Henri Crouzel — HUMANIDADE
Natureza da alma (Nature de l’âme)
*Orígenes
**No Tratado da Oração encontra-se uma pequena dissertação sobre a ousia cuja tecnicidade desafia o caráter pastoral e espiritual da obra. Para explicar o adjetivo epiousios, o “pão nosso de cada dia” do Pai Nosso, encontrado nas duas versões de Mateus e Lucas. Orígenes prefere traduzir epiousios por superessencial, supersubstancial, mas admite outra etimologia, derivando o termo de epienai (he epiousa hemera), o amanhã, designando o dia da vida eterna. A ousia de Orígenes, combinando com o seu cristianismo (vide Cristologia), noções:
***platônicas, a ousia incorporal, que não admite crescimento e nem diminuição, por serem estas características corporais.
***estoicas, a ousia corporal, das explicações de Orígenes concernentes aos corpos dos ressuscitados; ou seja, uma matéria primeira dos seres e corpos: subsistente de maneira indeterminada, pré-existente aos seres, recebedora das transformações e das modificações; por natureza é indeterminada e sem forma, submetida a toda determinação possível; não participa indissoluvelmente a nenhuma qualidade, mas está sempre ligada a uma qualidade; inteiramente maleável e divisível e capaz de se misturar a outra.
**A alma segundo Orígenes pertence evidentemente à noção platônica. Orígenes, no entanto, não compartilha o pampsiquismo plotiniano: põe alma nos astros que pensa serem criaturas vivas e inteligentes; põe nos animais, embora indique não terem quase nada em comum com os seres razoáveis.
**Sua tricotomia antropológica não acompanha diretamente Platão, pois concerne o homem como um todo, manifestando um juízo mais positivo sobre o corpo (só a Trindade é sem corpo, toda criatura tem um corpo, embora a alma seja incorporal, mas unida a um corpo).
**A tricotomia origeneana deriva da enumeração feita por Paulo na primeira epístola a Timóteo (5,23): E o próprio Deus de paz vos santifique completamente; e o vosso espírito (pneuma), e alma (psyche) e corpo (soma) sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. (1Tim 5:23). Estes não são os termos usados por Platão (nous, thymos e epithymia). Mas ao falar da alma utilizará estes termos, especialmente o primeiro. Faz-se notar que nous (inteligência ou intelecto) e pneuma (espírito) não são equivalentes.
**Com efeito o “espírito” (pneuma, spiritus) é a noção maior da tricotomia origeneana. O pneuma cristão é absolutamente incorporal enquanto no pensamento grego ele guarda a ideia de uma corporeidade sutil: assim é para o envelope de pneuma que faz a ligação, para os platônicos posteriores, entre a alma e o corpo, e constitui o “veículo” (okema) da alma, explicando as aparições de fantasmas. A origem do pneuma patrístico é a ruah hebraica exprimindo a ação divina através de Paulo e também Philon que a associa às diferentes formas do pneuma estoico.
**Para Orígenes o pneuma é o dom que Deus faz à alma para conduzi-la na via da virtude (arete), da contemplação (theoria) e da oração (euche): não faz parte da essência do homem, o que explica o fato de não participar de seus pecados. Ele corresponde mais ou menos, com outros conceitos ou símbolos origeneanos, ao que a teologia escolástica denominará graça santificante. Ele é o mestre, mentor, treinador, sendo a alma a discípula.