CASSIANO — CONFERÊNCIAS
PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — A CIÊNCIA ESPIRITUAL
XII. Pergunta sobre a maneira de chegar ao esquecimento dos poemas seculares
Ao ouvir tais coisas, “fui tomado por uma viva compunção, inicialmente oculta, que, depois, me fez cair em profundos gemidos: “Tudo que acabais de desenvolver com tanta abundância — disse-lhe eu — me trouxe um desespero ainda maior do que eu sentia até agora. Pois, além daquelas servidões da alma que todos experimentam, e das distrações que, sem dúvida, atacam de fora os fracos, acresce um obstáculo especial a minha salvação, que pareço ter no meu exíguo conhecimento das letras.
Seja pelo zelo do meu pedagogo, seja por minha contínua dedicação à leitura, minha mente está agora como que infectada pelas obras dos poetas, pelas fábulas frívolas e por histórias de guerras, de que fui imbuído desde pequeno em meus primeiros rudimentos de estudos, que me ocupam mesmo à hora da oração. Quando salmodio ou suplico o perdão dos meus pecados, eis que a lembrança impertinente dos poemas outrora aprendidos me acode a mente, a imagem dos heróis e dos seus combates flutua diante dos meus olhos e minha alma, iludida por essas fantasias, não consegue aspirar à contemplação das coisas celestes. Nem as lágrimas, que diariamente derramo, têm forças para as repelir.
XIII. Resposta sobre como poderemos lavar esta espécie de tintura da memória
Nésteros: Do próprio mal que te faz desesperar da purificação, poderá sair um remédio bastante rápido e eficaz. A condição única é que transfiras para a leitura e meditação das Escrituras espirituais a diligência e o zelo que, segundo dizias, tiveste pelos estudos seculares.
É, com efeito, inevitável que tua mente fique ocupada com aqueles poemas, até que ela tenha conquistado, com igual zelo e assiduidade, outros objetos que repasse em si mesma, e possa dar a luz, em lugar dos pensamentos terrenos e infrutíferos, outros espirituais e divinos.
A medida que ela conceber no fundo de si mesma estes novos pensamentos, poderá expulsar pouco a pouco os primeiros, até os abolir de todo. O espírito humano não pode ficar vazio de pensamentos. Se, portanto, ele não for ocupado com as coisas espirituais, forçosamente continuará embaraçado por aqueles que antes aprendera. Enquanto não tiver a que recorrer e exercer uma infatigável atividade, necessariamente resvala para aquilo de que está desde a infância imbuído, e ficará sempre revolvendo os pensamentos que concebeu através de um longo contato e assídua meditação.
A fim de que a ciência espiritual tome em ti força e perpétua solidez, e não a desfrutes só por pouco tempo, como os que não a possuem por seu esforço, e apenas entram em relação com ela pelo testemunho alheio, percebendo-a, por assim dizer, como um vago perfume no ar, mas para que ela seja de certo modo entranhada em teu coração e aí considerada pelo teu olhar e como que apalpada, convém que observes com toda diligência o seguinte.
Acontecerá, por acaso, que conheces muito bem o que ouvires numa conferência. Neste caso, não recebas com ar de desprezo e fastio o que já conheces. Ao contrario, confia isto ao teu coração com a mesma avidez que devemos sempre ter para ouvir as desejáveis palavras de salvação e para, de outro lado, as proferirmos nós mesmos.
Por mais frequente que nos seja a exposição de assuntos sérios, jamais uma alma que tem sede da verdadeira ciência experimentará a saciedade ou aversão. Eles lhe serão novos cada dia, e também cada dia desejados. E quanto mais a alma sedenta beber dessa ciência, tanto mais avidamente a escutará ou dela falará. E a repetição de tais santas verdades antes confirmará o conhecimento que ela tem delas, do que a encherá de enjoo pelas frequentes conferências sobre as mesmas.
É evidente indício de mente morna e soberba, receber com desgosto e negligência o remédio de palavras salutares, mesmo a custa de uma excessiva assiduidade em fazê-las escutar: “A alma saciada rejeita com mofa até favos de mel, ao passo que a alma carente acha doce até o amargo” (Prov 27,7).
Se, pois, se recolherem essas verdades com todo cuidado e forem guardadas no mais fundo da alma e marcadas com o selo do silêncio, elas serão depois como um vinho aromático, que alegrará o coração do homem. Amadurecidas por longas reflexões e ao ritmo demorado da paciência, elas se derramarão do vaso da tua alma com uma fragrância de perfume. Como uma fonte perene, elas vão transbordar dos veios da experiência e dos canais irrigantes da virtude. Brotarão do teu coração, como se viessem de um abismo profundo.
Acontecerá, então, contigo aquilo que nos Provérbios se diz a quem realizou tudo isto: “Bebe a água dos teus vasos e da fonte dos teus poços. Transbordem as águas da tua fonte e se espalhem nas tuas praças as tuas águas” (Prov 5,15-16). Segundo o profeta Isaías, “serás como um jardim bem irrigado, como uma fonte d’água que jamais secará. Os desertos que existem há séculos serão edificados para ti; levantarás os fundamentos postos de geração em geração; e serás chamado de construtor de sebes e restaurador da tranquilidade dos caminhos” (Is 58, 11-12).
Ser-te-á dada a bem-aventurança que o mesmo profeta promete: “O Senhor fará que não mais se separe de ti o teu mestre, e teus olhos verão o teu preceptor. E teus ouvidos escutarão a voz daquele que te avisará, gritando atrás de ti: eis o caminho; anda por ele, sem desviar para a direita nem para a esquerda” (Is 30,20-21).
Desta maneira, acontecerá que não somente a direção e a meditação do teu coração, mas também todas as divagações e movimentos do teu pensamento, serão para ti uma incessante e santa ruminação da lei divina.