Nicolas Boon — No Coração da Escritura
Segundo Nicolas Boon (Au coeur de l’écriture), este termo vulgarizou-se, guardando, no entanto, seu sentido de “transmissão fiel de um corpo doutrinal”. Entretanto, a simples transmissão de uma doutrina, como se fosse um “buquê de flores”, não garante que os elementos desta doutrina, nesta analogia estas flores do buquê, cortadas de seus canteiros originais, não venham a morrer; fato comum na transmissão de ritos, que pela ignorância, se tornam simplesmente maneiras de agir e cessam de ser ritos, no sentido profundo do termo.
Todavia, é legítimo considerar que um certo número de virtualidades, nesta abordagem da tradição, ainda se salvam, embora recolhidas em si mesmas, esperando o justo conhecimento para transformá-las de virtualidades em atualidades. Com efeito, a razão profunda deste deplorável estado de coisas, está na transmissão como simples passagem de objetos de um para outro. Esquece-se muitas vezes que a doutrina, assim como o rito, é um ser vivo que se estende além da dimensão humana, a ponto de se poder dizer que é um absurdo, qualquer pretensão à verdade, ou à compreensão do oculto.
O que se passa na realidade é que na justa transmissão se é possuído pela verdade, se é levado ou transformado pelo oculto, pelo segredo. A Tradição, como “transmissão regular de princípios e de influências espirituais”, sublinha o caráter sagrado desta transmissão; pois a palavra “regular” corresponde a “rito”. No entanto, esta definição ainda é uma “de-finição”, e como tal limitada, sustentando uma dualidade entre princípios e influências, como se fossem coisas distintas. Uma separação que põe em risco o entendimento do que é Tradição.
O risco está justamente, se se toma “princípios”, como um certo número de teorias, sob um intelectualismo onde o termo “princípio” assume facilmente o significado de afirmação geral, formando a base de certa doutrina. Este risco pode ser evitado, ao se considerar o termo “influência”, complementar na definição, levando em conta que toda influência supõe um influente, logo um ponto de partida, e também um ponto de chegada. Deste modo, seria correto denominar o ponto de partida da influência ou o influente, “princípio”, como é de fato, pois se assim não fosse “princípio”, seria por sua vez algo receptivo a uma outra influência, e assim se poderia ir ad infinitum. Quando falamos de princípio, não se trata tanto de um ponto de doutrina mas de uma fonte vital; haja visto o que a tradição judaica entende pela Torá, que no espírito ocidental fixou-se como “Lei”.
Em realidade, a Torá é comparada à Árvore de Vida, e o termo ele mesmo contém a noção de ordem interior, logo orgânica. Toda cristalização condena a noção mesma de Princípio porque ele é feito para ser “fonte”, meio orgânico. Deste modo faria até mais sentido se juntar “princípios” e “influências”em uma expressão “princípios influentes”. Assim sendo se reconheceria a tradição, enquanto transmissão, na condição de compreendê-la como um trans-posição ou uma transformação, dando a esta palavra “forma” toda sua extensão ontológica.
A Tradição é por conseguinte uma “transposição” — palavra que denota lugar — do homem no “lugar” por excelência; a iniciação sendo essencialmente isto: colocar o homem “de fora de dentro”; este dentro sendo o “lugar” onde só a luz é. A luz equivale ao conhecimento real quer dizer unitivo. O iniciador neste caso é representante ou suporte direto do princípio influente. Ele não transmite um saber pessoal. Ele transmite simplesmente o segredo inerente a este conhecimento real.