponto é menos explícita que o Comentário, e também com alusões espalhadas aqui e ali. Como foi dito antes a propósito da antropologia tricotômica e da imagem de Deus, o capítulo 1 do Gênesis descreve a criação das inteligências preexistentes, aplicando-se a menção do homem e da mulher não à uma sexualidade, que ainda não existe, mas sim à Cristo preexistente em sua humanidade e à sua Esposa, a Igreja da preexistência, conjunto das inteligências. O capítulo 2 fala da criação do corpo, mas pesa sobre ele uma forte impressão: se trata-se do corpo terreno e sexuado consecutivo à queda, como veria Orígenes neste capítulo 2, anterior ao capítulo 3, que descreve a queda ? Segundo o testemunho de Procópio de Gaza — o temos visto antes — ? o Comentário sobre o Gênesis o interpretava como o corpo “centelhante” que revestia a inteligência preexistente e então as duas criações, a do capítulo 1 e a do capítulo 2, deveriam ser consideradas como concomitantes, posto que uma criatura não pode existir sem corpo. Mas, neste caso, que fazia Orígenes com os versículos 21 ao 25 do capítulo 2, acerca da criação da mulher e de sua união com o homem por iniciativa do próprio Deus, texto que ocupa um lugar importante na concepção origeneana do matrimônio como na de toda Igreja primitiva ? Interpretava ele somente o “grande mistério” da União de Cristo e da Igreja e só indiretamente da união do homem e da mulher, sua imagem ? No Comentário sobre o Gênesis , no capítulo 3 devia figurar a queda, e nas “túnicas de pele” do versículo 21, segundo Procópio de Gaza, a “qualidade” terrestre que adiante esconderá o esplendor do “corpo cintilante” que revestia a inteligência preexistente.

Então, só nesse momento pode-se falar de uma segunda criação concernente ao mundo sensível a respeito de um corpo sexuado: Orígenes mesmo observa que a Escritura menciona que “Adão conheceu a sua esposa Eva” justo depois de quando haviam abandonado o Paraíso.

Para complicar, entretanto, mais o quadro agreguemos que não é de modo algum seguro que Orígenes, ainda que alegorizando-os, não tenha visto em Adão e em Eva personagens reais. Assim se depreende de algumas expressões e, de todos os modos, tanto para Orígenes quanto para Paulo a alegorização de um relato não é incompatível com a crença em sua historicidade. A perda do Comentário sobre o Gênesis nos impede de responder à estas questões, mas podemos estar seguros de que Orígenes se saía bem, com sua inteligência habitual, de todas estas dificuldades.