Ambrósio de Milão — Lc 10, 30-37. O bom samaritano
30 Suscipiens autem Iesus dixit: Homo quidam descendebat ab Hierusalem in Hiericho, et incidit in latrones, qui etiam despoliauerunt eum: et plagis impositis abierunt semiuiuo relicto. 31 Accidit autem ut sacerdos quidam descenderet eadem uia et uiso illo praeteriuit. 32 Similiter et leuita, cum esset secus locum et uideret eum, pertransiit. 33 Samaritanus autem quidam iter faciens uenit secus eum et uidens eum, misericordia motus est. 34 Et appropians alligauit uulnera eius, infundens oleum et uinum et imponens illum in iumentum suum duxit in stabulum et curam eius egit. 35 Et altera die protulit duos denarios et dedit stabulario et ait: Curam illius habe: et quodcumque supererogaueris ego cum rediero reddam tibi. 36 Quis horum trium uidetur tibi proximus fuisse illi, qui incidit in latrones? 37 At ille dixit: Qui fecit misericordiam in illum. Et ait illi Iesus: Uade, et tu fac similiter.(Lc 10, 30-37)
Obras de San Ambrosio, I , Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC),Madrid, 1966, 655 p., edición bilingüe preparada por el padre Manuel Garrido Bonaño,O.S.B.
Contribuição e tradução anotada de Antonio Carneiro das páginas 379 até 384
Livro Sétimo : 71-84
Lc 10, 30-37. O bom samaritano
71. “Um certo homem descia de Jerusalém a Jericó.” A fim de explicar mais claramente a passagem que propusemos, repassemos a história antiga da cidade de Jericó. Recordemos, pois, que Jericó, como lemos no livro que escreveu Josué, filho de Nave, era uma grande cidade cercada por muralhas, inexpugnável às armas e inatacável; nela vivia a prostituta Rahab, que foi a que hospedou os batedores que Josué enviou, ajudou-lhes com seus conselhos, quando perguntada sobre eles respondeu que já se haviam ido, estavam escondido sob seu teto, para escapar da cidade da destruição pela força, atou um manto escarlate na janela; entretanto foi exatamente quando os muros inexpugnáveis dessa cidade caíram no solo ao som das sete trombetas dos sacerdotes1 acompanhado pelo estrondo jubilosos do povo.
72. Olhai como cada um tem seu próprio quefazer: o batedor, a vigilância; a meretriz, o segredo; o vencedor, a fidelidade; o sacerdote, a religião; os primeiros desprezam o risco para ganhar honras; aquela nem mesmo entre perigos trái os que recebeu; o vencedor, mais preocupado em conservar a fidelidade que em vencer, manda antepor a saúde da meretriz à ruína da cidade; e por fim, a arma própria do sacerdote, que não é outra senão a força da religião. Quem não se admirará, e com razão, em ver que de toda a cidade só se salvará aquele que foi ajudado pela meretriz?2
73. Eis aqui, pois a breve verdade histórica, que considerada mais profundamente, nos revela admiráveis mistérios. Com efeito, Jericó é figura deste mundo, o qual desceu Adão lançado do Paraíso, quer dizer, daquela Jerusalém Celeste, por sua prevaricadora queda, passando da vida à morte; desterro este de sua natureza que lhe ocasionou uma mudança, não certamente de lugar, mas sim de costumes. E assim ficou um Adão bem diferente daquele primeiro3 que usufruía de uma felicidade sem ocaso, mas que tão logo, como se precipitou aos pecados deste mundo, caiu nas mãos dos ladrões, a quem não teria ido parar se não tivesse se afastado do mandato celeste. Quem são estes ladrões senão os anjos da noite e até das trevas, que de vez em quando se transformam em anjos da luz (2 Cor 11,14), ainda que de fato não possam permanecer muito tempo nesse estado? Estes primeiros nos despojam da vestimenta da graça espiritual que recebemos, e é assim comumente que logram seus primeiros impactos; mas, se guardamos intactos as vestimentas recebidas, não sentiremos os golpes dos ladrões. Tem, pois, cuidado para não ser despojado, como foi Adão, da proteção do preceito celestial e privado das vestimentas da fé, já que para isso deveu-se que fosse ferido mortalmente, ferida mortal que teria contagiado todo o gênero humano se aquele Bom Samaritano, descendo do céu, não tivesse curado essas perigosas chagas.
