A estrutura metafísica da caridade na sua ordem humana [JBCP]

JEAN BORELLACARIDADE PROFANADA

TERCEIRA PARTE — ESTRUTURA METAFÍSICA DA CARIDADE NA SUA ORDEM HUMANA

INTRODUÇÃO: A CARIDADE ESPIRITUAL E OS DOIS MANDAMENTOS

Demonstramos na primeira parte como, enquanto virtude, a caridade era o lugar privilegiado da confusão do psíquico e do espiritual. Vimos então os diferentes aspectos desta confusão. Expusemos, na segunda parte, os limites e as determinações que impunham à caridade, por um lado a ambiência de uma cultura tradicional,e por outro a composição ternária da natureza humana, estabelecendo assim o fundamento antropológico da distinção do psíquico e do espiritual. Podemos agora tentar descrever a estrutura metafísica da caridade em suas três ordens, humana, divina e cósmica.

Como compreender que a caridade é a via espiritual por excelência, ou mesmo somente que ela é uma via espiritual, enquanto na compreensão que dela se dá, e na qual ela é igualmente recebida, ela se identifica sempre e inabalavelmente ao altruísmo, à filantropia, e a suas diferentes modalidades, como o socialismo, o progressismo, o pacifismo, etc., quer dizer algo de puramente humano, senão mesmo por vezes de infra-humano? Ou ainda: qual é o conteúdo da mensagem de amor? Que compreensão dela temos? Se a espiritualidade mais alta consiste em fazer o que podem fazer ateus, e mesmo os inimigos os mais arraigados de toda espiritualidade, não há aí pelo menos uma contradição? Se o conteúdo da caridade, é a fraternidade e o humanitarismo, como o pensa maciçamente a quase totalidade do clero e dos laicos, então em que consiste a via espiritual por excelência? A questão não é saber se a entreajuda humana, sob todas as suas formas é boa ou má, pois uma tal questão não se coloca e nunca jamais se pôs1. A questão é de saber se é isso a caridade. Se sim, então não há mais caridade espiritual, quer dizer, de caridade no sentido próprio do termo, nem também de Revelação, não se vê porque o Cristo se encarnaria, se só tivesse por meta nos ensinar, como um segredo supremo, o que todo mundo admite sem dificuldade. Se os cristãos que identificam caridade e socialismo, caridade e revolução, e finalmente caridade e felicidade terrestre universal, não eram cristão, não haveria no fundo problema. Eles não decorariam sua ação humana com um vocábulo sagrado. Eles estariam a todo respeito muito mais modestos, e de certa maneira, muito mais lúcidas. Em face desta “compreensão” naturalista e sentimental da caridade, que se poderia muito exatamente definir como caridade triunfalista, e da qual se poderia indefinidamente falar sem convencer ninguém, é preciso portanto relembrar a verdadeira compreensão metafísica da caridade do Cristo2.

A caridade é o lugar privilegiado da confusão do psíquico e do espiritual. Isso significa que a verdade da caridade reside na distinção do psíquico e do Espiritual, e que realizar a caridade é realizar esta distinção. A realização desta distinção consiste na morte do ego que é amor próprio, quer dizer desejo possessivo de si. O que era centro ilusório deve aceitar se tornar periferia, assim como pela relação ao Centro suprema que só é o verdadeiro Centro, que em relação a estes outros centros ilusórios que são os outros eus, os alter egos. Dizer “eu”, que disto se tenha consciência ou não, é negar Deus e o outro. Sem dúvida esta negação é de algum modo inevitável, mas não menos resta que ela introduz a ilusão separativa entre Deus e o homem, entre o homem e os homens entre o homem e ele mesmo. Ora o amor é união. Dizer que o amor resume a Lei e os Profetas, quer dizer que é abolição da ilusão separativo, logo do ego. Ou ainda, dizer que é preciso amar Deus, e o próximo como si mesmo, isso significa que é preciso renunciar ao ego. E ainda: renunciar ao ego, é amar Deus e o próximo como um outro si mesmo. Mas não é o ego que, por suas próprias forças, pode renunciar a ele mesmo. Só o Amor divino pode amar a ponto de dissipar a ilusão da separatividade. Só o Amor pode dar ao ego, não a força de se extinguir, mas o conhecimento operativo de seu próprio nada, que é ao mesmo tempo conhecimento do Ser. Não se trata para o ego de ser outra coisa que esta ilusão de si mesmo que o caracteriza, o que é uma impossibilidade pura e simples, mas disto tomar consciência. Pois a consciência ou conhecimento especulativo é por essência antecipação disso que ela ainda não realizou. Nisso, ela é mais que o ser ou a vontade. O Amor divino transforma o conhecimento especulativo de antecipação em conhecimento operativo de realização. Eis porque, como dizem os Padres gregos e a Escritura, a caridade é a porta da Gnose.

A ordem humana da caridade comporta duas dimensões, horizontal uma e vertical a outra: o amor do próximo e o amor de Deus. Estas duas dimensões se cruzam no amor de si. Esta estrutura nos dita nosso plano. Estudaremos o amor do próximo em um primeiro capítulo (X), depois em um segundo, o amor de si e o amor de Deus (XI).


  1. Ela não põe que em uma ótica marxista, posto que, para ela todo homem devendo tudo sacrificar à felicidade da humanidade, o caráter absoluto da entreajuda fraternal a transforma em utopia.  

  2. O Cristo nos convida a amar nossos inimigos e orar para aqueles que nos perseguem. Se se adota o ponto de vista da caridade triunfalista, que é totalmente embebida de marxismo, seria preciso em boa lógica que os pobres amam os ricos, os oprimidos seus opressores, os operários explorados seus patrões exploradores, seus povos colonizados os estados imperialistas, etc. ; pois trata-se cada vez de seu inimigo. Se bem que nós chegamos a compreender como o Evangelho por justificar a luta de classes.