Orígenes — Crouzel — O PECADO ORIGINAL NA PRÉ-EXISTÊNCIA
O PECADO ORIGINAL NA PRÉ-EXISTÊNCIA. Tradução de Antonio Carneiro das páginas 293 até 306
2) Em oposição com os anjos estão os demônios, cujos nomes são paralelos aos das ordens angélicas, Tronos, Dominações, Principados, Potestades, etc. Também eles podem ser anjos da guarda, mas ao revés, esforçando-se por fazer pecar ao que tomou a seu cargo, indivíduo ou nação. À sua cabeça está seu chefe, Satanás, o Diabo, o Maligno, em quem Orígenes vê o “Princípio” da queda, seguindo à Jó segundo os setenta, Jó 40, 14 (19): “É o começo do “modelado” do Senhor, feito para ser irisação de seus anjos”. Este vocábulo plasma, “modelado’, designa a criação do mundo sensível que seguirá à queda, como iremos ver. Ou em outros termos: “ele é o primeiro terrestre porque, havendo sido o primeiro a cair das realidades superiores, e havendo preferido outra vida à vida melhor, tem sido digno de ser o princípio nem da produção (ktisma) nem da criação (poiema), mas sim do “modelado” (plasma) do Senhor, feito para ser irisação dos anjos”. Isto não quer dizer que Satanás e seus demônios tenham, como os homens, corpos terrestres: seus corpos são”por natureza algo sutil, como um ligeiro sopro”, como é etéreo o corpo dos anjos. A queda de Satanás, arrastando a todos os demais, está figurada pela profecia de Ezequiel sobre o príncipe de Tiro e a de Isaías sobre o rei da Babilônia. Orígenes inaugura assim uma tradição: a afirmação da grandeza de Satanás antes da queda quando levava “o selo da semelhança”, quer a participação na imagem de Deus; o orgulho que provocou a catástrofe; o apelativo de Lúcifer, Eôsphoros (porta-aurora), designando a estrela da manhã aplicado também à Cristo. Esta origem angélica de Satanás, também o afirma a regra de fé segundo se lê no prefácio do Tratado dos Princípios:
“A predicação eclesiástica tem ensinado a existência do Diabo e de seus anjos, e também das potências adversas, mas, não tem exposto com clareza suficiente sua natureza e modo de ser. Muitos são de opinião que o Diabo foi um anjo e que, tornado apóstata, convenceu numerosos anjos para que o seguisse em seu distanciamento: por isso estes últimos são chamados de, até agora, seus anjos.”
E a regra de fé, ao mencionar o livre arbítrio com o que está dotada a alma racional, afirma desta:
“Está em luta com o Diabo e seus anjos assim como as potências adversas, que se esforçam então para carregá-las de pecados.”
O capítulo do Tratado dos Princípios sobre o livre arbítrio está seguido por uma longa exposição sobre os combates dos poderes diabólicos contra os homens.
Os demônios eram, pois, originalmente como os anjos, logika, seres racionais, com o sentido sobrenatural que este vocábulo tem habitualmente em Orígenes: ou seja que participam do Logos divino, Palavra e Razão de Deus. Mas, por uma livre opção de sua vontade tem recusado essa participação no Logos e tem tornado aloga, seres sem razão, assemelhando-se assim, de certo modo, aos animais, convertendo-se em animais espirituais, se é que se pode chamar assim. Por este motivo as imagens adversas que, por causa do pecado, mascararam a participação do homem na imagem de Deus, são chamadas indiferentemente diabólicas ou bestiais. Por causa de sua malícia os demônios não podem compreender as realidades espirituais e ignoram tudo concernente à salvação. Orígenes dá as vezes uma significação sobrenatural à existência, participação de Deus, quem se revelou à Moisés como “o que é”. Havendo renegado desta participação na fonte de sua existência, os demônios tornaram-se em certo sentido ouk ontes, “não-entes”.
Uma possibilidade de conversão dos demônios não aparece em Orígenes com tanta clareza como se diz habitualmente: voltaremos à isso no último capítulo quando trataremos da restauração ou apokatastasis. No Tratado dos Princípios, Orígenes coloca a questão sem resolvê-la, deixando duas possibilidades: ou a conversão é possível porque permanece neles o livre arbítrio, ou “pelo contrário a malícia duradoura e inveterada se converteria pela força do costume de certo modo em natureza ?” A razão deste segundo termo da alternativa é que o livre arbítrio está cada vez mais escravizado pelos maus costumes que tende a tornar natureza. Esta é realmente uma opinião de Orígenes e não de seu tradutor Rufino porque se encontra várias vezes em suas obras conservadas em grego.
3) “A terceira ordem da criação racional está formada por esses espíritos que foram julgados por Deus aptos para completar o gênero humano, quer dizer as almas dos homens.”
Porque estiveram implicados menos gravemente que os demônios na queda primitiva e tem para eles esperança de cura, tem sido insertados neste mundo sensível e terreno como em um instituto de correção.