Dos equívocos aqui sinalados de relance, alguns levam a admitir que o compilador do Boosco não compreendeu, aqui e acolá, o original de Petrarca, contentando-se com transcrevê-lo materialmente; outros parecem corroborar a hipótese de eles representarem uma leitura errônea do original, inédito ou impresso, que serviu de base à impressão de 1515. Em abono deste modo de ver, pedimos vénia para aduzir mais alguns exemplos.
Ao descrever a “miséria” do homem ocupado em negócios na hora do jantar, escreve Petrarca, I, 2, 3, p. 24: circumstant canes aulici muresque domestici; lanço assim reproduzido pelo Boosco, cap. 20, fl. 12 c, n. 154, l. 4-7, p. 53; “estam arredor dele os caães do paaço, que som os mais e maiores seus chegados, e os mures domésticos, que som os servidores da casa”. Salvo engano, nunca existiu em português o vocábulo mures.
No cap. 36 do Boosco, fl. 19 d, n. 251, l. 8, p. 87, o ancião a que se refere Terêncio em sua comédia Adelphoe — no dizer de Petrarca, I, 4, 1, p. 37: meminerit Terentiani senis in Adelphis — passa a ser “o velho filósofo dom Terenciano”.
Em II, 3, 3, p. 97, alude Petrarca a Arnulfo, eremita no termo de Metz e bispo daquela cidade: territorii Metensis eremicola atque eiusdem urbis episcopus. Pois bem, deste incompreendido territorii fêz o Boosco, cap. 94, II. 46 b- c, n. 534, l. 2-3, p. 211, a cidade de Teritónia…
No cap. 68, fl. 37 d- 38 a, n. 459, l. 8-9, p. 172, o diversorium viatorum , “pousada de caminheiros”, de Petrarca, II, 1, 8, p. 81, foi treslido diversorum viatorum, “dos desvairados caminheiros”, por mais inverosímil que seja o equívoco, com a circunstância agravante de o mesmo cochilo ocorrer outrossim no cap. 45, fl. 24 c, n. 319, l. 10-11, p. 110.
Distração muito parecida deparamos no cap. 84, fl. 41 d, n, 495, l. 11-14, p. 190, onde a exclamação latina de Petrarca, II, 1, 11, p. 85, credo, edepol, “creio, por Pólux!”, vem transformada em “aquela casa que chamam Edepol”.
Seja como fôr, significativas coincidências com o texto de Petrarca não escasseiam no Boosco, que nem sequer omite, por exemplo, o trocadilho de fama com fame — I, 2, 2, p. 23: non potius deserti famem quem diserti fama m concupierit; cap. 19, fl. 12 a, n. 147, l. 7-8, p. 51: ante nom cobiiçou fazer vida em o deserto com fame, ca haver a fama do põboo (pena foi não contrapor a fame do deserto à lama do diserto… ) — ou reflexões ingênuas como a do cap. 38, fl. 20 d, n. 264, l. 14-17, p. 92, onde, referindo-se à singeleza do solitário, pondera que, no ermo, não há “quem faça engano senom aos peixes, tomando-os com o anzolo, e aas aves, tornando-as com visco ou com o laço”, mera transcrição de Petrarca, I, 4, 3, p. 39: quem praeter pisces hamo, quem praeter feras ac volucres visco fallat aut laqueo?
A partir do capítulo CXVIII, desaparece para sempre da cena D. Francisco solitário. Não nos cabe indagar aqui se, afora as partes do Boosco directamente tomadas do De vita solitária, houve nele influência de outros escritos de Petrarca. Seria instrutivo, por exemplo, averiguar a procedência do lanço consagrado ao mal identificado frade da ordem dos Pregadores, Dom Vicêncio, que não figura no De vita solitária, mas de quem refere o autor daquele trecho que “o conhecera mui bem, ca muitas vezes o vira e falara com ele” (cap. 49, fl. 27 c- 28 c, n. 361-373, p. 125-129). £ certamente de origem italiana a invectiva contra modas estrangeiras, “que mudam a honra de Itália em costumes bárbaros” (cap. 59, fl. 34 d, n. 432, /. 10-11, p. 159), talvez mera adaptação, mais livre, de I, 9, 3, p. 63:… molestiarum mearum prima et máxima, ex humani generis, atque in primis Italiae, commiseratione proveniens, unde olim virtutum exemplaria petebantur, quam, heu, nunc video peregrinorum rituum imitatione corruptam et domitarum a se gentium, ut quondam spolíis, sic nunc erroribus exundantem. É de notar, aliás, que há, no Boosco , pelo menos mais duas alusões à Itália.