74. E não é um samaritano qualquer este que não desprezou aquele que havia sido preterido pelo sacerdote e pelo levita. Não desprezes aquele que leva o nome de uma seita cuja interpretação te vai encher de admiração; com efeito, o vocábulo “samaritano” significa guardião. Demos agora uma interpretação para tudo isto. Na verdade, quem é o custódio verdadeiro, senão aquele de quem se escreveu: “O Senhor guarda os pequenos” ?(Sl 114,6). Pois do mesmo modo que tem um judeu que é tal segundo a letra e outro conforme o espírito, assim também se dá uma maneira de ser samaritano que se vê e outra que jaz oculta. Enquanto descia, este samaritano — “quem é este que desceu do céu, senão o que sobe ao céu, o Filho de Deus que está no céu” ?(Jo 3,13) — tendo visto um homem meio morto, a quem ninguém quis curar (o mesmo caso que a que padecia de fluxo de sangue e havia gastado em médicos todas suas finanças), “chegou-se à ele”, quer dizer, compadecido de nossa miséria, fez-se íntimo e próximo nosso para exercitar sua misericórdia conosco.
75. “E vendou suas feridas untando-as com azeite e vinho”. Este médico tem infinidade de remédios, mediante os quais realiza, comumente, suas curas. Medicamento é sua palavra; esta, atua como vinho; venda feridas quando expressa um mandato de uma dificuldade mais que regular; suaviza perdoando os pecados, e atua como o vinho anunciando o juízo.
76. “E o colocou — disse ele — sobre seu jumento”. Ouve atento de maneira como se realiza contigo. “Então suportou nossos pecados e sofreu por nós.” (Is 53,4). E o pastor colocou a ovelha cansada “sobre seus ombros.”(Lc 15,5). O homem na verdade se fez semelhante a um jumento e por isso nos colocou sobre o jumento para que não fôssemos “assim como o cavalo e o mulo” (Sl 31,9) e assumiu nosso corpo para abolir as enfermidades de nossas carnes.
77. Em seguida aquele que conduz “portanto nos guardou num estábulo”, já que éramos jumentos. E é no estábulo, que cansado pelo fato de uma longa viagem se tem o costume de ir em seguida. Portanto aquele que conduz nos guardou no estábulo do senhor, “que pôs de pé a miséria da Terra e levantou os pobres do esterco”.
78. “E cura o necessitado”, informou que esse doente não teria recebido de maneira nenhuma mas aceitou antecipadamente para esse lugar por longa duração. Por outro lado, este Samaritano não tinha tempo para permanecer durante muito tempo na Terra: deveria voltar ao lugar de onde havia descido.
79 Portanto “ao dia seguinte” — mas qual é esse outro dia senão o domingo da ressurreição do Senhor, do qual foi dito: “este é o dia que fez o Senhor?” (Sl 117,24) — “tomou dois denários e deu-os para o estalajadeiro e disse : trate dele com cuidado4.”
80. Que significam estes dois denários senão os dois testamentos que levam impressos a efígie do eterno Rei e com os que nossas feridas conseguem sua cura ? Porque fomos redimidos a preço de sangue (1Pd 1,19) para não ser vítimas das feridas da última morte.
81. Como ia dizendo, os dois denários, — não creio ser absurdo entender isso com relação aos quatro livros5 — , foram aceitos pelo estalajadeiro. Quem é este? Talvez aquele que disse: “e avalio como esterco, em relação a ganhar o Cristo” (Fl 3,8),6 e por este mesmo Cristo teria cuidado do homem ferido. O estalajadeiro é, na realidade, aquele que disse: “Cristo me enviou para evangelizar” (1Cor 1,17). Os estalajadeiros são esses homens sobre os quais se disse: “Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho para toda criatura, e o que crer e for batizado será salvo” (Mc 15,16), salvo verdadeiramente da morte e salvo das feridas que possam infligir os ladrões.
82. Bem-aventurado esse estalajadeiro que pode curar as feridas do próximo! e, bem-aventurado aquele a quem disse Jesus: “O que gastes de mais te lho darei na minha volta!” O bom dispensador dá sempre em demasia. Bom dispensador foi Paulo, cujos sermões (sic) e epístolas são como algo que transborda ao que havia recebido, cumprindo o mandato explícito7 do Senhor de trabalhar sem descanso corporal nem espiritual, a fim de obter, por meio da predicação de sua palavra, o preservar a muitos de sua fraqueza do espírito. Eis aqui, o estalajadeiro do estábulo no qual o “asno conheceu o presépio de seu amo” (Is 1,3) e no qual há um lugar seguro para os rebanhos de ovelhas, com o fim de que, à esses lobos rapaces que uivam ao redor dos apriscos8, não lhes resulte fácil concretizar seus ataques às ovelhas.
