Crouzel Apokatastasis III

Henri CrouzelOrígenes, um teólogo controvertido

ORÍGENES, Un teólogo controvertido, Henri CROUZEL. Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1998, 379 p. ISBN: 84-7914-363-0, traducción española de la edición original en frances: Origène por las Monjas Benedictinas de la Abadía Santa Escolástica de Victoria, Buenos Aires (Argentina). Tradução de Antonio Carneiro das paginas 362 até 374

APOCATÁSTASE

3) Orígenes professou uma apocatástase universal, incluindo o retorno à graça dos demônios e dos condenados? Se forem tomados em consideração todos os textos, ou ainda que somente os do Tratado dos Princípios, resulta uma grande confusão. Temos assinalados já as vacilações de Orígenes e suas tomadas de posição em pró e em contra no referente à eternidade do Gehena e a ambiguidade do termo aiônios, como expressão tanto de eternidade quanto de uma longa duração.

Vamos a tratar separadamente o caso do Diabo e o dos demônios e o caso dos condenados. A afirmação mais clara da Salvação do Diabo, se bem que não seja absolutamente explícita, se acha no Tratado dos Princípios: o último inimigo destruído, a Morte, não será destruído no sentido de que sua substância seja aniquilada, mas sim em que sua vontade inimiga de Deus se convertirá. Não se diz com clareza que a Morte represente aqui o Diabo, mas na obra de Orígenes frequentemente o último inimigo que será destruído, a Morte, é identificado com o pecado e com o Diabo. Por outro lado, posto que a Morte é o pecado, ela é algo negativo, ou melhor, privativo, que carece de substância, essa “nada” que segundo Jo 1, 3, como o lê Orígenes, foi criada sem o Verbo. Portanto, pode-se falar da “substância” da Morte só se esta designar um ser determinado, que não possa ser outro senão o Diabo, frequentemente chamado assim por Orígenes. Mas, em oposição à este texto temos o protesto, que não pode ser mais explícito, da Carta aos amigos de Alexandria que temos estudado ao tratar da vida de Orígenes. Ainda que conservada unicamente em latim, este protesto é de uma autenticidade absolutamente certa, pois é citada em termos equivalentes por Rufino e por Jerônimo no mais álgido de sua disputa. Orígenes se queixa de que se lhe tenha atribuído a opinião de que o Diabo se salvaria: isto nem sequer um louco poderia dizê-lo. E não é questão aqui de uma retratação insincera motivada pelo medo das excomunhões episcopais, pois, por um lado, isto não se alinha com o caráter do “homem de aço”, e por outro lado, esta segunda posição já está esboçada no Tratado dos Princípios e, a par da outra, no resto de sua obra. Orígenes se queixa de que se tenha endurecido como afirmação categórica uma passagem que há de ser considerada um marco de uma teologia de uma busca como é a deste livro.

Em outra passagem deste escrito pergunta-se, com efeito, se os demônios poderão algum dia se converter na bondade, por causa de seu livre arbítrio, ou se a malícia inveterada e permanente não teria se tornado natureza. Aceita, pois, a possibilidade de que se os demônios não são maus por sua natureza original, ou seja não foram criados maus por Deus, mas sim que se tornaram maus por opção de seu livre arbítrio, o hábito da maldade pôde bloquear o livre arbítrio, tornar uma segunda natureza e tornar impossível toda a conversão em direção ao bem. Esta segunda alternativa não se encontra isolada na obra de Orígenes. Que a maldade tenha se tornado natureza no demônio e em seu filho, o Anticristo, se lê no Comentário de João, a propósito da profecia de Ezequiel acerca da queda a formar o neologismo péphysiômenon, esse personagem foi “naturalizado” assim. E o contrário também é verdade, com a diferença de que se o hábito do mal bloqueia o livre arbítrio, o do bem dá a verdadeira liberdade que, para Orígenes, não se reduz ao livre arbítrio. Com efeito, em oposição à hipótese que se propõe no Tratado dos Princípios da possibilidade de uma queda dos bem-aventurados por causa de seu livre arbítrio, o Alexandrino mostra com alguma frequência que a caridade se torna natureza, contribuindo assim com uma imutabilidade no bem. Por causa da caridade perfeita que a une ao Verbo, isto se realiza à perfeição na alma humana de Jesus, que possui o bem de maneira substancial, como a Trindade, e é absolutamente impecável, ainda que seja da mesma natureza que as demais almas, dotadas como elas de livre arbítrio, se bem que estas outras almas possui o bem só acidentalmente com a possibilidade de progresso ou queda. O livre arbítrio não pode separar da caridade aqueles que se entregaram à ela, e o que se aproxima de Deus participa de sua imutabilidade. Se a alma é absolutamente imortal a respeito da morte comum, não o é a respeito da morte do pecado, mas a torna na medida em que se “afirma na bem-aventurança”. Às vezes Orígenes chega a falar disso como de um conceito limite e progressivo da impecabilidade do espiritual. Porque, além do livre arbítrio, conhece, como testemunham vários textos, um conceito de liberdade que, como eleuthéria paulina, se identifica com a adesão ao bem. Poder-se-iam invocar outros textos ainda acerca do caráter definitivo da condenação do demônio.

