Vincenzo Vitiello
Aperiam in parabolis os meum, / eructabo abscondita a constitutione mundi. (Sal., 78,2 ; Mat., 13, 35)
Jesus repete as palavras do Profeta — intencionalmente. Mas, perguntemo-nos: qual é o sentido desta “repetição”? A pergunta é fundamental, pois até as palavras extremas — as palavras gritadas na hora nona da Cruz (Mat., 27,46) — repetem o início do Salmo 22, de Davi.
Em Jesus, a repetição sublinha o distanciamento, a diferença. A palavra de Jesus não é a do Profeta, não é a do Antigo Testamento. E outra. E de uma alteridade que não permite mediação, mas somente um rígido aut/aut (ou/ou). O episódio do discípulo que pede a Jesus permissão para ir sepultar o pai e ouve uma resposta brusca — “Segue-me e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos”(Mat., 8, 22) — é sumamente instrutivo. Mesmo o ato de piedade mais antigo é considerado vão se, e na medida em que, pertence ao mundo. Ao mundo da Lei, do visível. “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles.” (Mat., 6, 1)
A própria oração tem de ser feita em segredo, fugindo dos olhares do mundo:
(…) não sejas como os hipócritas, que gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos pelos homens. (…) Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, ora a teu Pai, que está em segredo. (Mat., 6; 5-6)
O imperativo de “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” não tem, portanto, o significado banal de manter distintas as duas Cidades, uma religiosa e a outra política; tem, sim, o sentido profundo de marcar a diferença, insuperável, entre o interior e o exterior, a consciência e o mundo: “os cuidados do mundo sufocam a palavra, que fica infrutífera” (Mat., 13, 22). Nada é mais distante de Jesus do que a intenção de fundar uma igreja, uma comunidade. Quando o avisam de que sua mãe e os seus irmãos lhe desejam falar, responde:
“Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” E, estendendo a mão para os discípulos, disse: “Eis minha mãe e meus irmãos. Porque qualquer que faça a vontade de meu Pai celestial, esse é meu irmão, irmã e mãe.” (Mat., 12, 48-50)
Discípulos de Jesus todos são: todos os que entendem a sua palavra. Por que esta especificação? Que dificuldade há em entender a palavra de Jesus?
Aperiam in parabolis os meum — a palavra de Jesus não é uma ponte entre o interior e o exterior, a consciência e o mundo; pelo contrário, é a espada que os separa: “não vim para trazer paz, mas espada. Pois vim causar dissensão…; assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa” (Mat., 10, 34-36). Jesus fala por parábolas, isto é, de modo oblíquo, pois tem consciência de que aquilo que tem a dizer não é dizível na língua do mundo — na única língua que há. A parábola é uma necessidade. E exatamente isso é o que há de mais difícil de se compreender, como atesta o episódio transcrito por Mateus: aos discípulos que lhe perguntam por que ele fala por parábolas, Jesus responde que eles o entendem porque conhecem os “mistérios do reino”, mas não os outros, que “vendo não veem e ouvindo não ouvem” (Mat. 13, 10-13). Tomando esta narração ao pé da letra, poder-se-ia concluir que Jesus não veio para falar a todos, mas somente a poucos. Exatamente o contrário do que se leu pouco acima com respeito aos seus próprios “parentes”. Em verdade, Jesus fala a todos e para todos. Compreendem-no, porém, somente os que entendem, além do significado explícito das palavras, os mysteria, ou seja, aquilo que nas palavras se re-vela continuamente. Os que compreendem que a palavra sempre é dúplice, oblíqua, mentirosa. Pois o divino não é traduzível em linguagem. Como expressa João: “lux in tenebris lucet, et tenebrae eam non comprehenderunt”1 (João, 1,5). Este também é o motivo de Jesus ordenar aos discípulos que “a ninguém dissessem ser ele o Cristo” (Mat., 16, 20). Os próprios discípulos não o compreendem: quando ele anuncia pela primeira vez a sua morte -a sua morte ao mundo já desde sempre ocorrida -, a Pedro, que, perturbado, lhe diz “Tem compaixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá”, Jesus replica “Arreda, Satanás; tu és para mim transtorno (skandalon), porque não cogitas das cousas de Deus, e sim das dos homens” (Mat., 16, 23). Satanás aqui denomina o mundo dos homens. Das coisas dos homens. O reino da exterioridade. Da Lei. Skandalon, em grego, também expressa “insídia”, “armadilha”. Para o próprio Jesus, o mundo é “insídia” e “armadilha” — por isso ele o teme. Por isso ele tem de falar de sua morte. E de sua ressurreição. Que não é um retorno à vida, um renascer, após a morte do corpo, após a morte física. A ressurreição é a própria morte: a morte para a exterioridade da Lei, que é vida na interioridade da fé, ou seja, da consciência. Este o seu ensinamento:
E, quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o que Deus vos declarou: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó? Ele não é o Deus dos mortos, e sim dos vivos. (Mat., 22, 31-32)
Ensinamento que não somente os saduceus, mas os seus próprios discípulos não compreendem. Pois não compreendem o caráter necessariamente oblíquo, mentiroso da palavra. Da palavra veritativa. Pois não compreendem a ameaça constante que pesa sobre a palavra de Jesus, fácil de ser transformada — como logo acontecerá — em Lei, em comunidade, igreja, mundo. Porque não compreendem a diferença entre as palavras de Isaías — “Ele mesmo tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas doenças” (Mat., 8, 17) — e a repetição destas palavras.
As palavras da Antiga Aliança eram profecia de salvação, de redenção do mal em bem; a palavra de Jesus diz, ao contrário, que nenhum mal do mundo jamais poderá tocar o homem interior. Doenças e enfermidades não desaparecem, não são redimidas, permanecem tais no mundo, pois o mundo não seria o mesmo na ausência de doenças e enfermidades. Nem a consciência ou a fé subtraem o homem ao mal do mundo. E no mal do mundo que o divino do homem vive. Por esta razão, ao convidar ao universal phília, Jesus lembra que o Pai celestial “faz nascer o sol sobre maus e bons, e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mat., 5, 43-45).
Se agora ouvirmos novamente o grito da hora nona, compreenderemos a diferença abismal com respeito às palavras do Salmo 22. No grito do Filho, é o Pai que se revela. O abandono não é a punição de uma culpa: é a revelação do Pai. Este o paradoxo extremo, a contradição pura: o Pai é assim, é Pai somente no e pelo abandono do Filho, do Filho do Homem, dos filhos todos, do mundo. Esta a verdade que o Messias anuncia. Na única forma possível, a do discurso oblíquo, mentiroso, da parábola que diz “as coisas escondidas da origem do mundo” — re-velando-as.
Maurice Nicoll: A LINGUAGEM DAS PARÁBOLAS