As últimas partes do livro têm carácter mais acentuadamente ascético. Já resolvido a mudar de vida, o solitário concentra-se na consideração da miséria humana, esboçada em termos vigorosos e impressionantes (cap. 113, fl. 58 b- 59 b, n. 622-627, p. 265-209).
Por fim, purificado de todo, o penitente está preparado para os arroubos da mais sublime contemplação, em que recebe os últimos retoques da graça, até ser triunfalmente introduzido na glória celestial. Há, nesses capítulos, dificuldades de compreensão provenientes, não de imperícia do escritor, mas do próprio assunto: trata-se de realidades sublimes “que nom podem entender senom aqueles que as provarem” (cap. 149, fl. 73 a, n. 735, l. 6-8, p. 334).
Tão-pouco figura no De vita solitária a primeira parte do Boosco. No capítulo inicial, o pecador arrependido é conduzido a um bosque muito espesso de aprazíveis árvores, em que docemente gorjeiam muitos passarinhos, perto de um lindo campo de muitas ervas e (roles de bõo odor — lugar-comum fartamente explorado pela literatura pastoril. Tenha-se presente, por exemplo, nosso continuador da tradição petrarquista, Fr. Heitor Pinto, que, logo no capítulo I do diálogo consagrado a vida solitária, I, 1843, p. 305, é convidado a “sentar-se e lograr deleitosa floresta, coberta de uas viçosas ervas que, meneadas de temperado vento, faziam uns verdes claros e escuros graciosos”. Depois de orar para ser livre das trevas da morte, aparece ao mesquinho pecador um mancebo vestido de panos brilhantes como fogo e cuja face era clara como o sol quando nace em tempo da grande queentura. Este glorioso guiador o leva à residência encantada das Virtudes — Justiça, Misericórdia, Ciência da Sagrada Escritura, Fé, Esperança, Caridade. . . — que lhe dirigem insistentes exortações, até encontrar-se, no capítulo XVI, com o nosso já conhecido D. Francisco solitário. A alegoria — será escusado lembrá-lo — é artifício literário de que o gênio artístico da Idade Média costumava lançar mão para dar forma expressiva a conceitos abstractos; e a esta tendência não conseguiu subtrair-se de todo Francisco Petrarca, rico embora de pressentimentos modernos. Quanto ao glorioso guiador, lembra-nos, — para não falarmos na Beatriz de Dante — o encontro, no proêmio do Secretum, com a figura deífica e refulgente, em quem Petrarca reconhece a Verdade, talvez idêntica à Donna piu bella assai che il sole, da canção 119.
No tocante à presente edição, bastará reafirmar aqui que envidámos esforços, para tornar o precioso cimélio acessível ao maior número possível de leitores. Para isso, subdividimos o livro — seu tanto arbitrariamente, cumpre reconhecê-lo — em partes distintas, que, de algum modo, lhe quebrem a monotonia; simplificámos a grafia, sem prejuízo, claro está, da genuidade do texto; introduzimos pontuação, abrimos alíneas, sinalámos com tipo itálico as leves inovações que julgámos necessárias para dar ao texto sentido satisfatório; lançámos mão, numa palavra, de todos os recursos que se nos afiguraram aconselháveis, em ordem a apresentarmos ao leitor moderno o que alguém poderá denominar, se lhe aprouver, edição ad usum Delphini. Para o gosto mais apurado de medievistas sabedores reseriamos o fac-símile do texto de 1515, que fará parte de nossa Biblioteca fac-similar e crítica de literatura medieval e quinhentista, integrada, como fica dito em apêndice do presente volume, nos Anexos do Dicionário Medieval e Clássico.
O segundo volume será constituído por excursos elucidativos e extenso glossário.
O Boosco despertara o interesse do malogrado filólogo português Abílio Roseira, que lhe preparava uma edição crítica quando morte prematura veio arrebatá-lo aos estudos filológicos. A notícia é-nos dada pelo distinto humanista Rebelo Gonçalves em Filologia e Literatura, São Paulo, 1937, p. 234. Sem pretendermos substituir aquele erudito, faremos quanto em nós couber para levarmos a bom termo o dificultoso empreendimento.
Mas é tempo de cortarmos por mais delongas. Está à porta, aguardando por nós — e estaria impaciente, se defeito coubesse em anjo — o nosso amável guiador, a convidar-nos com gesto amigo e benevolente sorriso: me duce, carpe viam.
Rio, 2 de Fevereiro de 1950
Augusto Magne