BOOSCO DELEITOSO I — PARTE I — CAPÍTULO 2
I-2 — O CAMPO FREMOSO E O BOOSCO ESCURO
8. Seendo eu, mesquinho pecador, em tal estado, ia muito amiúde andar e espaçar per uu campo mui fremoso, comprido de muitas ervas e froles de bõ odor. Mais nunca se de sobre mi partiam aquelas treevas mui escuras, que me cercavom em-derredor e dentro em a minha consciência. E acerca daquele campo estava uu boosco mui espesso de árvores mui fremosas, em que criavom muitas aves, que cantavom mui docemente, como quer que o boosco era escuro com névoa que havia em ele.
9. E andando eu per aquele campo, ouvindo os doces cantares das aves e mirando as fremosas froles, dizia muitas vezes ao Senhor Deus:
— Senhor, amercea-te de mi! Quem me livrará destas treevas de morte?
E as aves do boosco me respondiam:
— A graça de Deus per Jesu Cristo te livrará. Entom tive mentes à minha parte deestra, e vi estar uu mancebo mui fremoso, vestido de vestiduras de fogo mui esprandecente, e a face dele era crara como o sol, quando nace em o tempo da grande queentura. E ele estava cingido com uua cinta de ouro, e em uua (2, c) maão tiinha uua segur mui aguda de aço mui luzente encastoada em ouro, e em na sua cabeça trazia uua grilanda de pedras preciosas, e trazia às mui esprandecentes em seus pees.
10. E eu preguntei-lhe, assi como homem espantado, que voz era aquela daquelas aves, e ele me disse:
— Estas aves som os santos doutores que ordenarom a santa escritura, e eles te confortam e eles te amoestam e eles te ameaçam muitas vezes, segundo tu bem sabes. E tu, cuberto de trevas, não queres entender pera te correger e pera bem obrar. Homem, pára mentes em sua doutrina e correge tua vida e confia em na misericórdia de Deus, ca tanto e mais quer ele livrar os mizquinhos da sua mizquin-dade, como eles mesmos querem, ca ele os convida que lhe peçam misericórdia.
11. E certamente não convidaria ele os homeês, que lhe pidissem, se lhes ele dar não quisesse. Mas ele diz: “Pidide e receberedes”. E porém haja vergonça a priguiça dos homeês, ca mais lhes quer ele dar, que eles querem receber; e mais se quer ele amercear, ca os homeês querem seer livres da mizquindade, e muitas vezes oferece a misericórdia de Deus ao homem aquêlo que ele não ousa de pedir; ca a sua misericórdia melhor é sobre todas as vidas, ca por muito louvada que seja qualquer vida dos homeês, confusom será a ela, se fôr escoldrinhada sem misericórdia; e a sua misericórdia é sobre todas as suas obras, e a sua propiadade é amercear-se e perdoar. E porém, amigo, toma fiúza e esperança em a misericórdia do Senhor e não desesperes com tristeza, ca com tal tristeza é derribado o esprito do homem em perfundeza de desesperação: mais consiira que o Senhor Deus é justo e dereito.
12. E porém não deves teer em pouco os teus pecados; pero, consiirando que ele é piadoso, não queiras desesperar, mas have temor da tua fraqueza e espera sempre na misericórdia do Senhor Deus e da beenta Virgem sua Madre, Maria, que é madre de misericórdia; ca, como quer que ela seja mui louvada em todas as virtudes e se alegrem os homeês com a sua virgindade e se (2, d) maravilhem da sua humildade, pero a sua misericórdia é mais doce e mais saborosa aos mizquinhos, e com maior amor se abraçam com ela e da sua misericórdia se lembram e a chamam mais amiúde que as outras suas virtudes. E porém, amigo, a tua alma, que é seca, vaa-se trigosamente a esta fonte, e a tua mizquindade recorra-se com todo cuidado a esta alteza da misericórdia da beenta Virgem, ca ela escança vinho de consolação pera os tristes e desconsolados.
13. Quando eu, triste e mesquinho pecador, ouvi estas palavras daquele mui esprandecente mancebo, esforçou-se o meu coração, e respondi nesta guisa:
— Senhor, todo o meu merecimento o amerceamento é de Deus, e porém queiro tomar teu conselho, ca entendo que de todo não perecerei, porque o Senhor é misericordioso, e a sua beenta Madre, que nunca falece aaquêles que a chamom em nas suas necessidades.