Caridade Teologia Negativa

Mestre Eckhart — MINNE E A TEOLOGIA NEGATIVA

Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos “Sermões Alemães” de Mestre Eckhart

O desprendimento (Abgeschiedenheit) afirma a identidade de Deus (Uno e Trino) como a ab-soluta plenitude de ser, de tal modo absoluto que fora dele não há nenhum ente atual e possível a que se possa atribuir com propriedade a possibilidade de ser. Deus é tudo, e o resto é nada, tão nada que só há Deus. Disto se tira a conclusão: Tudo que se sabe, se pode, se tem, se é dele, não é ele, e por conseguinte, dele nada sabemos a não ser que se sabe que dele nada se sabe, se pode, se tem e se é, a não ser o que ele não é. E como ele é a absoluta plenitude do ser, o nosso saber, poder, querer, ter e ser é nada. Nesse caso, essa compreensão negativa de Deus é o a priori ab-soluto, a partir e dentro do qual toda a nossa referência a Deus recebe o seu sentido.

Talvez, aqui, deixemos escapar a importância decisiva da diferença desse nada “medieval” em referência ao nosso nada usual. Este, como o costumamos entender, não nos conduz a mais nada, nem a si no que ele oculta. Pois marca passo na reedição inócua de um “vazio” prefixado como frustrada lacuna de privação do ser, cujo sentido do ser já está também prefixado como algo formal. Talvez esse nada nosso, usual, deva ser libertado dessa prefixação do sentido do ser do algo formal, de tal sorte que nada não mais ou nem sequer seja representado como ausência de algo, para que se desprenda, se solte, se livre o que se oculta no seu bojo. Na realização da realidade, para Eckhart, nada não é nada da negação lógica de algo lógico formal, não é nada de objetivo do ato do conhecer subjetivo da existência lógico-transcendental, mas recepção viva, na plena disposição da graça do toque da liberdade desprendida, a modo da plenitude do ser da liberdade-Minne. Assim esse nada “medieval” eckhartiano diz bem, em alto som: Dele nada sabemos, nada podemos, nada temos e somos, a não ser Ele mesmo, a saber, a plenitude, solta, desprendida, na ab-soluta gratuidade da sua liberdade. Isto equivale a dizer: A plenitude de ser, o ser, é Minne na sua acepção a mais ab-soluta da doação de si no “ato puro”, isto é, na gratuidade da sua difusão. É por não encontrarmos uma palavra adequada que dissesse de uma vez esse “modo de ser” todo próprio que não é nenhum modo, mas o próprio ser, que simplesmente usamos várias palavras como Ser, Deus, desprendimento, amor, liberdade, Minne, encontro, pessoa. Só que essa tentativa de “dizer e entender” não é como um ato do sujeito conhecedor, ao lado e juntamente com o ato de vontade e de coração-sentimento, mas — sem ou com todas as inumeráveis notificações que possuímos sobre o homem, já estabelecidas como sujeito e suas faculdades mentais, volitivas e sentimentais — desprendidos, isto é, soltos, de “corpo e alma”, ser o que somos na nascividade, a ab-soluta recepção grata da sorte, do destinar-se, da história, do evento denominado por Eckhart nascimento do Filho na alma e da alma no Filho, a partir e dentro de cuja filiação sonos existência humana, nela contidos todos os entes não-humanos, filhos no Filho Unigênito do Pai. Uma tal recepção é ser na igualdade Dele com Ele: É o Um na liberdade, na “Gottesminne”. Esse ser de corpo e alma a ab-soluta, desprendida recepção da filiação é como repercussão de um toque, é como cintilar de uma faísca18, é o in-stante, o “piscar” de olhos da mira no encontro do Pai no Filho e do Filho no Pai. Ser continuamente, sempre de novo esse cintilar, é a existência cristã, não no sentido confessional ou religioso, mas sim no sentido do ser desprendido no desprendimento da deidade. Nessa existência ser e pensar, ser e querer, ser e amar, é o mesmo. E essa mesmidade é algo como a pura e límpida transparência da disposição grata e obediente da liberdade de ser como Deus na recepção. Essa transparência da recepção na filiação é o intelecto, o conhecimento, o co-nascimento. A expressão teologia negativa não acenaria à pura positividade de um tal conhecimento ou co-nascimento, em sendo? É o que se chamou de especulação mística.