Algumas das passagens estudadas com frequência em relação ao “fogo eterno” mostrariam a Orígenes mais inclinado a aceitar a eternidade dos castigos para os demônios que para os homens. Existem textos que vão neste sentido como a Homilia sobre Jeremias XVIII, 1 acerca da descida do profeta a oficina do oleiro, ou alguns dos que comentam o pecado contra o Espírito. Mas, em outros lugares em que intervem este último tema, a consideração da misericórdia divina o leva a deixar aberta a questão. Ademais, a exegese do dichotomèsi de Mt 24, 51 e Lc 12, 46 — trata-se do mau servo a quem o patrão, ao regressar, surpreende-o a castigar a seus subordinados e a beber com bêbados — não diz uma palavra em favor de uma possibilidade de conversão para os condenados. A interpretação mais corrente é a seguinte “o espírito que está no homem”, dom divino mentor da alma, retorna à Deus que o havia dado, enquanto que a alma e o corpo “vão com os infiéis” para o Gehena. Posto que o espírito está associado à alma como seu treinador na santificação, seu preceptor na virtude, no conhecimento de Deus e na oração, não se vê como aqui na terra o pneuma nunca é tirado do pecador, mas sim adormecido pelo pecado, e o homem conserva a possibilidade de voltar à Deus.

Por consequência, erraria quem visse nos textos que expressam a não eternidade do Gehena a expressão de uma firme convicção. Orígenes vacila, pois não vê como conciliar todos os ensinamentos da Escritura: às vezes não se pronuncia, outras vezes arrisca uma opinião ora em uma, ora em outra direção. De todos modos, se as afirmações da universalidade da apocatástase que se crê encontrar em sua obra tiveram que ser entendidas nesse sentido e tomadas como proposições de natureza dogmática, estariam em contradição com o ponto capital da síntese apresentada pelo Tratado dos Princípios , o livre arbítrio. Com efeito, Deus e o Verbo jamais forçam o homem, não o manipulam, não lhe fazem crer mentirosamente que é livre, quando de fato seria manipulado. Livremente, o homem se submete ao verbo e se submeterá ao Pai na apocatástasei. temos visto afirmado com clareza em Contra Celso em oposição à conflagração estoica. Se o livre arbítrio do homem, aceitando ou recusando as iniciativas divinas, desempenha um papel tão importante em Orígenes, acaso poderia ele chegar a ter a certeza de que todas as liberdades humanas e demoníacas se deixarão comover finalmente e se aderirão à Deus na apocatástase ? Se algo acrescentou Orígenes ao dito de Paulo , 1 Cor 15, 23-28 só pode ser uma grande esperança. Uma certeza acerca de uma apocatástase universal estaria em contradição com a autenticidade do livre arbítrio com que Deus dotou o homem.

Na base desta esperança se acha certamente a imperturbável de Orígenes na bondade de Deus, não somente do Pai de Jesus Cristo, mas sim do Deus criador do Antigo Testamento, que para ele, como para todos os “eclesiásticos”, quer dizer os membros da Grande Igreja, é um e o mesmo, pese ao que pretendem os Marcionitas e os Gnósticos. Por todos os meios, inclusive por sua exegese alegórica, o defende das reprovações de crueldade que lhe dirigem esses hereges, e até chega à aceitar a hipótese da pré-existência das almas para tirar-lhe a responsabilidade das condições de desigualdade em que nascem os homens. Por esta razão geralmente concebe os castigos divinos como medicinais e misericordiosos, para emenda e conversão daquele que é castigado. No entanto, ter entrevisto que o Gehena possa ter para os demônios — e também para os condenados, ainda que vacile mais perto disto — um caráter definitivo que não é imputável ao Deus bom, mas sim ao endurecimento da criatura que não quer, e finalmente não pode, deixar-se conviver pela bondade de Deus: a ideia de que a maldade possa, de certo modo, tornar-se natureza por causa do hábito não está ausente de sua obra. Mas não a explorou bastante bloqueado pela polêmica anti-marcionita e agnóstica. Parece conservar a esperança de que a Palavra de Deus chegará a ter tal força de persuasão que, sem violar o livre arbítrio, chegue a vencer todas as resistências.

Vemos, pois, que resposta extremamente matizada teria que dar para a universalidade da apocatástase segundo Orígenes. Não se pode dizer que a tenha mantido ou professado firmemente, porque se tem textos que vão nesse sentido, muitos outros se lhes opõem manifestando outros aspectos que devem intervir na resposta. Ao máximo se pode dizer que a esperou, numa época em que a regra de não estava ainda tão fixa como a estará mais tarde.