SÃO JOÃO DA CRUZ — A SUBIDA DO MONTE CARMELO
EDITH STEIN: A CIÊNCIA DA CRUZ
A noite escura dos sentidos — Introdução ao significado da noite
A imagem poética desses versos é completa: nenhuma palavra doutrinária a interrompe. Os tratados da Subida e da Noite escura, textos de comentário, servem de chave para sua compreensão.
A alma que entoa esse cântico já atravessou a noite e chegou ao final, tendo-se unido ao divino Esposo. O cântico é, por esta razão, um hino de louvor à noite, que se transformou em caminho para a bem-aventurança. A exclamação de júbilo: “Oh! dichosa ventura!” é repetida várias vezes. Contudo, a escuridão e o medo não foram esquecidos: um retrospecto é capaz de dar ideia do estado em que se encontrou a alma.
A casa, da qual sai a Esposa, representa a parte sensível da alma; está sossegada porque todos os desejos se acalmaram. A alma conseguiu de lá sair porque Deus mesmo a libertou: por esforço próprio não o teria conseguido. (Subida, 1. I, c. I, Ed. Cr., I 36.)
Esses poucos esclarecimentos bastam para salientar a importante distinção entre a noite passiva e a noite ativa, das quais se há de falar mais expressamente quando tratarmos da relação entre ambas. A fim de se livrar dos grilhões da sua natureza sensível, deve a alma empenhar todas as energias disponíveis, mas é preciso que Deus venha em seu auxílio e lhe envie graça preveniente: Deus inicia sua ação e também a completa.
O desapego é designado como noite, que a alma tem de atravessar. E, na verdade, podemos falar em noite numa tríplice perspectiva, ou seja, a de ponto de partida, caminho e fim (objetivo). O ponto de partida é marcado pelo desejo das coisas deste mundo, a que a alma deve renunciar. A renúncia a coloca numa escuridão espessa, comparável a um nada — é por isso que lhe é dado o nome de noite. O mundo que percebemos com os sentidos é, naturalmente, o fundamento natural da nossa existência, o lugar onde nos sentimos em casa, lugar onde nos é posto à disposição o alimento e tudo quanto é necessário; é a fonte de nossas alegrias e prazeres. Vendo-nos privados deste mundo, ou obrigados a dele nos afastar, sentimo-nos como se a terra firme nos faltasse sob os pés; tudo ao redor de nós anoitece: é como sentir-se submergindo, aniquilando-se. Entretanto, não é isso o que acontece: seremos colocados num caminho que, embora tenebroso e imerso na noite, é seguro — é o caminho da Fé. É um caminho porque conduz à união com Deus; é envolvido em noite escura porque, comparado ao entendimento claro da razão natural, é obscuro. A fé nos leva a conhecer algo que não chegamos a ver bem claramente. O objetivo final do caminho é uma noite: nesta terra, mesmo ao atingir a união bem-aventurada, Deus permanece escondido de nós. O olhar de nosso espírito não é adaptado para sua excessiva luminosidade e enxerga como na escuridão noturna. Mas assim como a noite cósmica não se mantém igualmente escura em toda a sua extensão, assim também a noite mística tem períodos e graus variáveis de escuridão. O desaparecimento do mundo sensível é como o cair da noite, quando ainda resta uma luminosidade crepuscular, resquício da claridade diurna. Mas a fé é como a escuridão da meia-noite, porque neste ponto acham-se apagados não só a atividade dos sentidos, mas também o entendimento natural da razão. Quando, enfim, a alma encontra o próprio Deus, é como se rompesse em sua noite a alvorada do dia da eternidade.
Esta breve exposição permitiria salientar certos pontos de contato entre a noite e a cruz; entretanto, as relações tornam-se ainda mais evidentes ao considerarmos, separadamente, cada uma das várias fases da noite.