Bonaventura Contemplatio 4-6

BOAVENTURA — ITINERÁRIO DA MENTE A DEUS

A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS NOS SEUS VESTÍGIOS IMPRESSOS NO MUNDO SENSÍVEL

4 Todo este mundo sensível, então, com os seus três gêneros de seres, entra na nossa alma pela percepção. Notemos, no entanto, que as coisas sensíveis — que são as primeiras a penetrarem na alma pela porta dos cinco sentidos — sendo exteriores e materiais, não entram pela sua substância material, mas unicamente pela sua semelhança ou imagem. Esta imagem se forma primeiramente num lugar intermédio e distinto. Daí passa aos órgãos externos. Estes a transmitem ao sentido interno e daqui passa à faculdade perceptiva.

É assim que as imagens de todas as coisas que provêm de fora — geradas primeiro neste lugar intermédio, transportadas depois aos nossos órgãos pela reação da faculdade apreensiva sobre a imagem — engendram a percepção de todos os objetos exteriores.

NOTA: Os Editores de Quaracchi (t. V, p.300, nota 6) lembram as categorias da psicologia noética que aqui estão em jogo e cujos antecedentes podem encontrar-se em Aristóteles e S. Agostinho: a faculdade perceptiva — ou potência apreensiva pela qual se toma conhecimento (gnosis) dos objetos exteriores — se divide em externa e interna. A primeira compreende os sentidos externos. A segunda, por sua vez, abrange o sentido comum, a imaginação (ou “fantasia” para os escolásticos), o juízo e a memória.

5 Quando a percepção tem por objeto uma coisa que nos convém, então ela vem acompanhada de prazer. Efetivamente, o sentido se compraz no objeto percebido mediante a imagem ou semelhança abstraída dele, seja por causa de sua beleza — quando se trata da vista — seja por causa de sua suavidade — como no olfato e no ouvido — seja por causa de sua salubridade — quando se trata do gosto e do tacto.

Mas a razão de todo prazer é a proporção. Ora, a imagem donde provém o prazer é simultaneamente forma, virtude e ação. É forma em relação ao objeto donde emana. É virtude ou potência em ordem ao meio pelo qual passa. É ação em razão do término sobre o qual age.

Conseqüentemente, considerada na imagem sensível, enquanto tem caráter de forma, a proporção se chama beleza. Com efeito, “a beleza não é senão uma igualdade numérica”, isto é, “uma certa disposição das partes unidas à suavidade das cores”. (S. Agostinho, VI De Musica, cap. 13, n. 38, e XXII De Civitate Dei, cap. 19, n. 2)

Considerada novamente na imagem sensível, enquanto tem caráter de potência ou força, a proporção se denomina suavidade, sempre que a virtude agente não exceder à capacidade daquele que recebe a impressão sensível. O sentido, de fato, sofre nos extremos e se compraz no meio-termo.

Finalmente, considerada na imagem sensível, enquanto tem caráter duma impressão eficaz, a proporção chama-se salubridade, sempre que o agente, pela sua ação, satisfaz uma necessidade do recipiente. Esta ação é, então, salutar para ele, porque o conserva e o nutre. É sobretudo no gosto e no tacto que se experimenta esta atividade benéfica.

NOTA: “Por outras palavras, o prazer supõe a proporção. Por conseguinte, a imagem que compraz a nossos sentidos deve ser proporcionada. Ora, a imagem é simultaneamente três coisas: forma, porque é a semelhança da natureza (forma) do objeto sensível; potência, porque, pela virtude do objeto, ela atravessa o meio e chega ao órgão; ação, porque, recebida no órgão, ela age e concorre à percepção do objeto. É mister, pois, que, para comprazer aos sentidos, a imagem tenha uma tríplice proporção. Enquanto forma, ela será proporcionada se for bela, se o objeto que ela representa for bonito. Enquanto potência, ela terá proporção, se for suave, se não ultrapassar a capacidade de nosso órgão e se não chegar a ele com demasiada força. Enquanto ação, ela terá proporção, se for salutar, isto é, se o efeito por ela produzido for benéfico para nossa natureza”. Ch. de Bordeaux, op. cit., pp. 188-189, nota 9. Isto se explica ainda mais facilmente se levarmos em conta que, para S. Boaventura, há “uma certa circumincessão (ou interpenetração) entre a alma e suas potências e entre as potências entre si, no sentido de se exigirem mutuamente. Não se pode pensar na alma prescindindo do intelecto e da vontade, como não se pode pensar um ato intelectivo e volitivo prescindindo da racionalidade, que é precisamente o constitutivo da alma”. E é esta doutrina que fundamenta a concepção bonaventuriana da sensação. No pensamento de S. Boaventura, “a sensação é uma modificação passiva do composto humano, mas, por ser inseparável do juízo com que sentimos o objeto como belo, comprazível, benéfico ou não, é mister dizer que a sensação começa no órgão, mas se realiza na alma. De fato, a beleza consiste numa exata relação numérica; o prazer, numa proporção; a salubridade, numa conveniência entre o objeto e o nosso órgão”. Todas estas coisas “indicam uma penetração da racionalidade na sensação”. E. Bettoni, op. cit., pp.119-120. Para uma exposição mais técnica, cf. E. Gilson, op. cit., pp.274-304.

Daí se deduz que as coisas sensíveis entram na alma pela sua imagem ou semelhança, produzindo prazer de acordo com as três maneiras que lhe são próprias.

6 O juízo segue à percepção e ao prazer. Com o juízo não se julga apenas se uma coisa é branca ou preta — o que pertence a um sentido particular — ou se é nociva ou benéfica — o que é próprio do sentido interior ou comum. Mas também se julga e se dá a razão do por que essa coisa nos é agradável. Com o juízo, portanto, procuramos a causa do prazer que a percepção dum objeto nos faz experimentar. Mas buscar a causa do prazer sentido é procurar a causa da beleza, da suavidade e da salubridade do objeto. Descobrimos, assim, que a dita causa é uma proporção de igualdade. Ora, a razão da proporção é a mesma tanto nos objetos grandes como nos pequenos. Ela não se estende com as dimensões. Nem passa com o que passa nem o movimento das coisas a altera.

A natureza da igualdade é, pois, independente do lugar, do tempo e das mutações. Por isso mesmo, ela é imutável, sem limites no espaço e no tempo e inteiramente espiritual.

0 juízo é, portanto, o ato que faz entrar na inteligência, depois de tê-la depurado pela abstração, a imagem sensível percebida pelos sentidos.

E assim todo este mundo sensível entra na alma humana pela porta dos sentidos, mediante as três operações de que acabamos de falar. (quer dizer: a percepção, o prazer e o juízo)