83. Mas Ele, ademais, promete uma recompensa. E, quando virás, Senhor, a nos dar senão no dia do juízo? Porque, ainda que Tu estejas sempre em todo lugar e vivas entre nós, se bem que não te vemos, contudo chegará um momento no qual todo homem te verá voltar. Paga, pois, o que deves. Bem-aventurados aqueles homens aos que deve Deus ! Oxalá que pudéssemos ser devedores dignos para poder pagar tudo o que temos recebido, sem que nos ensoberbeça o dom do sacerdócio ou do ministério!9 Como pagas Tu, Senhor Jesus ? Prometeste que no céu aos bons lhes daria um prêmio abundante, e o cumpre quando dizes: “Muito bem, servo bom e fiel, porque foi fiel no pouco, te constituirei no muito; entre na usufruição de teu Senhor” (Mt 25,21).
84. Portanto, posto que ninguém é tão verdadeiramente nosso próximo como o que curou nossas feridas, amemo-lo, vendo nele Nosso Senhor, e queiramo-lo como à nosso próximo; pois nada existe tão próximo aos membros como a cabeça. E amemos também ao que é imitador de Cristo, e a todo aquele que associa ao sofrimento do necessitado pela unidade do corpo. Não é, pois, a relação de parentesco a que faz a outro homem nosso próximo, mas sim misericórdia, porque esta se faz uma segunda natureza; já que nada há tão de acordo com a natureza quanto a ajudar ao que tem nossa mesma realidade natural.
O relato bíblico se refere ao som das trombetas repetido sete vezes. ↩
O singular se toma aqui no sentido coletivo: toda a família e a casa de Rahab foi, em sua consideração, poupada por Josué e os seus. ↩
Facilmente se reconhece aqui o célebre: “Quantum mutatus ab illo” (Eneida 2, 274). ↩
Ambrósio escreveu em latim “curam illius habe”, da mesma forma que está na vulgata no versículo 35 : “Curam illius habe: .” Na Bíblia de Jerusalém foi traduzida por “Cuida dele,” na TEB por “Toma conta dele”, e por fim na das Edições Loyola ficou: “Toma cuidado dele”. Preferi, como esta última, manter a palavra cuidado pois a palavra “cura” em latim contém outros significados, embora o primeiro seja “cuidado”, pode ser traduzida por “objeto de cuidado”; “inquietação amorosa”; “amor”; “objeto amado”. ↩
Os quatro evangelhos. ↩
No texto em latim está: “et aestimo ut stercora, ut Christum lucri faciam,” quase da mesma forma como está na vulgata: “et arbitror ut stercora, ut Christum lucri faciam.” Na Bíblia de Jerusalém traduziram por: “tudo considero perda, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus,” na TEB por: “eu considero que tudo é perda em comparação deste bem supremo que é o conhecimento de Jesus Cristo”, e pelas Edições Loyola : “considero tudo isso uma perda em comparação com a sublime vantagem de conhecer a Cristo Jesus,”. A tradução feita para o espanhol ficou assim:“Todas las cosas me parecen estiércol en comparación de ganar a Cristo” cuja tradução seria “Todas as coisas me parecem esterco em comparação com ganhar a Cristo.” ↩
Alusão aos dois denários remetidos pelo samaritano para o estalajadeiro. ↩
No texto em latim está “caulas” cujo significado primeiro é “barreira ou estacada que cerca um curral de gado lanígero; bardo.” Bardo para este sentido é muito raro ser usado é sinônimo de sebe. O tradutor espanhol usou a palavra “aprisco” que existe em português embora uma parte de traduções bíblicas prefiram fazer uso da palavra “redil” cujo significado primeiro é: curral para gado, esp. ovino ou caprino, aprisco. Ora, aprisco é muito mais preciso pois seu significado primeiro é: curral destinado ao abrigo de ovelhas; entretanto seu significado segundo é muito mais importante para o texto pois significa o seio da Igreja (comparando-se os fiéis às ovelhas). ↩
Ministério corresponde aqui ao diácono. ↩