Crouzel Origenes Pecado III

OrígenesCrouzel — O PECADO ORIGINAL NA PRÉ-EXISTÊNCIA

O PECADO ORIGINAL NA PRÉ-EXISTÊNCIA. Tradução de Antonio Carneiro das páginas 293 até 306

4) Este mundo sensível e terreno tem sido, pois objeto de uma espécie de segunda criação que contem os seres inanimados, os vegetais e os animais. O começo do livro II do Tratado dos Princípios se ocupa do “mundo” e de seus diferentes lugares, terra, mar, ar, céu, etc. Não se trata de expor aqui o conteúdo desses textos muito complexos com caráter de discussão e de adaptação de astronomia antiga. Orígenes está impressionado pela variedade deste mundo sensível, assim criado para que se adapte às necessidades dos seres racionais que a queda primitiva tornou-os muito diferentes uns de outros por haver caído para mais ou para menos baixo. Mas, para este mundo tão diverso, o Criador deu entretanto uma unidade. O corpo humano, etéreo na pré-existência, tornou-se terrestre, análogo à este mundo sensível em que o homem deve viver: não voltemos sobre este ponto que já o tratamos. Subjacente à esta concepção do mundo se acha uma ideia de matéria proveniente da filosofia grega. A matéria do que o mundo está composto é uma espécie de substrato amorfo capaz de receber qualidades diversas, e de mudá-las, pois não se compromete definitivamente com nenhuma: não obstante não pode subsistir sem estar informado por qualidades. Mas, à diferença dos filósofos, Orígenes se nega à admitir que dita matéria seja incriada, pois tudo foi feito por Deus a partir do nada. Esta concepção da matéria com a qualidade que a informa explica não somente as mudanças que se produzem na natureza, como também a identidade e a alteridade que existem entre o corpo etéreo da pré-existência e o corpo terrestre, e até mesmo, como veremos mais adiante, entre o corpo terrestre e o corpo ressuscitado.

Tem pois um vínculo entre o pecado e a corporeidade terrestre. De que natureza é tal vínculo ? É indiscutível que há uma influência platônica, mas, em que proporção atua ? Haveria que ver de algum modo na mentalidade de Orígenes uma conexão necessária que, de certa maneira, até mesmo se imporia à Deus, gerando um dualismo ? Tudo isso parece exagerado. Primeiramente, os que pecaram mais profundamente, os demônios, não são colocados em corpos terrestres, nem sujeitos como os homens ao mundo sensível: se o Diabo é chamado de o Primeiro Terrestre, é porque está na origem da queda que foi a causa da criação do mundo sensível, mas não porque tenha um corpo terrestre. Não existe, pois, uma conexão necessária entre pecado e materialidade terrestre. Se o homem foi colocado em tal situação, é porque, segundo os desígnios de Deus, é todavia capaz da cura e porque o fato de ter sido posto no mundo sensível, em que se insere mediante a qualidade terrestre de que seu corpo foi revestido, é uma prova , um castigo misericordioso, prelúdio da Redenção. Para compreender como, segundo Orígenes, a vida inserida no sensível constitui uma prova de nosso amor por Deus, é necessário referir-se ao conceito de pecado que temos exposto várias vezes neste livro sobretudo à propósito da virgindade e do matrimônio. Bom em si-mesmo, já que foi criado por Deus, é a imagem dos mistérios divinos, o sensível põe o homem em um estado de tentação, pois este último sempre está tentando deter-se nele como no absoluto que busca, absoluto falso e decepcionante, pois é tão somente uma imagem do absoluto verdadeiro. Tal é — o vimos várias vezes — o essencial do pecado segundo Orígenes, um ato de idolatria que coloca o sensível no lugar de Deus, e um adultério, conforme o tema do matrimônio místico. Se o homem com ajuda da graça divina que chega por meio de Cristo Redentor, supera esta tentação, oferece a Deus em união com Cristo, um amor que o salva.

Não se trata, pois, de uma conexão necessária entre a queda original e o mundo sensível, mas sim de uma decisão livre de Deus, a única compatível com a liberdade divina, a quem toda necessidade, ainda a mais tênue que se possa imaginar, tiraria de fato sua divindade. Se tomarmos o termo dualismo no seu sentido filosófico habitual, ele designa uma doutrina que faz derivar tudo de dois princípios irredutíveis entre si. É claro que tal termo não se pode aplicar à síntese origeneana por causa da ideia fortíssima que tem seu autor do absoluto divino e da criação a partir do nada. Pode-se ver dualismo no pensamento de Platão ? Isto parece discutível, pois deixa algumas incertezas, segundo ilustram as opiniões diversas dos historiadores da filosofia. Suposto que se possa tratar de dualista Platão, haveria que dizer então que Orígenes assumiu em parte uma estrutura de origem dualista, mas que seu conceito de Deus exclui todo dualismo. Tão pouco pode-se dizer que a doutrina origeneana seja monista, reduzindo tudo absolutamente à um único princípio, pois ela está profundamente marcada por este paradoxo fundamental do cristianismo, de um Deus todo-poderoso que cria livremente uma criatura dotada de livre arbítrio, quer dizer, chamada à aceitar sua vontade, ainda que também podendo se opor à ele. O jogo da ação divina e da liberdade humana é um dos traços fundamentais da síntese origeneana exposta no Tratado de Princípios e subjacente em toda obra do Alexandrino.

Esta permanece em tensão entre o dualismo e o monismo.