Contra Celso IV 3

Orígenes — Contra Celso
Por que Deus desceu à terra?
Mal acaba de asseverar que, segundo nós, o Cristo desceu e, segundo os judeus, descerá como Juiz, acha poder impugnar essa idéia como tão mesquinha que não mereceria refutação. Diz ele: “que intento teria Deus para tal descida?”

Não vê que, segundo nós, o intento da descida é principalmente o de converter “as ovelhas perdidas da casa de Israel”, e em segundo lugar, o de retirar aos antigos judeus, por causa de sua incredulidade, “o Reino de Deus”, e confiá-lo a outros vinhateiros, os cristãos, que “darão contas” a Deus, “no tempo oportuno, dos frutos do Reino de Deus”, sendo cada ação um fruto do Reino.

Apresentei estas razões, entre outras, para responder à questão de Celso: “que intuito teria Deus para tal descida?” Ele passa a inventar uma série de intuitos que não são dos judeus nem nossos. “Seria para vir aprender o que se passa entre os homens?” pergunta. Nenhum de nós disse que o Cristo tenha vindo para aprender o que se passa entre os homens! Depois, como se alguém tivesse concedido que foi para aprender o que se passa entre os homens, trata de responder por si mesmo à questão: “mas não conhece ele tudo?” Então, como se disséssemos que sim, formula nova pergunta: “ter-se-á pois que, conhecendo tudo, ele não reforma os homens, não pode reformá-los por seu poder divino?” Quanto disparate nestas palavras! Incessantemente, por meio de seu Verbo que desce, nas sucessivas gerações, às almas pias e as faz amigas de Deus e profetas, Deus reforma os que ouvem suas palavras; e no tempo da vinda de Cristo, ele reforma pelo ensinamento do cristianismo, não os recalcitrantes, mas os que escolheram o melhor caminho, que agrada a Deus.

Não sei depois que reforma Celso desejaria realizada quando põe outra questão: “ser-lhe-ia impossível reformar (os homens) por seu poder divino, sem enviar alguém vetado, por natureza, para tal propósito?”

Será que Celso pensou numa reforma produzida em homens dotados de visões, por Deus, e que, retirando-lhes subitamente a malícia, implantasse a virtude? Poderíamos perguntar se isto seria conforme com a natureza ou até simplesmente possível. Diria eu: admitamos que seja possível; mas então que será de nossa liberdade? . . . Como seria louvável a adesão à verdade, como seria digna de aprovação a recusa do erro? Aliás, supondo a coisa possível e conveniente, por que não pôr imediatamente a questão, calcada sobre a afirmação de Celso: seria impossível a Deus criar, per sua onipotência uma humanidade desnecessitada de reforma, desde logo virtuosa e perfeita, sem a existência da menor malícia? Concepção capaz de seduzir a gente simples e ignorante, mas não quem examina a natureza das coisas! Pois destruir a liberdade da virtude é destruir sua própria essência. O assunto se prestaria a um estudo especial. Os gregos trataram dele em livros sobre a Providência. Jamais subscreveriam a proposição de Celso: “Ele conhece mas não reforma, e ser-lhe-ia impossível reformar por seu poder divino”. Eu mesmo diversas vezes tratei do assunto, da melhor maneira que pude. E as divinas Escrituras o têm demonstrado aos que podem compreendê-las.