CASSIANO — CONFERÊNCIAS
CONFERÊNCIA XVI — PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE JOSÉ SOBRE A AMIZADE
XVIII. Aqueles que, fingindo paciência, excitam os irmãos à cólera, por seu silêncio.
Que é isto que, às vezes, fazemos, quando, acreditando que somos pacientes, desdenhamos responder às agressões que sofremos? Mas, ao mesmo tempo, com o nosso silêncio amargo ou um gesto ou movimento de zombaria, mofamos de irmãos já ressentidos, com essa face tranquila, mais os provocamos à cólera, do que o fariam as mais violentas injúrias.
E nisso não nos estimamos culpados diante de Deus, porque nossos lábios nada proferiram que nos pudesse condenar aos olhos dos homens. Como se, em face de Deus, fossem só as palavras e não, sobretudo, a vontade, que nos incriminassem. E como se houvesse crime só na obra do pecado, e não também na intenção e no desejo. Ou como se, ao sermos julgados, se indagasse apenas o que fizemos e não também o que tivemos o propósito de fazer!
A culpa, com efeito, não está só na qualidade do agravo cometido, mas também na intenção do seu autor. Por isto, o nosso Juiz, na sua apreciação verdadeira, não vai examinar o modo como o agravo feriu o queixoso, mas por culpa de quem ele se atiçou. O objeto do exame é o fato do pecado, e não a maneira como se produziu.
Que importa, em verdade, se alguém matou o irmão a espada, ou se o levou à morte por alguma fraude, quando é certo que foi ele que por dolo ou crime lhe causou a morte?
Como se bastasse não empurrar por sua própria mão o cego ao precipício, quando já basta, para ser responsável por sua morte, que alguém, podendo, deixa de segurá-lo, quando o vá prestes a cair na cova. Será criminoso só aquele que estrangula seu irmão com as próprias mãos, e não também o que preparou a corda, ou a passou em seu pescoço, ou, também, o que, podendo, não o livrou?
Assim, pois, de nada serve calar, se nos impomos o silêncio só para obter por seu meio o que a injúria causaria. Simulamos, então, alguns gestos que, além de lançar em maior cólera aquele que devíamos curar, ainda nos valem louvores pelo mesmo ato que lhe causa ruína e perdição! Como se não fosse mais criminoso, tirar glória da perda de um irmão.
A um e outro, portanto, esse silêncio é igualmente máu, pois aumenta a tristeza no coração do próximo e não permite que esta desapareça do nosso. Contra os que agem de tal modo é bem apropriada a maldição do profeta: “Ai daquele que põe fel na “bebida do amigo, e o embriaga para ver a sua nudez! Ele se enche de ignomínia, em vez de glória” (Hab 2, 15-16). Deles também diz um outro: “O irmão só pensa em suplantar o irmão, e o amigo usa de fraude para enganar seu amigo; o homem zomba do seu irmão, e eles não dirão a verdade” (Jer 9,4-5). Estenderam a sua língua como um arco, para lançar a mentira e não a verdade” (id 3).
Muitas vezes, a paciência fingida excita mais vivamente a ira, do que uma palavra, e ficar calado supera as piores injúrias. Suportam-se mais facilmente os ataques do inimigo, do que as enganosas carícias dum zombador.
Destes é que diz devidamente o profeta: “Suas palavras são mais untuosas do que o Óleo, mas elas são dardos penetrantes” (Sl 54,22). E em outro lugar: “As palavras dos velhacos são doces, mas ferem até ao fundo das entranhas” (Prov 26,22). Podemos também lhes aplicar convenientemente o dito: “Ele tem na boca palavras de paz para o amigo, mas em segredo lhe arma ciladas” (Jer 9,8), mas, na verdade, é o trapaceiro que sai enganado com elas. Porque “aquele que prepara um laço para pegar seu amigo, acaba se enredando nele” ( Prov 29,5); e “quem cava um fosso para o seu próximo é o primeiro a cair nele” (Prov 26,27).
Finalmente, quando veio uma grande multidão com espadas e paus para prender o Senhor, ninguém foi mais cruel parricida contra o Autor da nossa vida, do que aquele que se adiantou a todos para lhe oferecer a falsa homenagem da sua saudação e lhe deu um beijo de amor mentiroso.
Disse-lhe, então o Senhor: “Judas, entregas o Filho do Homem por um beijo? (Lc 22,48), isto é, o amargor da tua perseguição e do teu ódio tomou por cobertura esse sinal feito para exprimir a doçura do verdadeiro amor!
Mas ele amplia mais abertamente e com maior veemência a força da sua dor, pela boca do profeta: “Se fosse o meu inimigo a me ultrajar, eu o teria suportado; se fosse aquele que me odeia a se elevar contra mim com as suas palavras, eu me teria escondido dele. Mas tu, que tinhas uma só alma comigo; que eras o meu guia e meu conhecido, que repartias comigo doces refeições, e de comum acordo ias comigo à casa de Deus!” (Sl 54,13-15).